São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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Divórcio aos 30

Para os filhos, "casa" substituiu "lar"

Pais separados correm risco de infantilizar a prole; para pesquisadora da Unicamp, quem pede divórcio quer se recasar

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

No dia 10 de maio de 1968, o cantor Roberto Carlos, auge do sucesso, foi para Santa Cruz de la Sierra, em uma Bolívia que nem sonhava com Evo Morales, para lá se casar com Cleonice Rossi, mulher desquitada mais velha do que ele e mãe de uma menina.
O Brasil, ainda sem transmissão de TV via satélite, parou para ouvir a cerimônia no rádio.
Em vez da marcha nupcial, os jornalistas presentes cantaram o Hino Nacional brasileiro. Fãs choravam desconsoladas ao pé do rádio. A secretária de Roberto, Edy Silva, que ouviu a cerimônia ao lado de Erasmo Carlos, vaticinou: "Acabou-se Roberto Carlos". Queria dizer: acabou a carreira de Roberto Carlos.
Sabe-se que a previsão não se realizou, mas de infundado o temor de Edy não tinha nada. O rei do iê-iê-iê insurgia-se abertamente contra a "tradicional família" ao se unir a uma mulher desquitada, a que, conforme ditado da época, "como a cana de engenho, só deixa o bagaço".
"Era uma tragédia principalmente para as mulheres. As desquitadas eram as fracassadas, aquelas que não tinham dado certo, as que "alguma" tinham aprontado. Era algo a ser evitado", lembra a psicóloga Rosely Sayão, articulista da Folha, ela mesma alvo de preconceito ao se separar.
"Eu morava em Piracicaba e dava aulas na Universidade Metodista. Meus amigos eram pesquisadores e professores."
Rosely reparou: todas as vezes em que saía à noite, era sempre a única desacompanhada. Quando a mulher ou namorada de um colega não podia acompanhá-lo, ele simplesmente era proibido de se juntar à turma.
"Supunha-se que eu era uma concorrente correndo "solta", que eu espreitava a família."
Em 1977, durante os debates no Congresso sobre o divórcio, o então deputado federal Epitácio Cafeteira (hoje senador pelo PTB-MA) soltou a frase-síntese: "A desquitada é uma mulher cantável". Queria dizer "seduzível", "fácil".
Era cantável mesmo, mas em outro sentido. "Esse amor sem preconceitos, sem saber o que é direito, faz as suas próprias leis."
A letra é da campeã do hit parade de 1971, "Amada, Amante". Foi composta por Roberto Carlos antes de assumir publicamente seu amor por Cleonice.
Outra canção de Roberto, "Meu Grito", da mesma época, mostra que "o amor que não ousa dizer seu nome" já foi -veja só- o amor por pessoa separada ou desquitada. "Ai, que vontade de gritar/ seu nome bem alto, no infinito/ Dizer que o meu amor é grande, /bem maior do que meu próprio grito /Mas só falo bem baixinho/E não conto pra ninguém /Pra ninguém saber seu nome, /eu grito só meu bem." Um estouro.
O Brasil foi um dos cinco últimos países a permitir a dissolução do casamento. Uruguai e Bolívia já haviam aprovado o divórcio. Pela proximidade geográfica, acabaram se tornando destino certo de casais apaixonados em que um ou os dois tinham uma união desfeita no currículo sentimental. O documento produzido não possuía nenhum valor legal no Brasil, mas era um jeito de acalmar pais e mães chateados com a idéia de ver a filha ser chamada de "concubina", "amásia" ou "amante" de alguém.
Tarcísio e Glória
Um dos símbolos do casamento feliz, aliás, se formou a partir desse expediente: Glória Menezes e Tarcísio Meira. Casada com um primo distante, filhos, ela se separou do marido depois de voltar de Cannes em 1962, com a Palma de Ouro pela participação em "O Pagador de Promessas".
Meses depois, caiu de amores pelo galã. O casamento boliviano dos dois foi reafirmado no Brasil depois da aprovação da lei do divórcio. Dura até hoje.
O divórcio é uma chaga? O papa Bento 16 acha que sim, conforme a exortação apostólica pós-sinodal "Sacramentum Caritatis" (sacramento do amor).
Na lógica católica, o divórcio corrói a família, desprotege as crianças e dissolve o sagrado laço do matrimônio.
A antropóloga da Unicamp Guita Grin Debert, 58, interpreta de modo diferente: "O divórcio não é contra a família ou o casamento, mas sua reafirmação. Quem se divorcia, acredita no recasamento. Não nega os valores familiares, transforma-os".
A palavra "lar", por exemplo, acabou substituída pelo vocábulo "casa". O "lar" está associado à idéia de casamento indissolúvel.
Mas, quando a criança tem pais separados, cada um em sua casa, às vezes com novos arranjos familiares, qual o sentido de usar a palavra "lar"? Onde é o "lar", como local do afeto? Melhor simplificar: vira "casa" do pai, da mãe, da avó.
Os reflexos sobre a prole vão além. "Com o fim das certezas proporcionadas pelo casamento indissolúvel, o único até-que-a-morte-os-separe que restou é aquele que une pais e filhos."
"É por isso que essa relação tornou-se tão sufocante para os jovens, infantilizando-os", diz Rosely. Nesta semana, uma mãe perguntou a ela se era correto deixar a filha de 25 anos dormir com o namorado. "Com 25 anos! É claro que esse já não é problema da mãe. É só da filha", diz.

Fim do estigma
Segundo a socióloga Maria Betânia Ávila, membro da organização feminista SOS Corpo, de Recife, o divórcio rompeu com a condenação, o estigma e o preconceito que atingiam as mulheres "desquitadas", apartando-as do convívio social (aliás, a palavra "desquitada" foi substituída por "separada" ou "divorciada").
"Junte a essa maior liberdade a atuação do movimento feminista, mostrando que a família não é só proteção mas também é muitas vezes violência sexual e doméstica contra a mulher e as crianças, além de local de produção da divisão sexual do trabalho. O resultado é uma reconstrução social e cultural que valoriza muito mais os vínculos afetivos e o prazer de estar junto do que a permanência do laço conjugal."
Trinta anos depois da aprovação da lei do divórcio no Brasil, a família brasileira já foi muito além do papai-mamãe-titia que "almoça junto todo dia".
Tem a proposta de união gay, inclusive com a possibilidade de filhos; as famílias monoparentais (chefiadas por mulheres); o enfraquecimento dos laços de consangüinidade (o menino chama de irmão o filho de outro casal, que não seus pais naturais). "A única coisa que não cessa é a busca da companhia amorosa -para ser a testemunha da vida que se levou", afirma Rosely.


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