São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um heroísmo crítico

Benjamin foi o primeiro a perceber a genialidade de Brecht e Kafka, ao desenvolver uma prática de leitura que une o monástico ao erótico

DOLF OEHLER

O dia em que a tese de Walter Benjamin sobre "A Origem do Drama Barroco Alemão" foi recusada pela Universidade Goethe de Frankfurt marca uma data auspiciosa nos anais da história da crítica moderna.
Pois o fracasso fortaleceu em seu autor uma ambição que acalentava secretamente desde o início: a de fazer reviver, num momento decisivo da história e do pensamento alemães, a tradição da crítica filosófica, à qual dedicara uma brilhante primeira tese -"O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão" [Iluminuras].
Elevar a crítica à categoria que ela ocupara na época de Novalis e dos irmãos Schlegel [segunda metade do século 18, início do 19], restituir-lhe a força e a autoridade, renovando-a de cabo a rabo, havia sido o programa de Benjamin desde o fim da Primeira Guerra.
Para colocá-lo em prática, ele pensara em fundar uma revista que deveria substituir os discursos mais ou menos inconsistentes da crítica contemporânea, preocupada sobretudo com as expectativas e o gosto do grande público, por um rigor inexorável cujo modelo ele havia encontrado nos "Athenäum" dos irmãos Schlegel.
Foi no contexto desse projeto de revista, a "Angelus Novus", deixando clara sua vocação messiânica, que ele elaborou sua teoria da tradução.

O papel da tradução
De fato, ele dava às traduções uma importância primordial para a renovação da língua alemã, cuja crise pressentia. Ela eclodiria sob o nazismo, e o alemão jamais se recuperou, talvez nunca mais se recupere.
E é nesse mesmo contexto que, sempre rivalizando com Friedrich Schlegel -aquele de um ensaio magnífico sobre o "Wilhelm Meister", de Goethe-, Benjamin redigiu seu estudo sobre "As Afinidades Eletivas", do mesmo Goethe.
Mas, como a revista não veio à luz e o grupo dos novos críticos que ele esperava demorasse a se formar, foi publicado na revista do poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal ["Neue Deutsche Beiträge", Novas Contribuições Alemãs], impressionado por sua beleza e pelo vigor do pensamento do jovem autor que ainda lhe era desconhecido.
Benjamin decidiu tornar-se o primeiro crítico literário sob a República de Weimar e ser reconhecido como tal. Chegou a fazer nome rapidamente ao publicar em revistas, no jornal "Frankfurter Zeitung" e trabalhando para o rádio.
Entretanto, na medida em que elaborava sua concepção da tarefa do crítico, sentia mais imperiosamente a necessidade de escolher seu campo no debate intelectual, de aderir a um movimento coletivo ou, pelo menos, de encontrar aliados e mesmo modelos literários.
É verdade que, na época, não faltavam grandes figuras na literatura alemã. Ele percebeu com rapidez -e mais profundamente que qualquer outro- a importância emblemática de Karl Kraus, Bertolt Brecht, Alfred Döblin e sobretudo Franz Kafka. A obra deste, ainda não totalmente publicada, encontraria na pessoa de Benjamin seu primeiro comentarista em simbiose com o autor.

