São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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Operário-padrão

Após começar a trabalhar aos 13 anos, ex-campeão de corte está hoje, aos 35, com uma hérnia e a coluna "travada"

DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP

V aldecir da Silva Reis, o graveto que consome seus dias deitado na cama a ver TV, já foi um campeão. Não tinha para ninguém. Na lavoura, batia recorde em cima de recorde.
Em 20 de março de 2006, colheu 21 toneladas. Em 17 de maio, 28. Oito dias depois, rasgou 560 metros lineares de plantação, cortando cinco linhas de cana para receber por uma -é o critério legal. A rigor, derrubou 2,8 km lineares.
O contracheque da empresa Meia Lua imprime a marca da jornada: 52,47 toneladas. Quase uma tonelada por quilo de gente -ele pesava 56 kg. Hoje diz ter 49 kg. Parece menos.
O cortador que arrancava suspiros dos colegas incrédulos definha na casa onde vive de favor em Engenheiro Coelho.
Na roça, não sentia dores. Em 2006, a coluna "travou" e ele não retornou ao canavial. Aos 35 anos, sonha com o dia de voltar ao trabalho em que se tornou o herói dos amigos.
Por maior que seja a vontade, ele desconfia de que não empunhará o facão novamente. Os exames diagnosticaram problemas na coluna lombar, hérnia de esôfago e desequilíbrios nos indicadores de urina.
Valdecir se queixa de dores de cabeça, na barriga, no peito (não fez avaliação cardíaca), no saco escrotal, no ombro direito, nos braços, joelhos e pernas; de falta de força para levantar uma garrafa d'água; de cansaço após caminhar 800 metros; de ouvir mal por um ouvido.
O lado esquerdo do tórax é mais desenvolvido; com o braço esquerdo ele atirava a cana na leira, o corredor aberto na terra onde fica a cana colhida.

Segunda divisão
Ainda que o farrapo humano que fala baixinho e sem fôlego sobre seu infortúnio fosse criação de um magistral ator stanislavskiano, ultra-realista, nem assim seria possível bolar uma história com princípio, meio e fim como a dele -os repórteres escarafuncharam o caso com base em fartura de documentos e depoimentos.
Valdecir começou a cortar cana aos 13 anos. Empresas premiavam seus feitos com bicicleta e aparelho de som.
Após "travar" em 2006, obteve auxílio-doença da Previdência. Na perícia de 5 de maio passado, no entanto, foi considerado apto para o trabalho. Sua renda é zero.
Mora com uma filha de casamento anterior e a mulher, Helena. Ela ganha R$ 30 por faxina. Faz duas por semana.
O trabalho para o qual o INSS não identifica "problema grave" para Valdecir exercer "não se pode comparar ao de um escriturário", diz um executivo de usina. Anunciam-se vagas para escriturário com 30 a 40 horas de carga semanal. Em período idêntico, o cortador de cana em SP trabalha, no papel, 44 horas, em seis dias.
De escriturários e cortadores se exigem 35 anos de serviço para se aposentar. A maioria desses, contudo, é safrista: trabalha oito meses por ano na atividade. Não soma 12 meses de contribuição.
O desempenho de alguns é tão exuberante que os célebres campeões cubanos das campanhas de corte de cana aqui pegariam segunda divisão. Em 1965, Fidel Castro condecorou cinco deles, de marcas de 14 a 19,7 toneladas. Na Meia Lua, ex-empregadora de Valdecir, um cortador bateu 35 toneladas em 20 de junho. Os repórteres tentaram falar com a empresa, mas não encontraram seus endereço e telefone.
Os campeões, como são chamados na lavoura os de melhor performance, costumam ser magros e fortes. Valdecir tem 1,65 m de altura.
Samuel Gomes, 38, é um dos recordistas de Guariba. Mede 1,85 m. Barack Obama, 1,86 m. O peso do senador americano é estimado em 77 kg a 82 kg. Samuel, que tem 68 kg, conta ter cortado neste ano 27 toneladas em um dia na usina São Carlos.
Com tanta exigência física, há nove homens (92%) por mulher na lavoura canavieira do Brasil. Em nove culturas relevantes, os trabalhadores de menor média etária são os da cana, 35,5 anos -dados compilados pelos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. Oliveira (USP).

Rotina
Ônibus das empresas apanham os cortadores em casa entre 5h e 6h. No campo, a jornada inicia às 7h. Muitos "almoçam" antes de começar a colheita. Há direito a intervalos de dez minutos, de manhã e à tarde. Pelas 10h ou 11h, reserva-se uma hora para almoço -poucos cumprem todo o tempo. O serviço termina às 15h ou 16h, mas há excessos. Os trabalhadores chegam às suas casas entre as 17h e as 19h. Dormem pelas 20h, 21h, para acordar entre as 3h30 e as 4h30.
Pesquisa de análise ergonômica em fase de conclusão, financiada pela Fapesp e coordenada pelos pesquisadores Rodolfo Vilela e Erivelton de Laat, descreve os movimentos dos cortadores.
Um deles, que colheu 11,5 toneladas, deu em um dia 3.792 golpes com o facão e fez 3.994 flexões de coluna. O facão pesa 600 gramas. Golpeia-se a cana no pé, onde se concentra a sacarose. O cortador destro abraça o feixe de cerca de dez canas com o braço esquerdo (ou, vara por vara, com a mão), curva-se e golpeia com o braço direito. Com o esquerdo, atira a cana na leira, de onde a máquina carregadeira a leva.
Em um grupo, a freqüência cardíaca média em repouso era de 57,4 batimentos por minuto. No trabalho, de 112, variação exagerada, conforme os pesquisadores (a diferença deveria se limitar a 35).
A atividade dos lavradores é comparada à de maratonistas, com repetição fatigante de movimentos. Maria Zeferina Baldaia, campeã da Maratona de São Paulo em 2008, foi cortadora de cana no interior. "Uma coisa tem muito a ver com a outra", confirma.
Sindicatos de empregados pedem a redução da carga semanal para 40 horas, com dois dias de descanso. Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, fundação de pesquisas do Ministério do Trabalho, defende 30 horas, com cinco jornadas de seis horas por semana.
As empresas rejeitam as reivindicações.
É essa vida que Valdecir fantasia retomar. Ele se esconde em casa. "As pessoas vêem a gente na rua e falam que é vagabundo. Não vêem o que a gente tem por dentro, o que a gente sente."


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