São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2009

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Salvador de ouro e fé

Cronista vê capital baiana dividida entre a inocência da "praia" e a riqueza e decadência da "cidade"


As praias do Brasil são uma experiência que já faz parte da nossa cultura: a descoberta do paraíso


ALBERTO MORAVIA

Na Bahia, se o tempo está bom, convém deixar para depois a pesquisa estética e sociológica e ir para uma das suas famosas praias, nem tão distantes.
O inverno brasileiro, mais quente que qualquer uma das nossas mais calorosas primaveras, permite desfrutar dessas praias em solidão; pelo que parece, os baianos as frequentam só no verão. [...]
As glórias coloniais portuguesas repousam em dois ou três fortes à beira-mar; são sem pretensão, mas decorados por grandes brasões cheios de história, contrastando com a água enegrecida pelas pedras das quais os moleques saltam, em busca de caranguejos.
Depois de passar os fortes, começamos a correr ao longo da praia; de um lado está o oceano verde e do outro aquela mistura de faíscas ofuscantes de sol e de saliências negras como o carvão, tal como é o campo nos trópicos. [...]
Quando chegamos à beira da praia, observamos o litoral.
Devem ser cinco, dez quilômetros de praia deserta, numa curva grandiosa cujo final se perde na bruma do horizonte, com os coqueiros de folhagens ardentes que se distanciam a perder de vista, acompanhando fielmente, com suas colunas vegetais de uma regularidade e monotonia embriagantes, o alternar monótono e regular das ondas brancas e longas no oceano verde. [...]
As paisagens não estão mais na moda no jornalismo; depois de tê-las usado em demasia no passado, hoje se prefere indagar sobre os problemas sociais e econômicos dos países. Está certo, já passou o tempo das descrições ociosas e evasivas.
No entanto uma paisagem também pode ser uma experiência, se não social, pelo menos cultural.
Imaginar as colinas pedregosas da Ática, as águas azul-turquesa do Mar Morto não é suficiente, é preciso vê-las, pelo menos para situar fisicamente as extraordinárias experiências humanas pelas quais passaram.
É assim com essas praias atlânticas do Brasil. Elas são enaltecidas por uma experiência que já faz parte da nossa cultura: a descoberta do paraíso dos trópicos, inocente e virgem, por obra de pintores como Gauguin ou de escritores como Melville ou Stevenson.
A ilusão, em pleno século 19, de encontrar, no equador, o éden homérico e mediterrâneo. [...]

Homens-objeto
Na Bahia, durante 300 anos, teve o seu terminal a ponte da escravidão, que, do outro lado do Atlântico, enviava homens livres, agricultores, pastores e guerreiros, que só tinham a culpa de ter a pele negra, e vomitava-os no Brasil transformados em mercadoria sem vida, ou, como se dizia no linguajar mercantil, em "objetos da Índia" ou "objetos da Guiné".
Os negros que sobreviviam à terrível travessia eram recebidos em uma cidade em que inúmeras igrejas eram dedicadas ao Deus crucificado dos antigos escravos. Mas os homens são capazes de contradições dramáticas, especialmente se existe interesse de lucro. [...]
Por todos esses motivos, a atmosfera da "Bahia cidade" é muito diferente daquela da "Bahia praia": esta última é inocente, virgem, mítica; a primeira é sem inocência, sobrecarregada por um passado de prosperidade injusta e um presente de decadência fatal.
Tranquilamente, lentamente, inevitavelmente, nesta cidade tropical de aspecto mediterrâneo se manifesta a civilização colonial contrarreformista e escravista do primeiro Brasil, com efeitos e características bastante parecidos aos que se observam no sul dos Estados Unidos, com exceção do racismo, que, sobretudo por mérito da igreja, aqui não existe.
Os dois aspectos mais evidentes da Bahia são, de um lado, suas multidões africanas e, do outro, suas igrejas; de tal forma que, ao nos perguntarmos como podem existir tantas igrejas (são mais de 200 em uma cidade de meio milhão de habitantes, numa proporção maior que em Roma) justamente na Bahia, temos a tentação de responder: porque, justamente na Bahia, existem muitos habitantes de cor.
Em outras palavras, até o visitante mais inclinado à estética e à evasão não pode deixar de sentir que na Bahia existe uma ligação muito estreita, embora de difícil definição, entre a "negritude" e a abundância de igrejas, entre a antiga prosperidade (que desapareceu nos dias atuais) da sociedade colonial e o caráter da sua religião.
Remorso obscuro dos escravistas que, gastando para a glória de Deus o dinheiro ganho com o tráfico, procuravam inconscientemente se livrar de um sentimento de culpa? Ou um supremo esforço da igreja para absorver e digerir um mundo totalmente novo e pagão? Provavelmente ambos. [...]
A cidade alta (Bahia, como Nápoles, está construída sobre colinas) se separa no silêncio e no deserto de algumas ruas antigas que serpenteiam em subidas íngremes, ladeadas por edifícios herméticos degradados; a cidade baixa, onde se concentra a população de cor, ao contrário, dá a impressão de se dissolver em lama e sujeira, em torno das águas negras do porto.
Tentem imaginar então um dia escuro e úmido, cheio de rostos melancólicos de negros, de trapos, de barracas de frutas tropicais, de alto-falantes emitindo vozes, pontos de venda de frituras, vendedores ambulantes de todos os tipos, de pequenas janelas escancaradas de onde as garotas mulatas paqueram, de flores já passadas, frutas apodrecidas, de chuva e de lodo: imaginem então dizer a si próprios, em um dia assim: "Bem, agora entro em uma dessas igrejas, me acalmo e descanso".
Então vocês entram e a primeira surpresa é que nas igrejas da Bahia, ao contrário das italianas, que durante o verão são geleiras, faz calor.
As igrejas são sufocantes e a sua arquitetura, ou melhor, a sua decoração, não traz serenidade e descanso porque, observando bem, repete, no campo da arte, a delirante proliferação tropical que já os deixou cansados fora da igreja.
As igrejas da Bahia, que são todas meio parecidas, como os tapetes persas, à primeira vista parecem ser, na nave principal e no teto, bastante simples e nuas. [...]
A obsessão com o ouro e com o delírio da vegetação é visível nessas grutas profundas e resplandecentes que são as capelas das igrejas da Bahia; e as raras cores com as quais se decoram os animais e as frutas são claras e brilhantes como aquelas dos grandes papagaios da floresta amazônica.
Pode-se dizer, resumindo, que os primeiros colonizadores extravasaram nesta decoração, esplendorosa e obsessiva, tanto a avidez que tinham do precioso metal como o medo da natureza hostil do país.
De qualquer forma, são capelas bem feitas para atrair a devoção dos escravos negros. Elas parecem repetir, de forma natural, os locais sagrados das religiões pagãs da África.
E para completar a alusão, não é raro que, no topo do altar, salte aos olhos, entre o ouro, o rosto de um santo negro segurando nos braços um Menino Jesus branquíssimo.


A íntegra deste texto foi publicada no "Corriere della Sera" em 1º de setembro de 1960.


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