São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 1998.



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Continuação

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Nos decênios de 1920 e 1930 houve grande interesse pelo que se pode chamar de "explicações do Brasil", interesse simbolizado de certo modo por uma iniciativa editorial de grande importância, a coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, organizada e por muitos anos dirigida por Fernando de Azevedo. Essas "explicações" se concentravam sobretudo no passado e podem ser exemplificadas por duas obras de enorme influência: "Populações Meridionais do Brasil" (1920), de Oliveira Viana, e "Casa Grande e Senzala" (1933), de Gilberto Freyre. "Raízes do Brasil" (1936) é menos ambicioso e se distingue por um traço peculiar: parece escrito pensando no presente e deságua numa reflexão política de singular atualidade.
De fato, no último capítulo Sérgio Buarque de Holanda encaminha as conclusões no sentido de uma crítica ao liberalismo, rejeitando tanto a solução fascista, então na moda com o integralismo, quanto a solução comunista. As suas anotações a respeito são rápidas, mas bastam para o leitor perceber que sugerem uma solução de cunho democrático-popular, que lhe parece possível e está ligada a certos traços, dos quais destaco dois: (1) o fim da tradição colonial luso-brasileira (ou seja, a nossa fórmula originária) e (2) o advento das massas populares.
Para comentar esses dois traços talvez eu fuja um pouco da letra do capítulo, interpretando o pensamento de Sérgio a fim de torná-lo mais explícito, mas sem trair a sua inserção no contexto do livro.

QUEM É
Antonio Candido de Mello e Souza é um dos mais importantes e influentes críticos do país, autor de "Formação da Literatura Brasileira", clássico dos estudos literários publicado em 1959. Foi o fundador, na década de 60, do curso de teoria literária na Universidade de São Paulo, da qual se tornou professor emérito. Publicou também "Os Parceiros do Rio Bonito", "Literatura e Sociedade", "Tese e Antítese" e "O Discurso e a Cidade", entre outros. Nasceu em 1918 no Rio de Janeiro (RJ).



Quando alude ao fim da tradição colonial de raiz portuguesa, ferida de morte pela Abolição, ele desloca o foco de interesse do passado para o Brasil do seu tempo, marcado pela urbanização que dissolve os valores e os hábitos rurais próprios da tradição colonial. Ora, esse novo Brasil, que ele chama "americano", para indicar uma especificidade que o afasta do tronco ibérico, era sobretudo o Brasil meridional transformado pela imigração, sendo curioso que não tenha feito referência ao imigrante para caracterizar uma nova era devida em parte à influência deste. No capítulo final de "Raízes do Brasil" podemos dizer que há uma espécie de oposição entre duas trincas: luso-brasileiro - domínio rural - agricultura versus imigrante - cidade - indústria. A dialética dessas trincas caracteriza o Brasil contemporâneo e se tornava muito dinâmica no momento em que foi publicado "Raízes do Brasil".
Pensando na natureza das "explicações", é possível interpretar a nostalgia da raiz portuguesa em Oliveira Viana e Gilberto Freyre como uma atitude intelectual de cunho conservador. Não apenas isso, é claro, mas isso também. Inclusive porque é um modo de ver que se prende a uma perspectiva de classe dominante. Com efeito, para Oliveira Viana, ainda mergulhado nas explicações raciais, o colonizador seria ariano e formou aqui uma camada de senhores que impunha civilização e ordem às camadas inferiores, mestiças, aborígenes e negras. O resultado seria a "aristocracia rural", baseada no "grande domínio" e sua "função simplificadora", que deu a tônica da vida nacional.
Em Gilberto Freyre essa visão aristocrática era atenuada, na medida em que ele deslocou o foco da raça para a cultura, além de abrir uma perspectiva potencialmente radical ao valorizar a miscigenação e demonstrar a importância essencial do escravo na formação do nosso caráter e da nossa maneira de viver. Mas Gilberto Freyre se limitou ao passado (naquele livro) e à esfera familiar, além de manifestar certo desvanecimento com a tradição luso-brasileira, inclusive dando ao português uma posição privilegiada entre os povos colonizadores.
Nos dois autores a tradição luso-brasileira e rural era apresentada não apenas como padrão interpretativo privilegiado, mas com certa aura valorativa que poderia levar a uma visão conservadora da história. E essa visão não deixou de se refletir na maneira de ambos verem o presente. Não esqueçamos que Oliveira Viana foi um teórico do Estado Novo brasileiro e Gilberto Freyre, apesar de sua intensa e destemida atividade democrática em certa quadra da vida, foi admirador atuante do Estado Novo português.
Essa visão algo saudosista, de implicações conservadoras, era bem diversa da que fora expressa nos primeiros anos do século por Manoel Bonfim no livro "A América Latina" (1905), que não teve a repercussão merecida e só mais tarde seria devidamente avaliado. Manoel Bonfim, muito influenciado por Oliveira Martins, via na colonização ibérica, espanhola e portuguesa, uma forma brutal de parasitismo econômico, que formou aqui elites dirigentes retrógradas, de mentalidade irremediavelmente conservadora.
Sérgio Buarque de Holanda não lera Manoel Bonfim e sua posição é diferente, mas, como ele, não manifesta em "Raízes do Brasil" qualquer saudosismo, não se restringe à família como estrutura de referência e procura extrair do passado uma lição que evite as posições conservadoras no presente. Digamos que para a maioria absoluta dos intérpretes do passado brasileiro em seu tempo, inclusive Oliveira Viana e Gilberto Freyre, a dimensão luso-brasileira de origem colonial era vista sobretudo na sua continuidade, enquanto Sérgio focalizou sobretudo a sua ruptura, a sua redefinição a partir da "revolução" representada pelo fim do regime servil em 1888. À vista disso, seria possível indagar se livros como "Populações Meridionais do Brasil" e "Casa Grande e Senzala" representam por alguns aspectos certa reação, certa resistência à passagem do velho para o novo Brasil, aquele que Sérgio Buarque de Holanda chama "americano"? Talvez.
Passemos agora a outro traço significativo do capítulo final de "Raízes do Brasil": a entrada das massas populares na vida nacional em concorrência com elites que Sérgio considerava gastas -tema que apenas menciona, de maneira alusiva e sintética, com base nas observações do viajante norte-americano Herbert Smith.
Ao fazer isto ele quebrava a tradição "ilustrada", que atribuía às elites o papel permanente de tutor esclarecido do povo. No ensaio "As Instituições Políticas e o Meio Social no Brasil", publicado no volume coletivo "À Margem da História da República" (1924), Gilberto Amado exprime de maneira paradigmática a natureza dessa tradição, ao dizer que no Brasil tudo depende das elites, porque aqui não há povo, e o que se designa por esta palavra são na verdade os grupos privilegiados, fortemente minoritários, que têm alguma consciência dos problemas e atuam na política. Necessário, portanto, era educar as elites.
Essa visão liberal se completa sem dúvida pela preocupação com a totalidade do povo, mas vendo-o como massa a ser encaminhada e dirigida. Visão, portanto, que correspondia a uma forma especial de despotismo esclarecido, que era no fundo a ideologia das nossas elites. Só que, curiosamente, despotismo exercido por uma classe, não por um indivíduo, o que permitia a ilusão da liberdade (pois não se previa um déspota).

