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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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Ensaísta analisa números recentes das publicações "Inimigo Rumor", "Sibila", "Coyote", Ácaro" e "Et Cetera" e discute o boom de revistas literárias e culturais no Brasil

A luta da palavra com o espaço em branco

Kathrin H. Rosenfield
especial para a Folha

Recebo cinco revistas de poesia -"Inimigo Rumor" (RJ/Lisboa), "Sibila" (SP/Brasília/Nova York), "Coyote" (Londrina-PR), "Ácaro" (SP) e "Et Cetera" (Curitiba-PR). Duas delas são recentíssimas: "Et Cetera" é o número zero, "Ácaro", o número dois. Sem dúvida, ainda um número restrito de revistas literárias e culturais, uma amostra pequena se lembrarmos que nos últimos anos elas têm pipocado.
O fenômeno em si mesmo mereceria alguma investigação. Revistas literárias são fundadas ano a ano -há uma verdadeira inflação do gênero. Algumas delas têm produzido algumas comoções, como a iconoclasta "Rascunho", outras levam uma existência mais plácida, como a "Continente", de Pernambuco.
"Ácaro" (nš 2, R$ 10, tel. 0/xx/11/ 3816-6777) - não deixa de ter um toque de ironia resenhar no Mais! uma revista que contém o suplemento "menas". Nesse minifolheto de 20 x 20 cm, Marilyn Monroe anuncia um "concurso de literatura confessional num cupom de delegacia", sob o lema de Paul Valéry, que disse: "Escrever nada mais é que preencher espaços em branco". Com pós-moderna derrisão, defende-se a tese "Onde houver celulose virgem, haverá literatura" . Dá o tom a farsa "O Bacanal" e o "Incidente Noir" -uma "minissérie em quantos capítulos a gente tiver grana pra fazer" que se desdobra na parte séria das referências editoriais com o apelo: "Empresários progressistas: anunciem no "Ácaro'".
Muitas crônicas que reprocessam em forma de literatura os clichês da comunicação de massa (de Rita Hayworth a Xuxa). Uma parte da revista é dedicada à poesia -poetas brasileiros e traduções. E -de repente, quando menos se espera- um artigo "sério" e esclarecedor de Paulo Henriques Britto sobre as dificuldades que representam, para o escritor e o tradutor, as diferenças entre o português falado e o escrito, além de charadas e uma entrevista com Neslon -uma ficção que capta a realidade de um anônimo azarado que dá a entrevista enquanto sua casa é inundada pelas chuvas torrenciais, cujos estragos urbanos regularmente ocupam o noticiário. Na revista "Coyote" (nš 5, R$ 10, tel. 0/ xx/21/3731-3281) fico seduzida, de imediato, pelas palavras lapidares de Luis Dolhnikoff: "O que estou procurando com minha poesia? Nada. Jamais quis ser poeta. Sequer gosto desta palavra. Pessoalmente preferiria uma atividade mais pragmática... não procuro nada, mas encontro quase tudo. O resto é o resto". Isso já vale um poema e quase faz esquecer que na mesma página há também os versos publicados: ""Drósera'/ dissera o pobre poeta/ do que se chama boceta/ em bom português". Há também uma irônica sequência de fotos de esculturas fúnebres em poses extático-eróticas e uma tradução de poemas de Po Chü-I, poeta chinês e crítico da política dos imperadores do período Tang (772-846). Jacques Roubaud é apresentado sob o lema de Rimbaud, "é preciso ser absolutamente moderno", e também como explorador das fronteiras da lógica. Co-fundador do grupo Oulipo ("Ouvroir de Littérature Potentielle", isto é, um workshop de literatura potencial), esse matemático empenhou-se com outros membros (Queneau, Perec ou Italo Calvino) em dissolver as formas cristalizadas, nem que fosse ao custo de fórmulas aritméticas (por exemplo, o S-7: substituição de um substantivo pelo sétimo que segue no dicionário).

