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Tsai Ming-Liang critica o fim do milênio
LEON CAKOFF
enviado especial a Cannes
Os filmes precedentes do chinês
Tsai Ming-Liang, 41, nascido na
Malásia e cineasta de Taiwan, saíram consagrados de outros dois
grandes festivais: "Vive lÁmour", Leão de Ouro em Veneza;
"O Rio", que estréia esta sexta
em São Paulo, Urso de Prata em
Berlim. Agora, com o demolidor
"O Buraco", um dos dez filmes
da série "O Ano 2000 Visto
Por..." (inclusive com um dirigido por Walter Salles e outro por
Hal Hartley), é o tema principal
em Cannes entre os filmes da competição. É amar ou odiar.
"O Buraco" é de novo uma metáfora sobre taras, degenerações e
solidão. Na véspera do ano 2000,
uma peste transmitida pelas águas
transforma Taipei em cidade fantasma. Sobram poucos habitantes
que sofrem o processo kafkiano de
metamorfose. Começam a virar
baratas com todos os seus sintomas degenerativos, fotofobia etc.
Chove torrencialmente e sem parar. O apartamento de cima vaza
esgoto para o apartamento de baixo. O encanador vem, abre um
enorme rasgo no piso da sala e desaparece. O rapaz decide aumentar o buraco para observar a vizinha. O que era "Blade Runner"
vira fantasticamente "Cantando
na Chuva". A vizinha intercala
sua claustrobia e solidão com deliciosos números musicais dos anos
50, com a voz original de Grace
Chang, cantora e atriz que, tal qual
Doris Day, para a classe média
americana do pós-guerra, fazia filmes escapistas na China nacionalista.
A melhor definição sobre "O
Buraco" foi confidenciada ontem
em um jantar pelo tradicional produtor francês de Claude Chabrol,
Marin Karmitz, . Opinião insuspeita porque o filme não é seu.
Karmitz disse que viu o filme de
noite e ficou perturbado. Levou o
filme para a cama e demorou para
pegar no sono. Acordou com ele e
pensou "este filme é especial..." .
Passadas 24 horas, com unanimidade da imprensa francesa, começou a achar que o filme é mais uma
criação genial de Tsai Ming-Liang.
A seguir, a entrevista exclusiva de
Tsai Ming-Liang para a Folha.
Folha - O ano 2000 é catastrófico em seu filme. "Midnight", o
novo longa de Walter Salles, faz
parte da mesma série. Havia um
consenso para olhar a virada do
milênio com pessimismo?
Tsai Ming-Liang - As idéias que
tenho sobre o que se passa no
Brasil não são diferentes do que
sei que acontece no meu país. Em
poucas décadas florestas exuberantes foram devastadas para dar
lugar ao homem, seus prédios e
seu lixo. É por isso que chove tanto nos meus dois últimos filmes.
Tanto em Ó Rio' como em Ó Buraco' a chuva tem efeitos devastadores. Igual o que acontece quando se agride a natureza. O que o
filme mostra não é diferente do
que vemos em imagens de segundos nos noticiários da televisão.
O tempo real é angustiante. O
milagre econômico é angustiante. Os técnicos do governo expõem resultados. As pessoas, na
vida real, têm seus dramas vividos com muita solidão. As estatísticas não se ocupam do sofrimento das pessoas. Os milagres
econômicos, como os vejo, são
uma catástrofe que caminha junto com a destruição da natureza e
dos sentimentos das pessoas.
Folha - Seus dois filmes anteriores tinham uma sexualidade
muito forte. "O Buraco" tem no
voyeurismo o seu ponto perturbador...
Ming-Liang - É... A sexualidade
está neste fim de milênio fora do
alcance repressor das tiranias. O
destaque que dou às músicas e à
época musical de Grace Chang
tem toda a carga erótica que se
permitia nos anos 50 para entreter e alienar a classe média. Era
proibido mostrar a realidade. Os
filmes eram escapistas a exemplo
do que vinha de Hollywood e o
mundo precisava ser constantementemente pintado de rosa.
Mas eram filmes deliciosos. Por
isso promovo o contraste entre o
apocalipse do mundo real e a alegria artificial dos números musicais e suas coreografias ordinárias.
Folha - A vizinha de baixo estoca papel-higiênico e o vizinho de
cima comida...
Ming-Liang - É a luxúria. O
mundo exterior apresenta-nos
sempre embalagens. Sempre
compramos um mesmo produto
no supermercado com nova embalagens. Que importância tem
isso? O mundo deste fim de milênio comunica-se através dos símbolos de felicidade ofertados pelo
consumo. A miséria humana não
tem importância desde que fique
escondida em casa e ninguém
possa vê-la. A solidariedade não
combina com atos de egoismo.
Folha - Tanto em "O Rio" como
em "O Buraco" são as águas fétidas e contaminadas que prenunciam a catástrofe. Gosto muito da
sua definição dada para "O Rio":
"A vida é como um rio, quanto
mais fundo vamos, mais sujos ficamos". Qual poderia ser a sua
definição para "O Buraco"?
Ming-Liang - (rindo). Ainda
não pensei. Mas... poderia ser assim: "Uma história de amor para
o novo milênio..."
Folha - O que há na sua formação cinematográfica. Que filmes
foram mais marcantes para a sua
carreira?
Ming-Liang - Sou a chamada
'next generation'. A geração que
cultuou os filmes de kung-fu que
tomaram o lugar dos musicais
como os de Grace Chang. Não estudei cinema na universidade
porque não havia. Minha formação inicial vem do teatro. O cinema que chegava a Taiwan era
principalmente o americano. Deles ainda admiro o que fizeram
Coppola e Scorsese. Vi o cinema
europeu caoticamente, sempre
com atraso, porque chegava através de centros culturais. Foi em
seus arquivos que vi filmes de
Visconti, Antonioni, Fellini,
Fassbinder, Bresson e Truffaut.
Não sei muito do cinema brasileiro, mas vou ver os de Walter
Salles.
(fim)
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