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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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Ponto de fuga

A gôndola e a instalação

Jorge Coli
especial para a Folha

Curadores, subcuradores, um meandro muito intrincado de percursos temáticos, uma porção de temas secundários em princípio submetidos ao tema geral "Sonhos e Conflitos - A Ditadura do Espectador": a 50ª Bienal de Veneza deixa uma impressão esgarçada, meio confusa e indiferente. Nenhum tom vigoroso parece se delinear. Há, porém, uma inflexão política. Nos jardins se encontram os pavilhões construídos por diversos países durante o século 20: são como pequenas embaixadas, pequenos territórios artísticos nacionais. Pontuando o caminho central, Alessandro Petti e Sandi Hilal, um casal ítalo-palestino, plantaram grandes passaportes abertos, maiores que um homem. Os autores vivem, na carne, o drama de fronteiras a transpor e de nacionalidades em conflito. Essa instalação intitula-se "Stateless Nation"; os passaportes apresentam anomalias; entre elas a de representarem uma nação palestina, que não existe.
No pavilhão da Espanha, o artista Santiago Serra pôs dois guardas que só permitem a entrada de espanhóis. Todos os visitantes de outras origens são barrados. Dentro, não há nada: é o sentimento de discriminação que conta. O simulacro engraçado transformou-se em jogo, tendo como referência a situação dramática de milhares de pessoas que tentam passar, em condições por vezes terríveis, dos países pobres aos países ricos.
O pavilhão da Venezuela se encontra fechado: foi determinação do artista escolhido, Javier Tellez, buscando denunciar o abandono da cultura pelos poderes públicos, que ele percebe em seu país.

Playground - O pavilhão da Itália, na Bienal de Veneza, é o maior de todos e foi reservado, neste ano, para uma espécie de balanço internacional de artistas contemporâneos prestigiosos. Há obras fortes que surpreendem e há obras perversas que fascinam. Estão dispostas, porém, sem grande cuidado museográfico, nem parecem se relacionar entre si de algum modo inteligível. A curadoria afirma que quis evitar o "espetáculo", mas parece ter chegado antes a uma indiferença sem cálculo.
Outros pavilhões fugiram dessa árida banalização: o caso mais espetacular é o da Inglaterra, onde Chris Ophili transformou o espaço interno numa espécie de luxuoso estojo símile art déco, forrado por tecidos de verdes, vermelhos, amarelos intensos, que põem em valor suas obras.
O pavilhão dinamarquês, batizado para a mostra de "Blind Pavilion", foi transformado por Gitte Orskou e Olafur Eliasson num conjunto de efeitos óticos: luz que retira a cor das pessoas e objetos, caleidoscópios enormes e extraordinários, câmaras escuras, causando prazer não muito distante do que oferece um parque de diversões.
A Austrália enviou as obras de Patricia Piccinini: esculturas hiper-realistas, se essa expressão é apropriada para seres saídos de uma teratologia inquietante.

Vírus - Muitas das videoinstalações, graças à facilidade técnica, tendem, pela repetição, a revelar seus limites. As obras de Michal Rovner, no pavilhão de Israel, porém, os ultrapassam. São ambientes onde todas as paredes se recobrem de projeções, mostrando marchas incessantes de seres humanos em fila. São mesas onde se vêem, sob cápsulas de vidro, como se fossem culturas de laboratório, minúsculos grupos humanos que se aglutinam ou se dispersam. Os movimentos se repetem, com leves variantes individuais. Há ali uma terrível redução do homem à obediência coletiva, sua transformação em objeto de alguma ciência tirânica e cruel.

Anemia - Os artistas que se destacam na Bienal de Veneza não dissimulam o sentimento exangue geral. Essa falta de nervos, de convicção, talvez venha de uma outra ditadura, que não é a do espectador e nem mesmo do curador: a ditadura das festas de inauguração, quando aqueles espaços são preenchidos com figuras do jet-set. Em tais momentos, as mostras devem brilhar como cenários, onde a arte é pretexto secundário. Nos dias comuns, o público busca sentido, mas a coerência é aproximativa: os significados fortes foram-se com a representação social que terminou.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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