São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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Embora os físicos estejam interessados em princípios gerais, muitas vezes não fica claro o que é princípio e o que é simples acidente

France Presse/Nasa
Foto do telescópio espacial Hubble mostra o ciclo de vida completo de estrelas na nebulosa NGC 3603, desde o nascimento, numa nebulosa (abaixo, à dir.) até o final, como gigante azul (centro)


(continuação)

Quando essas equações foram resolvidas. em meados de 1960 por James Peebles e depois por Robert Wagoner, William Fowler e Fred Hoyle, descobriu-se que, após os primeiros minutos, um quarto da massa do Universo assumiu a forma de hélio, e quase todo o resto era hidrogênio, com outros elementos presentes apenas em quantidades minúsculas. Esses cálculos revelaram também certas regularidades. Por exemplo, se introduzimos algo à teoria para acelerar a expansão, como por exemplo acrescentar espécies adicionais de neutrinos, descobrimos que mais hélio seria produzido. Isso é um pouco contra-intuitivo -talvez se pense que acelerar a expansão do Universo daria menos tempo para as reações nucleares produzirem hélio, mas o fato é que os cálculos mostraram que aumentou a quantidade de hélio produzido.
A explicação não é difícil, embora não possa ser facilmente vista na página impressa do computador. Enquanto o Universo se expandia e esfriava nos primeiros minutos, ocorriam reações nucleares que compunham núcleos complexos dos prótons e nêutrons primordiais, mas como a densidade da matéria era relativamente baixa, essas reações podiam ocorrer apenas em sequência, primeiro combinando alguns prótons e nêutrons para formar o núcleo do hidrogênio pesado, o dêuteron, e depois combinando dêuterons com prótons e nêutrons ou outros dêuterons para formar núcleos mais pesados, como o hélio. Contudo os dêuterons são muito frágeis; possuem uma ligação relativamente fraca, de modo que, na essência, nenhum dêuteron foi produzido até que a temperatura baixasse a cerca de 1 bilhão de graus, ao cabo dos primeiros três minutos. Durante todo esse tempo, nêutrons se convertiam em prótons, tal como fazem hoje nêutrons livres em nossos laboratórios.
Quando a temperatura baixou a 1 bilhão de graus, e ficou frio o bastante para os dêuterons se manterem juntos, então todos os nêutrons que ainda restavam foram rapidamente transformados em dêuterons, e os dêuterons, em hélio, um núcleo particularmente estável. São precisos dois nêutrons e dois prótons para formar um núcleo de hélio, assim o número de núcleos de hélio produzido então era somente a metade do número dos nêutrons remanescentes. Portanto o fato crucial que determina a quantidade de hélio produzido nos primórdios do Universo é quantos nêutrons se desintegraram antes que a temperatura baixasse a 1 bilhão de graus. Quanto mais rápida a expansão, mais cedo a temperatura baixou a 1 bilhão de graus, e assim menos tempo tinham os nêutrons para se desintegrar, e mais deles sobraram, e mais hélio foi produzido. Essa a explicação do que foi descoberto nos cálculos do computador; mas a explicação não seria encontrada nos gráficos traçados pelo computador, que mostravam a abundância em relação à velocidade da expansão.
Além disso, embora eu tenha dito que os físicos só estão interessados em explicar os princípios gerais, não está claro o que é um princípio e o que é um simples acidente. Às vezes, o que imaginamos ser uma lei fundamental da natureza é apenas um acidente. Kepler fornece novamente um exemplo. Hoje ele é conhecido sobretudo pelas suas famosas três leis do movimento planetário, mas, quando jovem, ele tentou também explicar os diâmetros das órbitas dos planetas com uma complicada construção geométrica envolvendo poliedros regulares. Hoje rimos disso porque sabemos que as distâncias dos planetas em relação ao Sol refletem acidentes que ocorreram quando o Sistema Solar foi formado. Não tentaríamos explicar os diâmetros das órbitas planetárias deduzindo-os de alguma lei fundamental.
Em certo sentido, porém, há uma espécie de explicação estatística aproximada para a distância entre a Terra e o Sol (5). Se perguntarmos por que a Terra está a cerca de cem milhões de milhas do Sol, e não, digamos, duzentos milhões ou cinquenta milhões de milhas, ou até mais longe, ou até mais perto, uma resposta seria que, se a Terra estivesse muito mais próxima do Sol, seria quente demais para nós, e, se estivesse um pouco mais afastada do Sol, seria muito fria para nós. Dita assim, essa é uma explicação bastante besta, porque sabemos que não havia conhecimento prévio dos seres humanos na formação do Sistema Solar. Mas há um sentido em que essa explicação não é besta, porque há inúmeros planetas no Universo, de modo que, embora somente uma pequena fração esteja à distância correta de sua estrela e tenha a massa e composição química corretas e tudo o mais para permitir a evolução da vida, não seria surpresa que as criaturas que investigam a distância de seu planeta em relação a sua estrela descubram que vivem num dos planetas dessa pequena fração.
Esse tipo de explicação é conhecida como antrópica, e, como se pode ver, ela não oferece um insight muito útil na física do Sistema Solar. Mas argumentos antrópicos podem se tornar bem importantes quando aplicados ao que costumamos chamar de Universo. Os cosmólogos especulam cada vez mais que, tal como a Terra é somente um entre muitos planetas, assim também nosso Big Bang, a grande expansão do Universo em que vivemos, pode ser apenas um entre os muitos bangs que ocorrem esporadicamente aqui e ali num mega-universo muito maior. Especulam ainda que, nesses diversos big bangs, algumas das supostas constantes da natureza assumem valores diferentes, e talvez mesmo algo do que chamamos hoje leis da natureza assumam formas diferentes. Nesse caso, a questão de saber por que as leis da natureza que descobrimos e as constantes da natureza que medimos são o que são teria uma explicação teleológica tosca que é somente com esse tipo de Big Bang que haveria alguém para formular a pergunta.

