São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

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+ Cultura

A invenção do blues

Historiadora defende que o gênero musical foi em parte criado por folcloristas brancos, em busca de "autenticidade"

LUDOVIC HUNTER-TILNEY

Antes de ler este livro, eu pensava saber de onde vinha o blues: do delta do Mississippi, onde os agricultores negros americanos, oprimidos pela pobreza e o racismo, transformavam seu sofrimento em música.
Essa é a versão difundida por inúmeras histórias do blues, que pintam uma paisagem do delta com campos de algodão e cabanas de madeira por onde vaga o bluesman arquetípico, armado de violão, garrafa e canivete, tocando sua música melancólica e atemporal.
Ele é um solitário, um marginal, um proscrito - e, é claro, um homem, pois como insistiu o folclorista Alan Lomax em sua memória de 1993, "The Land Where the Blues Began" [A Terra Onde o Blues Começou], essa "não era uma vida para mulheres".
Lomax foi um dos vários musicólogos e colecionadores brancos de discos que divulgaram o blues entre o público branco. Sem seus esforços, o blues, progenitor do rock, não teria encontrado um grande número de apreciadores.
O mundo teria um som muito diferente.
Mas esses arquivistas do blues não eram os observadores inocentes que declaravam ser. Em "In Search of the Blues - Black Voices, White Visions" [Em Busca do Blues - Vozes Negras, Visões Brancas, ed. Jonathan Cape, 256 pp., 12,99 libras, R$ 52,80], a historiadora Marybeth Hamilton afirma que eles não apenas "descobriram" o blues do delta como o inventaram, movidos por um desejo de autenticidade e naturalidade e consumidos por idéias exóticas do canto negro e de uma humanidade excluída.
Como românticos que anseiam pelo sublime, eles percorreram o sul profundo em excursões a penitenciárias e plantações, em busca de vozes pré-modernas, "impolutas".
O fascínio pelo canto negro remontava ao movimento abolicionista de meados do século 19, mas adquiriu um novo ímpeto na década de 1930, quando a migração para as cidades e o crescente mercado de gravações musicais ameaçavam erradicar os hábitos de transmissão oral do folclore.

Tristeza melancólica
Enquanto os negros que compravam discos preteriam o blues pelo jazz (o som da modernidade negra), os brancos entusiastas do blues lamentavam a perda da "verdadeira" música negra e saíam em busca da "voz afro-americana como era antes que as gravadoras a encampassem".
O que era necessário na música negra, segundo o musicólogo John Lomax, pai de Alan, era a "pureza primitiva" e a "tristeza melancólica" -não a síncope urbana e estridente do jazz.
O importante livro de Hamilton traça um perfil dos folcloristas e colecionadores que moldaram o conceito do blues do Delta. John e Alan Lomax são centrais em sua história, pois representam duas linhas diversas de pensamento.
John se interessava pela autenticidade da música folclórica negra, e não por sua mensagem ou entorno social.
Sua indiferença pela vida dos indivíduos negros cujas canções ele induzia fica patente em seu relacionamento com Huddie Ledbetter, conhecido como Lead Belly, um bluesman que conheceu numa visita a uma prisão em 1933.
Tendo conseguido sua libertação, Lomax tratou Lead Belly como uma curiosidade circense, exibindo-o em roupa listrada de prisioneiro em shows em Nova York e exigindo direitos autorais sobre sua música.
Alan nunca criticou publicamente seu pai, embora ele próprio gravitasse para a esquerda. Ele idealizou o blues como "uma rica evocação dos subterrâneos da América", uma música "de protesto e orgulho".
Hamilton chega a lançar dúvidas sobre a identificação do Delta do Mississippi como berço do blues. "No centro desta história está a idéia venerável da pura e incorrupta voz negra", escreve.
O fato de o Delta ter sido escolhido como sua origem se deve-se mais à imaginação que ao fato histórico: os revivificadores do blues dos anos 60, ela sugere, rebatizaram o "country-blues" de "Delta blues" durante uma discussão interna.
Sua argumentação toma alguns atalhos arriscados, mas o livro é plausível e instigante.


Este texto foi publicado no "Financial Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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