São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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Claro-escurosda história

Guinada ideológica do nicaragüense Daniel Ortega, que passou de guerrilheiro a presidente conservador, revela as idas e vindas da América Latina

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

A marcha dos acontecimentos históricos assemelha-se a um projetor de luz que muda de foco com maior ou menor rapidez, lançando ora luzes, ora sombras. Assim, no tempo da Guerra Fria, a América Central esteve em evidência, pela presença de Cuba, pelas lutas de guerrilha, pela escancarada intervenção norte-americana em países como a Guatemala, El Salvador e a Nicarágua.
Com a queda do Muro de Berlim [em 1989], a redução da importância de Cuba, a paz mal ou bem lograda, a região entrou na sombra. Nem por isso é o caso de esquecê-la, como o exemplo da Nicarágua demonstra. Em primeiro lugar, a Nicarágua -país de cerca de 5,8 milhões de habitantes- conta com um herói mítico, Augusto César Sandino, "o general de homens livres", que combateu os invasores americanos, entre 1927 e 1933, até ser morto numa armadilha, preparada pela Guarda Nacional.
Sandino deu nome, muitos anos depois, à Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), a guerrilha que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979. Na Junta de Reconstrução Nacional, que dirigiu o país logo em seguida, a FSLN foi a força dominante, e nela se destacou a figura de Daniel Ortega.
Tanto a junta quanto o governo de Ortega, eleito com um programa revolucionário de reforma agrária, nas eleições de 1984, foram um dos alvos preferenciais dos órgãos de segurança dos EUA, durante a presidência de Ronald Reagan. O oficial da Marinha Oliver North foi responsabilizado por um escandaloso esquema (Irã-Contras), montado com o objetivo de burlar a proibição de venda de armas ao Irã e destinar o produto ao financiamento dos "contras" -a guerrilha anti-sandinista que tentou derrubar Ortega, numa luta que causou em torno de 30 mil mortes.
Derrotado em duas eleições subseqüentes, Ortega voltou ao poder em 2006, pela maioria simples de cerca de 38% dos votos. Em sua posse, estiveram os presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia), e o primeiro lhe deu as bênçãos, por estar à frente de um país que, ao lado de outros, inclusive o Brasil, iria realizar uma revolução socialista pacífica na América Latina.
Na verdade, se muita coisa e muita gente mudou na América Latina, nas últimas décadas, talvez ninguém tenha mudado mais do que Daniel Ortega.

Católico conservador
Em primeiro lugar, ele chegou ao poder graças ao apoio de uma facção da direita, liderada pelo ex-presidente Arnoldo Alemán, com a qual hoje governa. No plano do comportamento social, tornou-se um fervoroso conservador católico, sustentando a legislação vigente que proíbe estritamente o aborto.
Para enfrentar os problemas sociais da Nicarágua, em que 80% da população subsiste com US$ 2 ao dia, Ortega lançou um programa semelhante ao Fome Zero, aparentemente com poucos resultados.
Seu modelo, porém, não é Lula, e sim Chávez, tanto por razões materiais quanto ideológicas. Materialmente, a Venezuela responde por todo o fornecimento de petróleo à Nicarágua, a preços subsidiados. Ideologicamente, o presidente nicaragüense se afina com o discurso chavista, com seus ataques à oligarquia e aos EUA, país que chegou a definir como "a maior e mais impressionante ditadura que a história já conheceu". Mas, à semelhança de Chávez, as ações de Ortega são mais conciliatórias do que sua retórica, como mostra, por exemplo, um acordo firmado com o FMI, nos mesmos moldes dos presidentes anteriores.
No âmbito da administração, o governo Ortega é, na verdade, o governo dos ortegas, a exemplo do casal Kirchner, na Argentina. Rosario Murillo, mulher do presidente, é a segunda pessoa mais poderosa da Nicarágua, ocupando um cargo equivalente à chefia da Casa Civil e vários outros, além de falar, por vezes, em nome do presidente.
Para que não se tenha uma visão inteiramente negativa da Nicarágua, lembremos que a violência nas ruas -excluída, portanto, a violência doméstica- tem um dos índices mais baixos da América Central, aproximando-se dos da Costa Rica -o eldorado da região.

Ruptura
Em síntese, Ortega está muito longe dos tempos lendários do sandinismo ou de encarnar a figura de um líder social-democrata. Nomes respeitáveis da esquerda latino-americana, como o escritor Sergio Ramírez ou o teólogo da libertação e poeta Ernesto Cardenal romperam com ele há muito tempo. Como se explicaria então sua volta ao poder?
De um lado, pela aliança à direita, que lhe deu um lustre de confiabilidade entre parte das elites; de outro, por contar com o voto da maioria dos pobres e miseráveis do país, para quem, se as coisas vão mal, a culpa não é de Ortega.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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