Unificando leis
Espero certamente que não sejamos levados a esse tipo de raciocínio e que descobriremos um único conjunto de leis naturais para explicar por que todas as constantes da natureza são o que são. Mas temos que manter em vista a possibilidade de que o que hoje chamamos de leis da natureza e as constantes da natureza sejam aspectos acidentais do Big Bang no qual nos encontramos, embora submetidos (tal como é a distância da Terra em relação ao Sol) à exigência de que têm de estar num âmbito que permita o aparecimento de seres que possam perguntar por que são o que são.
Inversamente, é possível também que uma classe de fenômenos seja considerada como simples acidentes quando são, de fato, manifestações de princípios físicos fundamentais. Creio que essa talvez seja a resposta a uma questão histórica que me intrigou por muitos anos. Por que Aristóteles (e vários outros filósofos naturais, notadamente Descartes) se satisfez com uma teoria do movimento que não fornecia nenhum modo de prever onde um projétil ou um corpo em queda estaria em dado instante de seu vôo, uma previsão do tipo que as leis de Newton fornecem? Segundo Aristóteles, as substâncias tendem a se mover para suas posições naturais -a posição natural da terra é para baixo, a posição natural do fogo é para cima, e a água e o ar se acham naturalmente em algum lugar desse intervalo-, mas ele não tentou dizer como um pedaço de terra cai para baixo ou uma centelha sobe para cima. Não estou perguntando por que Aristóteles não descobriu as leis de Newton -obviamente alguém teria de ser o primeiro a descobrir essas leis, e o prêmio coube a Newton. O que me intriga é por que Aristóteles não expressou nenhuma insatisfação por não ter aprendido como calcular as posições dos projéteis em cada instante de suas trajetórias. Ele parece não ter percebido que esse era um problema que qualquer um deveria resolver.
Suspeito que isso foi porque Aristóteles supôs tacitamente que as razões em que os elementos se movem para seus lugares naturais sejam meros acidentes, que não estejam sujeitas a regras, que não se poderia dizer nada de geral sobre elas (salvo que os objetos pesados caem mais rápido que os leves), que as únicas coisas sobre as quais se pode generalizar sejam questões de equilíbrio onde os objetos acabam por atingir o repouso. Isso talvez tenha refletido um disseminado desdém pela mudança da parte dos filósofos helênicos, tal como evidenciado na obra de Parmênides, que era admirado por Platão, mestre de Aristóteles. Claro que Aristóteles estava errado quanto a isso, mas se nos imaginarmos naqueles tempos, vemos como não seria nada óbvio que o movimento fosse governado por regras matemáticas precisas, passíveis de descoberta. Que eu saiba, isso só foi entendido quando Galileu começou a medir quanto tempo levava para bolas rolarem diversas distâncias num plano inclinado. É uma das grandes tarefas da ciência aprender o que são acidentes e o que são princípios, e isso nem sempre podemos saber de antemão.
Agora que desconstruímos os termos "fundamental", "deduzir" e "princípio", terá restado algo de minha proposta, que na física dizemos que explicamos um princípio quando o deduzimos de um princípio mais fundamental? Sim, acho que restou, mas somente dentro de um contexto histórico, uma visão do futuro da ciência.