A capital do século 19
Mas a verdadeira vida literária, para ele, estava alhures: em Paris, que passaria a celebrar como a capital do século 19, como o lugar do mundo onde todos os desafios da modernidade podiam ser estudados em estado puro. A partir do fim dos anos 1920, enquanto não pára de se deslocar entre Berlim e Paris, ele faz da capital de Baudelaire, que se tornara a dos surrealistas, seu lugar preferido, um centro que atrai como imã seu pensamento.
Quando publica "Rua de Mão Única" [ed. Brasiliense] em Berlim, em 1928, tem consciência de estar bem mais próximo dos textos da vanguarda parisiense, como "O Camponês de Paris", de Aragon, ou "Nadja", de Breton, do que da produção contemporânea alemã ou mesmo da Berlim dos "anos loucos" [da década de 1920].
Numa carta a Von Hofmannsthal, fala de "Rua de Mão Única" como uma primeira tentativa de confrontar Paris. É o prelúdio a outra obra, dedicada às passagens parisienses. "Passagens" deveria desenvolver uma fenomenologia do século 19 a partir de Paris lida como um livro, e assim fazer par com sua pequena obra sobre o drama barroco, que apresentara a Alemanha do século 17 a partir de um gênero literário.
Não devemos nos surpreender com o fato de que o autor de "Rua de Mão Única", crítico alemão que quer ler sua própria época por meio de uma meditação sobre Paris, se encontre isolado entre os homens de sua geração na Alemanha.
Mas essa defasagem, de que ele se queixa em uma carta, deveria prepará-lo melhor que os outros, de certa forma, para o exílio que ele assumiria. Pelo menos poderíamos supô-lo. Muitos de seus amigos, como Gerschom Scholem, Theodor Adorno, Ernst Bloch, Werner Kraft ou Bertolt Brecht, o superariam de uma forma ou de outra, enquanto Benjamin cairia numa tal solidão que somos inclinados a compará-lo a Kafka.
No momento de "Rua de Mão Única", seu isolamento ainda não parece pesar muito. Não se sente próximo dos surrealistas, chamado a exercer um papel importante no que chama de combate literário?
"O crítico é um estrategista no combate literário", diz a primeira de suas teses sobre a técnica do crítico. le insiste na importância capital da polêmica, da crítica acirrada, sem deixar de evocar outro imperativo: o uso de uma língua artística. Ao organizar essas teses em forma de série, o autor de "Rua de Mão Única" tem o cuidado de lembrar que concebe a atividade crítica como indissociável da técnica de escritor.
Técnica que poderíamos qualificar de monástica, de um lado, lembrando as exigências de Kafka, e, de outro, inseparável de uma prática erótica da leitura.
As 13 teses sobre os livros e as jovens públicas, ludicamente intituladas "13", precedidas de epígrafes tiradas de Proust e Mallarmé, atacando vigorosamente o ideal conformista do amor pelos livros, lançam a idéia de um proxenetismo da crítica.
Estamos aqui no limiar de "Passagens", muito perto de uma crítica do conforto e do interior burgueses, o que leva Benjamin a citar, exemplo truculento, estes versos das "Flores do Mal", de Baudelaire: "A cabeça... /Sobre a mesa de cabeceira, como um ranúnculo/ Repousa". Sua utilização do poema "Uma Mártir" é significativa de seu método.
Arrancando suas citações de seu contexto original -ou trechos inteiros que provocam seu interesse-, ele os contempla como emblemas e os transforma em "imagens dialéticas" que teriam, segundo ele, a faculdade de esclarecer repentinamente o que liga o hoje ao passado, o momento do leitor ao momento do texto.
A intensidade, ainda que programática, do olhar crítico de Benjamin se deve sem dúvida a seu temperamento melancólico, como já se disse e redisse. Ela se deve sobretudo a sua convicção de que o combate literário é um combate decisivo, em que está em jogo a salvação ou a perda da humanidade.

Interromper a história
Não mais acreditando, assim como no tempo dos profetas, na missão de um poeta-vidente, Benjamin retoma por sua conta o que ele diz ser a intenção mais profunda de Baudelaire, como a do bíblico Josué, que faz ruir as muralhas de Jericó: interromper o curso do mundo.
Cada leitura, cada descoberta de um livro desconhecido ou esquecido -por exemplo, "A Eternidade pelos Astros", de Auguste Blanqui-, pode criar a oportunidade, aos olhos do Benjamin do final dos anos 30, de interromper a continuidade de uma história que se dirige necessariamente, se não a lermos de maneira diferente, para a catástrofe.
Sob esse aspecto, Baudelaire será sempre a seus olhos o maior escritor, cujos textos, lúcidos em sua própria violência, propõem, porque intrinsecamente diferentes, uma leitura que permite escapar do mundo capitalista. Os dois outros escritores de igual envergadura são, para ele, Kafka e Proust.
Sua conceituação é adequada a sua técnica interpretativa. Longe de serem pacientemente organizados, os conceitos críticos surgem em seus textos como Palas Atena da fronte de Zeus. Brotam repentinamente, numa fulguração. Impõem-se ao leitor com uma força ofuscante. Às vezes vêm coroar demonstrações metafóricas e guardam um halo poético.
Como para a noção de aura em "A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica", em que Brecht via algo de místico. Pois, por mais livre que seja, seu procedimento é também mimético: mergulha em Breton quando escreve sobre os surrealistas e entra em Kafka quando inventa situações análogas às de seus textos.
Os seis volumes de sua correspondência, publicados em 2000 pela editora Suhrkamp, são tão patéticos, senão mais, quanto sua obra de crítico. Ele não cessa de falar desta em suas cartas.
Para demonstrar a profunda afinidade de Benjamin com Baudelaire -o qual ele salientou que era, enquanto herói e "flâneur", o verdadeiro tema da modernidade-, o terrível relato das tribulações de um intelectual judeu revolucionário na "era dos extremos" constitui um material incomparável.


DOLF OEHLER é professor na Universidade de Bonn (Alemanha) e autor de "Terrenos Vulcânicos" (Cosacnaify), "Quadros Parisienses" e "O Velho Mundo Desce aos Infernos" (ambos pela Companhia das Letras).
Este texto saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.



Texto Anterior: + cronologia
Próximo Texto: Performance anônima
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.