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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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Passado em um tempo e espaço indefinidos, "Naufrágios", do escritor japonês Akira Yoshimura, sugere uma alegoria da condição animal do homem

Visões do sal da terra

Lúcia Nagib
articulista da Folha

Autor de 20 livros, dentre os quais vários romances, Akira Yoshimura (1927) é, porém, mais conhecido como historiador, tendo se especializado nas campanhas japonesas do Pacífico. Seu nome também chama a atenção como autor do romance que deu origem ao filme "A Enguia", dirigido por Shohei Imamura em 1997. "Naufrágios", sua primeira obra traduzida para o português, não sugere exatamente uma vocação de best-seller. Mas é mais interessante do que isso, revelando um estilo minimalista que confere às menos de 200 páginas do volume uma vasta gama de sentidos. A opção é coerente: ser econômico para descrever o laconismo. Assim, nada se diz sobre o tempo da história, que se imagina, por menções a "daimyôs" e sistema de escravidão, tratar-se de algum momento da época Edo (1603-1868). Os avisados irão talvez identificar o mar interior japonês como a localização do cenário, embora tampouco se forneçam referências geográficas. Isaku, o menino protagonista, ainda menos informado que o leitor, assiste atônito aos eventos a sua volta, sem que os parentes, vizinhos, anciãos ou chefes de sua aldeia se dignem a dar-lhe explicações. Cada descoberta sua, feita sempre por experiências dolorosas, é uma nova revelação, que o leitor também colhe como pérolas em frases e parágrafos lapidares.


Que a tragédia de uns seja a alegria de outros é a regra secreta do livro, disfarçada sob rituais comunitários


"Senhor navio"
Aos 9 anos, Isaku torna-se adulto, assumindo, com a mãe, a responsabilidade de cuidar dos três irmãos menores, quando o pai se vende como escravo para evitar que a família morra de fome. Sua aldeia encontra-se espremida entre as montanhas e um mar juncado de recifes. A pesca sazonal e a agricultura escassa não suprem as necessidades dos habitantes, que contam com o acaso para se proteger da extinção. Esse acaso se chama "O-fune-sama", ou o "senhor navio", objeto tratado com reverência devido à importância que adquiriu para a aldeia. São os grandes navios que transportam arroz, durante o inverno, e que, em noites de mau tempo, acabam naufragando na costa da aldeia. Os aldeãos trucidam a tripulação e se apropriam da carga, que lhes fornece alguns poucos anos de bem-estar. A maturidade de Isaku é marcada pelo momento em que ele passa a trabalhar no cozimento do sal, nas noites de inverno, na praia. O sal, aqui, tem um sentido mais abrangente do que sua função purificadora na tradição japonesa. Trata-se, na verdade, de uma armadilha: o fogo das caldeiras atrai os navios desavisados, que, acreditando serem casas iluminadas, aproximam-se dos recifes onde batem e naufragam. Que a tragédia de uns seja a alegria de outros é a regra secreta do livro, disfarçada sob incontáveis rituais comunitários. É observando e montando frases soltas que Isaku finalmente descobre qual fora o acontecimento extraordinário que tornara feliz seus primeiros anos de vida: "O-fune-sama" viera quando ele tinha três anos. "Ele se lembrava de que nos dois anos seguintes provara alimentos diferentes e saborosos e vira objetos igualmente raros e incríveis." Isolados como estão, com parca comunicação entre si e quase nenhuma com o exterior afora o ralo comércio com a aldeia vizinha, os aldeãos não têm nenhuma experiência de alteridade a não ser por seus despojos. Impedidos do diálogo com o outro, simplesmente devoram-no, apreciando-o sob a forma da doçura e maciez do arroz, privilégio das classes abastadas nesse Japão medieval. Humano, não mais que humano ou talvez um pouco menos. "A frota de barquinhos convergiu para o navio e acabou por cercá-lo, como uma horda de formigas ao redor de uma lagarta": eis como se descreve a primeira experiência de Isaku do "O-fune-sama". Um mundo reduzido à dimensão animal.

Carga nefasta
Não é preciso dizer que os naufrágios por fim trarão uma carga nefasta para cobrar de volta as vidas roubadas dos navios. Em lugar da purificação, o sal atrai a maldição do contato com o desconhecido, espalhando sujeira, doença e morte. A mortandade na aldeia só vem coroar a cadeia de sofrimentos: os tapas que levam Isaku e seus irmãos de uma mãe aflita com o excesso de trabalho e a ausência do marido; os ombros ensanguentados e pés cobertos de pus da mãe, que carrega cargas de sal para trocar por grãos na aldeia vizinha; os homens e mulheres que se suicidam por falta total de esperança.
Tudo condiz, de um lado, com a regra comum aos estilos realistas, segundo a qual a morte e a dor que a anuncia pertencem à esfera do concreto, e a felicidade, à do abstrato.
E, por outro, à tradição japonesa baseada no sincretismo xintô-budista, de apego à experiência empírica e respeito às leis da natureza. Essas são talvez a única explicação para a clausura suicida desse povo, que, como num filme de Buñuel, jamais rompe o círculo invisível que a confina num lugar maldito. A ausência de detalhes de época e local, justificados pela perspectiva estreita de uma criança que vive isolada, dá também ensejo à alegoria não apenas do sistema japonês que parece sobreviver ao longo dos tempos e civilizações, mas da irrevogável condição animal dos humanos. É, porém, com disciplina e obstinação que Isaku, sua família e sua aldeia cumprem a missão ritualística de formigas operárias, e é assim que o livro convence e comove, ainda que, em seu estilo contido e elegante, jamais provoque lágrimas.

Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora de, entre outros livros, "O Cinema da Retomada" (ed. 34).

Naufrágios
192 págs., R$ 27,00
de Akira Yoshimura. Tradução de Sylvio Monteiro Deutsch. Ed. Best Seller (r. Paes Leme, 524, 10º andar, CEP 05424-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3039-0900).


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