Peço licença para abordar a questão de saber se a ciência pode explicar qualquer coisa; claro que não


Temos rumado para uma imagem cada vez mais satisfatória do mundo. Esperamos que, no futuro, tenhamos alcançado um entendimento de todas as regularidades que vemos na natureza, baseados em alguns princípios simples, leis da natureza das quais todas as outras regularidades possam ser deduzidas. Essas leis serão a explicação de quaisquer princípios (tais como, por exemplo, as regras do Modelo Padrão ou da relatividade geral) que possam ser deduzidos diretamente delas, e esses princípios diretamente deduzidos serão as explicações de quaisquer princípios que possam ser deduzidos deles etc. -somente quando tivermos essa teoria final saberemos com certeza o que é princípio e o que é acidente, quais fatos sobre a natureza são definidos por quais princípios, e quais são os princípios fundamentais e quais são os princípios menos fundamentais que eles explicam.
Até agora fiz o que pude para dizer se a ciência pode explicar tudo; peço licença para abordar a questão de saber se a ciência pode explicar qualquer coisa. Claro que não. Certamente sempre haverá acidentes que ninguém explicará, não porque não possam ser explicados se soubéssemos todas as condições precisas que conduziram a eles, mas porque jamais saberemos todas essas condições. Há questões como saber por que o código genético é precisamente o que é ou por que um cometa atingiu a Terra 65 milhões de anos atrás justamente nesse ponto e não em outro que permanecerão para sempre fora de nosso alcance.
Não podemos explicar, por exemplo, por que a bala de John Wilkes Booth matou Lincoln enquanto os nacionalistas porto-riquenhos que tentaram matar Truman não tiveram sucesso. Talvez tivéssemos uma explicação parcial se tivéssemos provas de que um dos braços do atirador tremeu ao puxar o gatilho, mas o fato é que não temos. Todas essas informações estão perdidas nas brumas do tempo; os eventos dependem de acidentes que jamais poderemos recuperar.
Podemos, talvez, tentar explicá-los estatisticamente: por exemplo, pode-se cogitar a teoria de que os atores sulistas em meados do século 19 costumavam ser bons atiradores, enquanto os nacionalistas porto-riquenhos em meados do século 20 costumavam ser maus atiradores, mas, quando se tem somente informações esparsas, é muito difícil fazer até mesmo inferências estatísticas. Os físicos tentam explicar justamente as coisas que não dependem de acidentes, mas no mundo real a maior parte do que tentamos compreender depende de acidentes.
Além disso, a ciência nunca pode explicar nenhum princípio moral. Parece haver um abismo intransponível entre questões do que "é" e do que "deve ser". Talvez possamos explicar por que as pessoas acham que devem fazer as coisas, ou por que a raça humana evoluiu para sentir que certas coisas devem ser feitas e outras não, mas permanece em aberto para nós transcender essas regras morais de base biológica. Pode ser, por exemplo, que nossa espécie tenha evoluído de tal modo que homens e mulheres desempenhem papéis diferentes -os homens caçam e brigam, as mulheres dão à luz e cuidam dos filhos, mas podemos tentar evoluir para uma sociedade em que todo tipo de trabalho esteja igualmente aberto a mulheres e homens. Os postulados morais que nos dizem se devemos ou não fazê-lo não podem ser deduzidos do conhecimento científico.

