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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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Em "Middlesex", que sai no Brasil até o fim do mês, Jeffrey Eugenides ironiza a mitologia ao narrar a história de um hermafrodita vivendo nos EUA do século 20

A epopéia moderna da recriação

Valter José Maria Filho
especial para a Folha

Faire la différence." Essa expressão o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-95) emprestou de alguma campanha publicitária para adotá-la como modelo conceitual na sua obra "Diferença e Repetição". Fazer a diferença, segundo ele, é inserir o novo (o diferente) na repetição. De tal modo que, à medida que se repete, a diferença vai aparecendo. Desenvolver a diferença na repetição é o que fez o romancista norte-americano Jeffrey Eugenides em "Middlesex" -a história de Calliope Helen Stephanides, um hermafrodita greco-americano que até os 14 anos viveu como garota, passando depois a ser um rapaz, trocando o nome para Cal Stephanides. Desde "As Metamorfoses" de Ovídio (apenas para citar uma obra da Antiguidade clássica), passando por Balzac, em "Sarrazine" (objeto de análise de Roland Barthes em "S/Z"), e por Virginia Woolf, em "Orlando", que o hermafroditismo é presença habitual no mundo mítico, poético e romanesco da humanidade. Consciente dessa pesada e labiríntica tradição, Jeffrey Eugenides faz esse hermafrodita deixar de ser cintilante e imaginário verbo para fazê-lo habitar entre nós. Não caindo na armadilha de criar mais uma obra de realismo mágico e muito menos uma obra de erotismo apelativo e bizarro, ficando também longe da sátira impiedosa.

Festival de gêneros
Para começar a caracterizar esse hermafrodita pode-se usar a linguagem emprestada das campanhas publicitárias, dizendo que "esse hermafrodita fala aos corações". Mesmo que a parcelo de sentimentalismo seja bem dosada, "Middlesex" segue a seu modo a tradição de Charles Dickens ("Oliver Twist"), Georges Sand ("François le Champi"), cujos personagens são jovens vivendo com elevação moral seus problemas e em busca do amadurecimento. O que coloca a obra também como fazendo parte do gênero "Bildungsroman", ou seja, romance que conta os anos de formação do protagonista. Portanto, temos aqui um festival de gêneros e estilos equilibrados com muito talento e bom humor.
A própria protagonista é a narradora de suas aventuras e sua saga familiar. Começa pelos fatos que precedem o seu primeiro nascimento, em 1960, e o segundo nascimento, em agosto de 1974 -quando se torna rapaz, adotando o nome masculino de Cal Stephanides. E faz a narrativa retornar aos anos 20, época dos seus avós Desdemona e Lefty, emigrantes gregos que viviam na Turquia até esse país ser invadido pelas tropas gregas, obrigando-os a fugir para a Europa.
Quando, então, os dois aproveitam o fato de serem desconhecidos por lá para se casarem, de modo que ninguém fica sabendo que ambos eram irmãos legítimos vivendo uma peculiar "love story". Emigrando para os Estados Unidos, o casal vai morar em Detroit, na casa de Sourmelina, prima lésbica de Desdemona casada com Jimmy Zizmo, um traficante abstêmio.
Numa noite, os dois casais vão ao teatro para assistir a uma versão erótica do mito do Minotauro. A atmosfera sexual da apresentação inspira os casais a terem relações sexuais, que resultam em duas crianças, Tessie e Milton, que serão os pais de Calliope e do seu irmão Capítulo Onze. Temos assim a família Stephanides, digna de figurar em qualquer trama neobarroca de Severo Sarduy [escritor cubano, 1937-93].
Os Stephanides atravessarão todos os momentos retumbantes da história contemporânea americana: a grande depressão de 29, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, os terríveis distúrbios raciais em Detroit, em 67, o caso Watergate e a crise de energia. Chega a encontrar a fortuna, quando Milton (pai de Calliope) funda uma bem-sucedida cadeia de lanchonetes, a Hot Dogs Hercules, usando os lucros para adquirir Middlesex.
Uma propriedade cuja descrição dá a exata imagem da escritura do romance. Um lugar estranho, sem portas, sem compromisso com a vida prática, contendo escadas que não levam a lugar nenhum. Na verdade, um local futurista à moda das construções de Flash Gordon, que se ergue como um desajeitado e labiríntico museu de novidades.
No meio de tudo isso está Calliope vivendo em êxtase, não no sentido meramente sexual, mas, à medida que sofre mutações, metamorfoses em seu ser, que a fazem sair de si mesma. Principalmente quando seu corpo passa a viver o que Eugenides chama de "folia dionisíaca", em que a menina apolínea se transforma em rapagão de pernas grossas e narigão de sátiro. Isso ocorre quando Calliope, a musa das epopéias, se transforma em Cal, um funcionário do Departamento de Estado norte-americano que vive uma "love story" bem-sucedida com uma fotógrafa japonesa. Saboreando o biscoito irônico da nova mutação e do seu último deslocamento: a de ser o patriarca da família Stephanides que continuará a linhagem. É nisso que o hermafrodita de Jeffrey Eugenides faz a diferença. Sua origem está na assonância ovidiana "ex ovo omnia" (tudo sai do ovo), isto é, em Ovídio, em "As Metamorfoses"; a história da criação. Mas epicamente irá sofrendo mutações até chegar à capacidade de gerar e criar.

Hermafrodita francês
Jeffrey Eugenides contou em uma entrevista que a história desta epopéia greco-americana começou quando ele leu a tradução para o inglês de "Herculine Barbin", as memórias de um hermafrodita francês do século 19 encontradas -e prefaciadas- por Michel Foucault (1926-84) nos arquivos do Departamento Francês de Higiene Pública. Foi o que o levou a escrever a história de um hermafrodita real, consultando as pesquisas médicas sobre o assunto. Daí esse sabor naturalista meio Émile Zola ("Germinal") subvertido.
"Middlesex" é a segunda obra do autor. A primeira foi o bem-sucedido "As Virgens Suicidas" [ed. Rocco], publicado em 1993, narrando as perplexidades de um grupo de garotos horrorizados com os suicídios sucessivos de cinco irmãs virgens. Obra cuja versão cinematográfica foi dirigida por Sofia Coppola.
Espera-se também que Calliope chegue às telas pelas mãos de algum diretor da nova geração, do tipo de Paul Thomas Anderson ("Magnólia"). Estrelas para o papel principal abundam. Hillary Swank, Jennifer Garner (da série "Alias"), Tilda Swinton (que encarnou o Orlando de Virginia Woolf nas telas) e até a magnífica Cate Blanchet e a maravilhosa Kirsten Dunst, todas representantes da nossa época atual, quando estamos assistindo ao triunfo da diferença. Isso é "Middlesex".


Valter José Maria Filho, 39, realiza pós-doutorado em filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e é diretor de vídeos eróticos.

Middlesex
568 págs., preço não definido
de Jeffrey Eugenides. Tradução de Paulo Reis. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2507-2000).



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