Capa de grife
Um esforço semelhante de explorar os potenciais insuspeitados da linguagem constitui, sem dúvida, um dos vetores capitais da poesia atual (e das revistas de poesia). A diferença é que os oulipianos franceses se sentiam ainda interpelados pelo pensamento sistemático (filosofia, lógica, matemática) -traço cada vez mais ausente nas iniciativas poéticas recentes. Estas convergem mais para o pólo do engajamento. Em uma entrevista, Claudio Daniel entende sua própria poesia como "partitura do bizarro" e como uma reflexão crítica "sobre a lógica do poder estabelecido". Centrada em um tema, "Inimigo Rumor" (nš 14, R$ 25, tel. 0/xx/21/ 2540-0037) distancia-se em vários sentidos da busca de diversidade das outras quatro revistas. Já de longe se destaca a bela capa, design italiano que faz pensar, imediatamente, na "grife" Cosac & Naify. Além do aspecto gráfico, moderníssimo, o belo volume pesa na mão, suas folhas abrindo-se como aqueles antigos volumes artesanais feitos para sobreviver ao tempo. Essa é a sua aparência gráfica, mas, quanto às suas páginas, são ao todo 240 -e bem cheias-, um livro robusto como uma antologia acadêmica. Nada de papel cuché. Nenhuma economia de espaço privilegiando os brancos. Sobre as folhas de boa qualidade, mas sem luxo e sem ilustrações, muita informação: mais de cem autores apresentando poemas em prosa. São na maioria brasileiros, mas há também portugueses e espanhóis, além de estrangeiros, argentinos, franceses, japoneses e gregos (o já bem conhecido Giórgios Seféris, Kiki Dimoulá e Nikos Kavvadias). Parece, à primeira vista, uma antologia. Mas há também ensaios críticos que tematizam as relações entre poesia e prosa e questionários sobre o suporte material da poesia-literatura, o livro. O editorial situa o poema em prosa referindo-se a Baudelaire, um dos ilustres exploradores da tensão entre o orgânico e o fragmentar. Poderia também ter mencionado outras etapas da história desse gênero que aparece, por exemplo, em Mallarmé, como uma válvula de escape, uma prática que alivia as excessivas exigências formais que o poeta enfrenta nos seus outros trabalhos. De todo modo, o editorial coloca como problema para a crítica atual a questão de saber qual é o lugar que ocupa o poema em prosa numa época que se desvinculou das formas para as quais ele constituía o contrapeso. "Sibila - Revista de Poesia e Cultura" (ano 3, nš 4, R$ 25, tel. 0/ xx/11/4612-9666) preenche um espaço muito prezado na tradição política e cultural, artística e literária brasileira desde o modernismo. Fiel a essa tradição libertária, inicia com um "Desmanifesto" pela abertura, pela multiplicidade e pela elaboração de perspectivas que visam a agregar e incluir o heterogêneo na cultura multifacetada brasileira e mundial. Por isso é favorável ao "poder da invenção" e "da criação de alternativas, para além das idéias de oposição e resistência" (entrevista com Michael Hardt). Por isso se inscreve claramente no marco da intelectualidade de esquerda que levou ao restabelecimento da democracia no Brasil. O futuro mostrará se o entusiasmo com o modelo político-cultural do Rio Grande do Sul (que os entrevistadores e o entrevistado devem ter observado a uma distância que filtrou os traços totalitários da política cultural do PT gaúcho) confirmará a idéia de que Porto Alegre "é um evento que não só imagina alternativas em conjunto, mas que apresenta um tipo de coerência... global entre os vários movimentos e assuntos sociais". Diante do desafio da desagregação das antigas categorias sociológicas e políticas (o "popular-nacional" cedendo à "multidão"), a poesia é vista como podendo "agir como ponto de resistência... e criar alternativas". Bem ancorados na tradição do engajamento que vai de Brecht a Jean Genet e dos poetas beats às vanguardas brasileiras, "Sibila" e seu entrevistado, Michael Hardt [professor de literatura na Universidade Duke (EUA) e co-autor, com Antonio Negri, de "Império"], atribuem à arte e à cultura um papel importante e nobre, apesar de "uma espécie de desorientação de muitos artistas e críticos da arte literária pela desintegração dessas várias fronteiras [ideológicas, sociológicas e tecnológicas]".

Leque variado
Sob o signo dos ideais emancipatórios e do despojamento visual (não há intervenções gráficas na revista nem fotografias nem ilustrações), "Sibila" oferece ao leitor um leque diversificado de literaturas: poesia nacional e estrangeira, debates sobre poesia e tradução, música e arquitetura, projetos artísticos e edição. Destaquemos, entre muitos outros artigos interessantes, a instigante apresentação de Robert Creeley em "Da Poesia da Experiência à Experiência da Poesia" e a conversa de Régis Bonvicino com Douglas Messerli. "Et Cetera - Literatura & Arte" (nš zero, R$ 25, tel. 0/xx/41/264-9463). Num elegante formato quase quadrado (27 x 24 cm), esta revista atrai pela sua elaboração gráfica. Um ambíguo sorriso de fauno ou ninfa capta e seduz instantaneamente o olhar, que desliza de página em página passando por inúmeras ilustrações e fotos. O editorial, jocoso-sério, apresenta-se, "entre outras coisas", "sem esperança nem temor" -o que é um excelente lema para uma revista de literatura e arte no Brasil. Alinha, com aliterações e com nexos ricos, prolíficos, talvez proliferantes, as palavras-chave que fornecem os múltiplos vetores do programa editorial: "Palavras são invocações ao amarelo (girassóis), loucura de van gogh, mas com cubos e esquadros..., pois palavras são jardins de incitação..., pois palavras são desafios, contendas e delendas, que recusam o ordinário e sonham o extraordinário, redesenham novas atlântidas e descartam os fiapos do fácil, do fétido e do fútil, pois palavras são mantras, sopros e mandalas, cantos sagrados, encantos e segredos...".

Morte da poesia
No centro das 200 páginas da revista está a enquete "A Poesia Está Morta, mas Juro que Não Fui Eu", em que se encontra (entre outros posicionamentos) a irônica estocada: "A poesia não morreu, mas todo mundo virou poeta, e todo poeta clone de outro clone. Será que a morte é apenas a clonagem da vida?". E em volta disso tudo há poemas visuais, séries fotográficas, poesia atual, além de inéditos de poetas já consagrados (Borges, Manuel de Barros), curiosidades pantagruélicas como "O Elogio da Bosta", os últimos poemas de Arnaldo Antunes, cheios de inovações, que falam de comunicação moderna, de dimensões novas da sonoridade e da visualidade.
Os críticos são defendidos em boa hora por Jamil Snege: "Você já imaginou se não existissem esses abnegados, dispostos a separar o joio do trigo, que imensa quantidade de besteiras correríamos o risco de ler?". Impossível listar toda a diversidade de artigos nacionais e internacionais que vão da poesia musical e plástica do cubano José Kozer a uma das letras de Kurt Cobain, do grupo de rock Nirvana ("Jesus don't want me for a sunbeam") ou fragmentos de "Dry Rust", de Moacir Amâncio.


Kathrin H. Rosenfield leciona teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (L&PM).


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