QUEM É
Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo em 1902. É autor de uma das obras capitais sobre a formação histórica do país, "Raízes do Brasil", e um dos criadores da moderna historiografia brasileira. Publicou, entre outros, "Visões do Paraíso", sobre o imaginário europeu a respeito do continente americano, "Cobra de Vidro" e "Monções". Dedicou-se também à análise literária em obras como "Capítulos de Literatura Colonial" (póstuma). Morreu em 1982.



Ora, Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas, manifestando assim um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos pequenos agrupamentos de esquerda. E esse ponto de vista coroa o longo processo histórico por ele denominado "a nossa revolução", começada com o movimento abolicionista nos anos de 1880 e em curso acelerado quando publicou o livro.
A consequência principal desse processo foi a crise das oligarquias, dando lugar a um jogo complexo de rompantes democráticos e tendências autoritárias, ao longo do qual se daria a entrada lenta mas constante do povo trabalhador na esfera da vida política. Sérgio apenas menciona essa ocorrência como desfecho, mas a maneira pela qual o faz é notavelmente antecipadora. O autoritarismo que estuda nesse capítulo, aparentemente atenuado pela Constituição de 1934 e o funcionamento passageiro das instituições parlamentares, voltaria inesperadamente no ano seguinte com o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937 e os oito anos de ditadura que resultaram dele. Mas ao cabo desses oito anos viu-se, nas eleições de 1945, que a composição e a orientação do eleitorado haviam mudado radicalmente; que nas cidades e, em geral, nas áreas mais urbanizadas do país a escolha dos candidatos ia deixando de seguir o padrão de cooptação oligárquica; que o trabalhador, mesmo tutelado pela política trabalhista do governo, surgia como força nova, que não deixaria de crescer e se afirmar na vida política do país.
O mais interessante foi que esse processo se desenrolou como mistura de imposição autoritária (tendo no limite a ditadura) e iniciativa popular. A relativa indecisão teórica que nos parece haver no capítulo final de "Raízes do Brasil", vista agora com a distância de mais de meio século e tanta história pelo meio, se revela uma espécie de registro sensível do movimento profundo da sociedade brasileira, tal como estudada no restante do livro. Sociedade individualista e pouco afeita às relações impessoais, valorizando o favor e tendo dificuldade em separar o público do privado, canalizando paradoxalmente a rebeldia no rumo da submissão, preferindo obedecer a assumir responsabilidades. Tudo isso parece configurar a fisionomia ambígua do Estado Novo getulista, contra o qual lutamos, que foi o adversário por excelência em nossa mocidade, mas que histórica e sociologicamente foi uma fórmula conciliatória de passagem do velho Brasil ao Brasil novo. Mesmo sendo brutalmente conciliatória, o que soa como paradoxo mas corresponde à realidade.
Se eu estiver extrapolando mais do que permitido à especulação intelectual, registre-se que ao menos uma coisa é certa: "Raízes do Brasil" foi a única das "explicações do Brasil" daquele tempo composta em função do presente. Mais ainda: a referência ao presente se orientava por uma percepção aguda da dialética latino-americana em geral, brasileira em particular, da insubordinação e da submissão, cuja consequência política é o jogo de autoritarismo e rompante libertário. Ao fazer isso, Sérgio Buarque de Holanda não apenas esclarecia a nossa história, mas antecipava o futuro imediato.
Pessoalmente ele se situa numa posição democrática radical, criticando o liberalismo convencional das oligarquias, assim como o fascismo e o comunismo. Com a ciência fácil conferida pelo tempo a nós, sobreviventes, é como se ele estivesse antevendo a posição que assumiria formalmente em 1945, ao aderir a um partido socialista democrático.
Por todos esses motivos, "Raízes do Brasil" foi um livro de rara lucidez e uma inovação no quadro das interpretações do Brasil, tão enriquecida por obras de valor no decênio de 1930.



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