Possíveis explicações
Há também limitações na certeza de nossas explicações. Não creio que jamais teremos certeza de nenhuma delas. Tal como há profundos teoremas matemáticos que mostram a impossibilidade de provar que a aritmética é consistente, parece que nunca seremos capazes de provar que as mais fundamentais leis da natureza são matematicamente consistentes. Não que isso não me assuste, porque, mesmo que soubéssemos que as leis da natureza são matematicamente consistentes, ainda assim não teríamos certeza de que elas são verdadeiras. Você deixa de se preocupar com a certeza quando dá aquela virada na carreira que o transforma num físico, não num matemático.
Finalmente, parece claro que nunca seremos capazes de explicar nossos mais fundamentais princípios científicos. (Talvez seja por isso que alguns dizem que a ciência não fornece explicações, mas por esse raciocínio, nada mais o faz.) Creio que, no fim, chegaremos a um conjunto de leis da natureza simples e universais, leis que não podemos explicar. O único tipo de explicação que posso imaginar (se não descobrirmos um simples conjunto de leis mais profundo, o que somente estenderia a questão) seria mostrar que a consistência matemática exige essas leis. Mas isso é obviamente impossível, porque já podemos imaginar conjuntos de leis da natureza que, até onde sabemos, são perfeitamente consistentes em termos matemáticos, mas não descrevem a natureza tal como a observamos.
Por exemplo, se tomarmos o Modelo Padrão das partículas elementares e jogarmos fora tudo menos as intensas forças nucleares e as partículas sobre as quais elas agem, os quarks e os glúons, nos resta a teoria conhecida como cromodinâmica quântica. Parece que a cromodinâmica quântica é matematicamente autoconsistente, mas descreve um universo empobrecido, no qual existem apenas partículas nucleares -não existem átomos, não existem pessoas.
Se abandonarmos a mecânica quântica e a relatividade, podemos forjar uma enorme variedade de outras leis da natureza logicamente consistentes, tais como as leis de Newton que descrevem umas poucas partículas que orbitam sem parar uma ao redor da outra de acordo com essas leis, com nada mais no universo, e nunca acontecendo nada de novo. Essas são teorias logicamente consistentes, mas são todas empobrecidas. Talvez nossa melhor esperança para uma explicação final seja descobrir um conjunto final de leis da natureza e mostrar que essa é a única teoria rica logicamente consistente, rica o bastante, por exemplo, para permitir a existência de nós mesmos. Isso talvez aconteça em um ou dois séculos, e, se assim for, creio que os físicos estarão nos limites extremos de seu poder de explicação.

Texto originalmente publicado no "The New York Review of Books".

Tradução de José Marcos Macedo.


Notas:
1. Esse artigo é baseado numa palestra dada num simpósio sobre "Ciência e os Limites da Explicação", em Amherst, no ano passado.
2. "On the Notion of Cause" , reimpresso em "Mysticism and Logic" (Doubleday, 1957), p. 174.
3. Há um exemplo da dificuldade de explicar eventos em termos de causas que é muito citado pelos filósofos. Suponha que se descubra que o prefeito tenha paresia. Será ela explicada pelo fato de o prefeito ter tido um caso de sífilis não tratada alguns anos antes? O problema com essa explicação é que a maioria das pessoas com sífilis não tratada na verdade não fica com paresia. Se pudéssemos traçar a sequência de eventos que levaram da sífilis à paresia, descobriríamos muitas outras coisas que desempenharam um papel essencial talvez uma espiroqueta tenha coleado nessa direção e não na outra, talvez o prefeito tivesse uma deficiência vitamínica quem sabe? E no entanto sentimos que a sífilis do prefeito é a explicação da paresia. Isso talvez seja porque a sífilis é a mais dramática das muitas causas que conduziram ao efeito, e é certamente uma das que seriam mais relevantes politicamente.
4. Carl Hempel e Paul Oppenheim, "Studies in the Logic of Confirmation", Philosophy of Science, vol. 15, nš 135 (1948), pp. 135-75; reimpresso com algumas mudanças em "Aspects of Scientific Explanation and Other Essays in the Philosophy of Science" (Free Press, 1965).
5. O professor R. J. Hankinson, da Universidade do Texas, chamou-me a atenção para um exemplo original dessa "explicação" em Galeno. Claro, escrevendo 1.400 anos antes de Copérnico, Galeno estava preocupado em explicar a posição do Sol, e não a da Terra. Em "A utilidade das partes do corpo", ele compara sua explicação da posição do Sol com a explicação da posição do pé humano na extremidade da perna tanto o Sol como a Terra são dispostos pelo criador onde propiciariam o maior benefício.
Embora essas explicações sejam teleológicas num sentido que foi abandonado pela ciência moderna, a analogia de Galeno era melhor do que ele poderia ter imaginado. Tal como a Terra é um entre um vasto números de planetas, cujas distâncias de suas estrelas é em boa parte uma questão do acaso, assim também a posição do pé é o resultado de um vasto número de mutações casuais na evolução de nossos ancestrais vertebrados. Um organismo produzido por uma cadeia de mutações casuais que lhe põem o pé dentro da boca não sobreviveria para transmitir seus genes aos descendentes, tal como um planeta que, por acaso, condensou muito perto ou muito longe de sua estrela não seria o lar de filósofos.


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