São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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+ Cultura

O terrível Godard

Publicado na Inglaterra, "Tudo É Cinema" enfoca a vida do grande nome da nouvelle vague, da consagração nos anos 60 à relação tensa com Truffaut e os dias atuais

NIGEL ANDREWS

Q uem quer saber de um enfant terrible quando ele envelhece? Essa é a questão que ocupa posição central na volumosa biografia de Jean-Luc Godard por Richard Brody -"Everything Is Cinema - The Professional Life of Jean-Luc Godard" [Tudo É Cinema - A Vida Profissional de Jean-Luc Godard, ed. Faber and Faber, 720 págs., 30, R$ 92].
Como se os desafios que cada filme de Godard apresenta individualmente não fossem suficientes -as estruturas em forma livre, a prolixidade de alusões, a fertilização cruzada de gêneros-, há um enigma maior em sua carreira e em sua trajetória.
Quanto mais tempo Godard persiste em seu trabalho, tanto menos o público parece saber como defini-lo. As delinqüências artísticas que o público costumava amar no jovem rebelde parecem menos adoráveis quando o rebelde envelhece, se torna ranzinza e, em filmes recentes como "Nossa Música" e "Elogio ao Amor", parece cada vez mais obscuro.
O que exatamente aconteceu com o criador de "Acossado", filme que rejuvenesceu o cinema europeu dos anos 60 com seu tratamento anárquico e revertido de todos os temas? Cabe ao biógrafo descobrir. Brody tem uma boa testemunha a convocar: Godard em pessoa. Nenhum diretor oferece definições concisas melhores: "Nós esbarramos no mundo do cinema como homens das cavernas na Versalhes de Luís 15", ele disse sobre os diretores da nouvelle vague.

Cinema aceitável
Godard era grande nos anos 60 porque seus filmes representavam um clamor controlado. Gritavam, zumbiam, pensavam em voz alta. Não admitiam zonas de exclusão no cinema: era aceitável que personagens falassem, discursassem e recitassem literatura e que o diretor ocupasse a tela com citações ou legendas de "agitprop". Uma "trama" era considerada desimportante: apenas o argumento que o criador usava para vender o filme aos financistas e, em seguida, ignorava ao filmar.
Acima de tudo, nessa nova forma de pichação virtual, as cores e os conceitos se sobrepunham, de modo que comédia, música, suspense, política e realismo (o que quer que isso fosse) disputavam espaço ferrenhamente.
Era bom demais para durar, e não durou. Qualquer artista excitável como Godard arrisca deixar-se excitar pelas coisas erradas e, na febre dos anos 60, tropeçou no maoísmo e perdeu o sentido e a sensibilidade. A essa altura, o livro de Brody se torna difícil de ler. Ele nos dá más notícias -sobre o fato de Godard ter se tornado inatingível- ao longo de 40 anos e 300 páginas.
A amena demência de "Week-End à Francesa", o último dos grandes filmes de Godard, despencou nas décadas de samizdat, que Godard dedicou a fazer filmes para ele mesmo e sua turma -e que o diabo leve o restante do potencial público de cinema. Já o Godard dos primeiros anos, em contraste, era o rosto aceitável do modernismo cinematográfico. Brody o compara a Picasso. Por que não?
Como o pintor, ele surpreendeu uma geração com seus pictogramas neoprimitivos -que, no caso dele, corriam a 24 quadros por segundo. O modernismo era uma arte de fragmentos, carregada de mensagens, mas ainda assim elementar, eclética, conduzida pelo pensamento e pela inovação apaixonada.

Volta ao entusiasmo
Quem quer que pense que o jovem Godard, com sua chuva de citações e referências ao longo dos filmes, não passava de um exibicionista intelectual deve se lembrar que ele era amigo de Gide e Sartre, como Brody aponta; que ele lia vorazmente; e que era capaz de defender de maneira brilhante uma posição intelectual.
Brody captura o entusiasmo do jovem Godard. O cinema dele era tão vivo que atraía até mesmo críticos tendentes ao populismo -como Pauline Kael, do "New York Times"- e hoje influencia cineastas tão distintos quanto Jim Jarmusch e Quentin Tarantino.
O auge da carreira de Godard sobreviveu como herança cinematográfica até mesmo às mais estridentes questões -no reexame promovido por Brody- no que diz respeito às crenças e simpatias políticas do cineasta. Ele era ou é anti-semita? Era ou é um ideólogo de extrema esquerda?
Também há histórias de horror sobre seu comportamento pessoal. Ele abandonou amantes, abandonou cônjuges e se voltou contra antigos amigos. Seu ataque a um deles provocou uma famosa carta de 20 páginas na qual a vítima, François Truffaut, criticou de maneira feroz a perfídia e as oscilações políticas de Godard.
Nos anos 60, tudo isso era perdoado por amor aos filmes. Mas, de lá para cá, passamos quatro décadas simplesmente tentando esquecer.
Em festivais, cada novo filme seu é recebido com uma questão ou prece silenciosa: "Será que é este?". Godard conseguirá recuar no tempo? Ou voltar a transformá-lo? Será que voltará a fazer com que nossos corações batam enquanto nossas mentes fervilham? Ou o enfant terrible enfim, e irrecuperavelmente, como pode acontecer a qualquer artista, se transformou em um ex-gênio ranzinza, turrão, obscurantista e desafiadoramente intratável?


NIGEL ANDREWS é crítico de cinema do "Financial Times", onde saiu a íntegra deste texto. Tradução de Paulo Migliacci .


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