|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Um heroísmo crítico
Benjamin foi o primeiro a perceber a genialidade de Brecht e Kafka, ao desenvolver uma prática de leitura que
une o monástico ao erótico
DOLF OEHLER
O dia em que a tese
de Walter Benjamin sobre "A Origem do Drama
Barroco Alemão"
foi recusada pela Universidade
Goethe de Frankfurt marca
uma data auspiciosa nos anais
da história da crítica moderna.
Pois o fracasso fortaleceu em
seu autor uma ambição que
acalentava secretamente desde
o início: a de fazer reviver, num
momento decisivo da história e
do pensamento alemães, a tradição da crítica filosófica, à
qual dedicara uma brilhante
primeira tese -"O Conceito de
Crítica de Arte no Romantismo
Alemão" [Iluminuras].
Elevar a crítica à categoria
que ela ocupara na época de
Novalis e dos irmãos Schlegel
[segunda metade do século 18,
início do 19], restituir-lhe a força e a autoridade, renovando-a
de cabo a rabo, havia sido o
programa de Benjamin desde o
fim da Primeira Guerra.
Para colocá-lo em prática, ele
pensara em fundar uma revista
que deveria substituir os discursos mais ou menos inconsistentes da crítica contemporânea, preocupada sobretudo
com as expectativas e o gosto
do grande público, por um rigor inexorável cujo modelo ele
havia encontrado nos "Athenäum" dos irmãos Schlegel.
Foi no contexto desse projeto de revista, a "Angelus Novus", deixando clara sua vocação messiânica, que ele elaborou sua teoria da tradução.
O papel da tradução
De fato, ele dava às traduções
uma importância primordial
para a renovação da língua alemã, cuja crise pressentia. Ela
eclodiria sob o nazismo, e o alemão jamais se recuperou, talvez nunca mais se recupere.
E é nesse mesmo contexto
que, sempre rivalizando com
Friedrich Schlegel -aquele de
um ensaio magnífico sobre o
"Wilhelm Meister", de Goethe-, Benjamin redigiu seu estudo sobre "As Afinidades Eletivas", do mesmo Goethe.
Mas, como a revista não veio
à luz e o grupo dos novos críticos que ele esperava demorasse
a se formar, foi publicado na revista do poeta austríaco Hugo
von Hofmannsthal ["Neue
Deutsche Beiträge", Novas
Contribuições Alemãs], impressionado por sua beleza e
pelo vigor do pensamento do
jovem autor que ainda lhe era
desconhecido.
Benjamin decidiu tornar-se o
primeiro crítico literário sob a
República de Weimar e ser reconhecido como tal. Chegou a
fazer nome rapidamente ao publicar em revistas, no jornal
"Frankfurter Zeitung" e trabalhando para o rádio.
Entretanto, na medida em
que elaborava sua concepção
da tarefa do crítico, sentia mais
imperiosamente a necessidade
de escolher seu campo no debate intelectual, de aderir a um
movimento coletivo ou, pelo
menos, de encontrar aliados e
mesmo modelos literários.
É verdade que, na época, não
faltavam grandes figuras na literatura alemã. Ele percebeu
com rapidez -e mais profundamente que qualquer outro-
a importância emblemática de
Karl Kraus, Bertolt Brecht, Alfred Döblin e sobretudo Franz
Kafka. A obra deste, ainda não
totalmente publicada, encontraria na pessoa de Benjamin
seu primeiro comentarista em
simbiose com o autor.
A capital do século 19
Mas a verdadeira vida literária, para ele, estava alhures: em
Paris, que passaria a celebrar
como a capital do século 19, como o lugar do mundo onde todos os desafios da modernidade
podiam ser estudados em estado puro. A partir do fim dos
anos 1920, enquanto não pára
de se deslocar entre Berlim e
Paris, ele faz da capital de Baudelaire, que se tornara a dos
surrealistas, seu lugar preferido, um centro que atrai como
imã seu pensamento.
Quando publica "Rua de Mão
Única" [ed. Brasiliense] em
Berlim, em 1928, tem consciência de estar bem mais próximo
dos textos da vanguarda parisiense, como "O Camponês de
Paris", de Aragon, ou "Nadja",
de Breton, do que da produção
contemporânea alemã ou mesmo da Berlim dos "anos loucos"
[da década de 1920].
Numa carta a Von Hofmannsthal, fala de "Rua de Mão
Única" como uma primeira
tentativa de confrontar Paris. É
o prelúdio a outra obra, dedicada às passagens parisienses.
"Passagens" deveria desenvolver uma fenomenologia do século 19 a partir de Paris lida como um livro, e assim fazer par
com sua pequena obra sobre o
drama barroco, que apresentara a Alemanha do século 17 a
partir de um gênero literário.
Não devemos nos surpreender com o fato de que o autor de
"Rua de Mão Única", crítico
alemão que quer ler sua própria
época por meio de uma meditação sobre Paris, se encontre
isolado entre os homens de sua
geração na Alemanha.
