São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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Tsai Ming-Liang critica o fim do milênio

LEON CAKOFF
enviado especial a Cannes

Os filmes precedentes do chinês Tsai Ming-Liang, 41, nascido na Malásia e cineasta de Taiwan, saíram consagrados de outros dois grandes festivais: "Vive lÁmour", Leão de Ouro em Veneza; "O Rio", que estréia esta sexta em São Paulo, Urso de Prata em Berlim. Agora, com o demolidor "O Buraco", um dos dez filmes da série "O Ano 2000 Visto Por..." (inclusive com um dirigido por Walter Salles e outro por Hal Hartley), é o tema principal em Cannes entre os filmes da competição. É amar ou odiar.
"O Buraco" é de novo uma metáfora sobre taras, degenerações e solidão. Na véspera do ano 2000, uma peste transmitida pelas águas transforma Taipei em cidade fantasma. Sobram poucos habitantes que sofrem o processo kafkiano de metamorfose. Começam a virar baratas com todos os seus sintomas degenerativos, fotofobia etc. Chove torrencialmente e sem parar. O apartamento de cima vaza esgoto para o apartamento de baixo. O encanador vem, abre um enorme rasgo no piso da sala e desaparece. O rapaz decide aumentar o buraco para observar a vizinha. O que era "Blade Runner" vira fantasticamente "Cantando na Chuva". A vizinha intercala sua claustrobia e solidão com deliciosos números musicais dos anos 50, com a voz original de Grace Chang, cantora e atriz que, tal qual Doris Day, para a classe média americana do pós-guerra, fazia filmes escapistas na China nacionalista.
A melhor definição sobre "O Buraco" foi confidenciada ontem em um jantar pelo tradicional produtor francês de Claude Chabrol, Marin Karmitz, . Opinião insuspeita porque o filme não é seu. Karmitz disse que viu o filme de noite e ficou perturbado. Levou o filme para a cama e demorou para pegar no sono. Acordou com ele e pensou "este filme é especial..." . Passadas 24 horas, com unanimidade da imprensa francesa, começou a achar que o filme é mais uma criação genial de Tsai Ming-Liang. A seguir, a entrevista exclusiva de Tsai Ming-Liang para a Folha.

Folha - O ano 2000 é catastrófico em seu filme. "Midnight", o novo longa de Walter Salles, faz parte da mesma série. Havia um consenso para olhar a virada do milênio com pessimismo?
Tsai Ming-Liang - As idéias que tenho sobre o que se passa no Brasil não são diferentes do que sei que acontece no meu país. Em poucas décadas florestas exuberantes foram devastadas para dar lugar ao homem, seus prédios e seu lixo. É por isso que chove tanto nos meus dois últimos filmes. Tanto em Ó Rio' como em Ó Buraco' a chuva tem efeitos devastadores. Igual o que acontece quando se agride a natureza. O que o filme mostra não é diferente do que vemos em imagens de segundos nos noticiários da televisão. O tempo real é angustiante. O milagre econômico é angustiante. Os técnicos do governo expõem resultados. As pessoas, na vida real, têm seus dramas vividos com muita solidão. As estatísticas não se ocupam do sofrimento das pessoas. Os milagres econômicos, como os vejo, são uma catástrofe que caminha junto com a destruição da natureza e dos sentimentos das pessoas.
Folha - Seus dois filmes anteriores tinham uma sexualidade muito forte. "O Buraco" tem no voyeurismo o seu ponto perturbador...
Ming-Liang - É... A sexualidade está neste fim de milênio fora do alcance repressor das tiranias. O destaque que dou às músicas e à época musical de Grace Chang tem toda a carga erótica que se permitia nos anos 50 para entreter e alienar a classe média. Era proibido mostrar a realidade. Os filmes eram escapistas a exemplo do que vinha de Hollywood e o mundo precisava ser constantementemente pintado de rosa. Mas eram filmes deliciosos. Por isso promovo o contraste entre o apocalipse do mundo real e a alegria artificial dos números musicais e suas coreografias ordinárias.
Folha - A vizinha de baixo estoca papel-higiênico e o vizinho de cima comida...
Ming-Liang - É a luxúria. O mundo exterior apresenta-nos sempre embalagens. Sempre compramos um mesmo produto no supermercado com nova embalagens. Que importância tem isso? O mundo deste fim de milênio comunica-se através dos símbolos de felicidade ofertados pelo consumo. A miséria humana não tem importância desde que fique escondida em casa e ninguém possa vê-la. A solidariedade não combina com atos de egoismo.
Folha - Tanto em "O Rio" como em "O Buraco" são as águas fétidas e contaminadas que prenunciam a catástrofe. Gosto muito da sua definição dada para "O Rio": "A vida é como um rio, quanto mais fundo vamos, mais sujos ficamos". Qual poderia ser a sua definição para "O Buraco"?
Ming-Liang - (rindo). Ainda não pensei. Mas... poderia ser assim: "Uma história de amor para o novo milênio..."
Folha - O que há na sua formação cinematográfica. Que filmes foram mais marcantes para a sua carreira?
Ming-Liang - Sou a chamada 'next generation'. A geração que cultuou os filmes de kung-fu que tomaram o lugar dos musicais como os de Grace Chang. Não estudei cinema na universidade porque não havia. Minha formação inicial vem do teatro. O cinema que chegava a Taiwan era principalmente o americano. Deles ainda admiro o que fizeram Coppola e Scorsese. Vi o cinema europeu caoticamente, sempre com atraso, porque chegava através de centros culturais. Foi em seus arquivos que vi filmes de Visconti, Antonioni, Fellini, Fassbinder, Bresson e Truffaut. Não sei muito do cinema brasileiro, mas vou ver os de Walter Salles.
(fim)




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