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Salvador de ouro e fé
Cronista vê capital baiana dividida entre a inocência da "praia" e a riqueza e decadência da "cidade"
As praias do Brasil são uma experiência que já faz parte da nossa cultura: a descoberta do paraíso
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ALBERTO MORAVIA
Na Bahia, se o tempo
está bom, convém
deixar para depois
a pesquisa estética
e sociológica e ir
para uma das suas famosas
praias, nem tão distantes.
O inverno brasileiro, mais
quente que qualquer uma das
nossas mais calorosas primaveras, permite desfrutar dessas
praias em solidão; pelo que parece, os baianos as frequentam
só no verão. [...]
As glórias coloniais portuguesas repousam em dois ou
três fortes à beira-mar; são sem
pretensão, mas decorados por
grandes brasões cheios de história, contrastando com a água
enegrecida pelas pedras das
quais os moleques saltam, em
busca de caranguejos.
Depois de passar os fortes,
começamos a correr ao longo
da praia; de um lado está o
oceano verde e do outro aquela
mistura de faíscas ofuscantes
de sol e de saliências negras como o carvão, tal como é o campo nos trópicos. [...]
Quando chegamos à beira da
praia, observamos o litoral.
Devem ser cinco, dez quilômetros de praia deserta, numa
curva grandiosa cujo final se
perde na bruma do horizonte,
com os coqueiros de folhagens
ardentes que se distanciam a
perder de vista, acompanhando fielmente, com suas colunas
vegetais de uma regularidade e
monotonia embriagantes, o alternar monótono e regular das
ondas brancas e longas no
oceano verde. [...]
As paisagens não estão mais
na moda no jornalismo; depois
de tê-las usado em demasia no
passado, hoje se prefere indagar sobre os problemas sociais
e econômicos dos países. Está
certo, já passou o tempo das
descrições ociosas e evasivas.
No entanto uma paisagem
também pode ser uma experiência, se não social, pelo menos cultural.
Imaginar as colinas pedregosas da Ática, as águas azul-turquesa do Mar Morto não é suficiente, é preciso vê-las, pelo
menos para situar fisicamente
as extraordinárias experiências
humanas pelas quais passaram.
É assim com essas praias
atlânticas do Brasil. Elas são
enaltecidas por uma experiência que já faz parte da nossa
cultura: a descoberta do paraíso dos trópicos, inocente e virgem, por obra de pintores como Gauguin ou de escritores
como Melville ou Stevenson.
A ilusão, em pleno século 19,
de encontrar, no equador, o
éden homérico e mediterrâneo. [...]
Homens-objeto
Na Bahia, durante 300 anos,
teve o seu terminal a ponte da
escravidão, que, do outro lado
do Atlântico, enviava homens
livres, agricultores, pastores e
guerreiros, que só tinham a culpa de ter a pele negra, e vomitava-os no Brasil transformados
em mercadoria sem vida, ou,
como se dizia no linguajar mercantil, em "objetos da Índia" ou
"objetos da Guiné".
Os negros que sobreviviam à
terrível travessia eram recebidos em uma cidade em que inúmeras igrejas eram dedicadas
ao Deus crucificado dos antigos
escravos. Mas os homens são
capazes de contradições dramáticas, especialmente se existe interesse de lucro. [...]
Por todos esses motivos, a atmosfera da "Bahia cidade" é
muito diferente daquela da
"Bahia praia": esta última é inocente, virgem, mítica; a primeira é sem inocência, sobrecarregada por um passado de prosperidade injusta e um presente
de decadência fatal.
Tranquilamente, lentamente, inevitavelmente, nesta cidade tropical de aspecto mediterrâneo se manifesta a civilização
colonial contrarreformista e
escravista do primeiro Brasil,
com efeitos e características
bastante parecidos aos que se
observam no sul dos Estados
Unidos, com exceção do racismo, que, sobretudo por mérito
da igreja, aqui não existe.
Os dois aspectos mais evidentes da Bahia são, de um lado, suas multidões africanas e,
do outro, suas igrejas; de tal forma que, ao nos perguntarmos
como podem existir tantas
igrejas (são mais de 200 em
uma cidade de meio milhão de
habitantes, numa proporção
maior que em Roma) justamente na Bahia, temos a tentação de responder: porque, justamente na Bahia, existem
muitos habitantes de cor.
Em outras palavras, até o visitante mais inclinado à estética e à evasão não pode deixar de
sentir que na Bahia existe uma
ligação muito estreita, embora
de difícil definição, entre a "negritude" e a abundância de igrejas, entre a antiga prosperidade
(que desapareceu nos dias
atuais) da sociedade colonial e
o caráter da sua religião.
Remorso obscuro dos escravistas que, gastando para a glória de Deus o dinheiro ganho
com o tráfico, procuravam inconscientemente se livrar de
um sentimento de culpa? Ou
um supremo esforço da igreja
para absorver e digerir um
mundo totalmente novo e pagão? Provavelmente ambos. [...]
A cidade alta (Bahia, como
Nápoles, está construída sobre
colinas) se separa no silêncio e
no deserto de algumas ruas antigas que serpenteiam em subidas íngremes, ladeadas por edifícios herméticos degradados; a
cidade baixa, onde se concentra
a população de cor, ao contrário, dá a impressão de se dissolver em lama e sujeira, em torno
das águas negras do porto.
Tentem imaginar então um
dia escuro e úmido, cheio de
rostos melancólicos de negros,
de trapos, de barracas de frutas
tropicais, de alto-falantes emitindo vozes, pontos de venda de
frituras, vendedores ambulantes de todos os tipos, de pequenas janelas escancaradas de onde as garotas mulatas paqueram, de flores já passadas, frutas apodrecidas, de chuva e de
lodo: imaginem então dizer a si
próprios, em um dia assim:
"Bem, agora entro em uma dessas igrejas, me acalmo e descanso".
Então vocês entram e a primeira surpresa é que nas igrejas da Bahia, ao contrário das
italianas, que durante o verão
são geleiras, faz calor.
As igrejas são sufocantes e a
sua arquitetura, ou melhor, a
sua decoração, não traz serenidade e descanso porque, observando bem, repete, no campo
da arte, a delirante proliferação
tropical que já os deixou cansados fora da igreja.
As igrejas da Bahia, que são
todas meio parecidas, como os
tapetes persas, à primeira vista
parecem ser, na nave principal
e no teto, bastante simples e
nuas. [...]
A obsessão com o ouro e com
o delírio da vegetação é visível
nessas grutas profundas e resplandecentes que são as capelas das igrejas da Bahia; e as raras cores com as quais se decoram os animais e as frutas são
claras e brilhantes como aquelas dos grandes papagaios da
floresta amazônica.
Pode-se dizer, resumindo,
que os primeiros colonizadores
extravasaram nesta decoração,
esplendorosa e obsessiva, tanto
a avidez que tinham do precioso metal como o medo da natureza hostil do país.
De qualquer forma, são capelas bem feitas para atrair a devoção dos escravos negros. Elas
parecem repetir, de forma natural, os locais sagrados das religiões pagãs da África.
E para completar a alusão,
não é raro que, no topo do altar,
salte aos olhos, entre o ouro, o
rosto de um santo negro segurando nos braços um Menino
Jesus branquíssimo.
A íntegra deste texto foi publicada no "Corriere
della Sera" em 1º de setembro de 1960.
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