Mas essa defasagem, de
que ele se queixa em uma
carta, deveria prepará-lo melhor que os outros, de certa
forma, para o exílio que ele
assumiria. Pelo menos poderíamos supô-lo. Muitos de
seus amigos, como Gerschom Scholem, Theodor
Adorno, Ernst Bloch, Werner Kraft ou Bertolt Brecht, o
superariam de uma forma ou
de outra, enquanto Benjamin cairia numa tal solidão
que somos inclinados a
compará-lo a Kafka.
No momento de "Rua de
Mão Única", seu isolamento
ainda não parece pesar muito. Não se sente próximo
dos surrealistas, chamado a
exercer um papel importante no que chama de combate
literário?
"O crítico é um estrategista no combate literário", diz
a primeira de suas teses sobre a técnica do crítico. le
insiste na importância capital da polêmica, da crítica
acirrada, sem deixar de evocar outro imperativo: o uso
de uma língua artística.
Ao organizar essas teses
em forma de série, o autor de
"Rua de Mão Única" tem o
cuidado de lembrar que concebe a atividade crítica como
indissociável da técnica de
escritor.
Técnica que poderíamos
qualificar de monástica, de
um lado, lembrando as exigências de Kafka, e, de outro,
inseparável de uma prática erótica da leitura.
As 13 teses sobre os livros e
as jovens públicas, ludicamente intituladas "13", precedidas de epígrafes tiradas
de Proust e Mallarmé, atacando vigorosamente o ideal
conformista do amor pelos
livros, lançam a idéia de um
proxenetismo da crítica.
Estamos aqui no limiar de
"Passagens", muito perto de
uma crítica do conforto e do
interior burgueses, o que leva
Benjamin a citar, exemplo
truculento, estes versos das
"Flores do Mal", de Baudelaire: "A cabeça... /Sobre a mesa
de cabeceira, como um ranúnculo/ Repousa".
Sua utilização do poema
"Uma Mártir" é significativa
de seu método.
Arrancando suas citações
de seu contexto original -ou
trechos inteiros que provocam seu interesse-, ele os
contempla como emblemas e
os transforma em "imagens
dialéticas" que teriam, segundo ele, a faculdade de esclarecer repentinamente o
que liga o hoje ao passado, o
momento do leitor ao momento do texto.
A intensidade, ainda que
programática, do olhar crítico de Benjamin se deve sem
dúvida a seu temperamento
melancólico, como já se disse
e redisse. Ela se deve sobretudo a sua convicção de que o
combate literário é um combate decisivo, em que está em
jogo a salvação ou a perda da
humanidade.
Interromper a história
Não mais acreditando, assim como no tempo dos profetas, na missão de um poeta-vidente, Benjamin retoma
por sua conta o que ele diz ser
a intenção mais profunda de
Baudelaire, como a do bíblico
Josué, que faz ruir as muralhas de Jericó: interromper o
curso do mundo.
Cada leitura, cada descoberta de um livro desconhecido ou esquecido -por
exemplo, "A Eternidade pelos Astros", de Auguste Blanqui-, pode criar a oportunidade, aos olhos do Benjamin
do final dos anos 30, de interromper a continuidade de
uma história que se dirige
necessariamente, se não a
lermos de maneira diferente,
para a catástrofe.
Sob esse aspecto, Baudelaire será sempre a seus
olhos o maior escritor, cujos
textos, lúcidos em sua própria violência, propõem, porque intrinsecamente diferentes, uma leitura que permite escapar do mundo capitalista. Os dois outros escritores de igual envergadura
são, para ele, Kafka e Proust.
Sua conceituação é adequada a sua técnica interpretativa. Longe de serem pacientemente organizados, os
conceitos críticos surgem em
seus textos como Palas Atena
da fronte de Zeus. Brotam repentinamente, numa fulguração. Impõem-se ao leitor
com uma força ofuscante.
Às vezes vêm coroar demonstrações metafóricas e
guardam um halo poético.
Como para a noção de aura
em "A Obra de Arte na Época
de Sua Reprodutibilidade
Técnica", em que Brecht via
algo de místico. Pois, por
mais livre que seja, seu procedimento é também mimético: mergulha em Breton
quando escreve sobre os surrealistas e entra em Kafka
quando inventa situações
análogas às de seus textos.
Os seis volumes de sua correspondência, publicados
em 2000 pela editora Suhrkamp, são tão patéticos, senão mais, quanto sua obra de
crítico. Ele não cessa de falar
desta em suas cartas.
Para demonstrar a profunda afinidade de Benjamin
com Baudelaire -o qual ele
salientou que era, enquanto
herói e "flâneur", o verdadeiro tema da modernidade-, o
terrível relato das tribulações de um intelectual judeu
revolucionário na "era dos
extremos" constitui um material incomparável.
DOLF OEHLER é professor na Universidade
de Bonn (Alemanha) e autor de "Terrenos
Vulcânicos" (Cosacnaify), "Quadros Parisienses" e "O Velho Mundo Desce aos Infernos" (ambos pela Companhia das Letras).
Este texto saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Texto Anterior: + cronologia Próximo Texto: Performance anônima Índice
|