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A sombra do dragão
Em entrevista à Folha, Will Hutton afirma que o tamanho da população pobre "condena" a China a crescer, diz que a União Européia atingiu seu limite e avalia que Lula aplicou melhor os preceitos da Terceira Via do que FHC
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DE LONDRES
O contínuo crescimento econômico
que transformou a
China na favorita
ao título de império do século 21 é ancorado em
uma base frágil que irá se romper, pois é minada pelo controle centralizado do corrupto
Partido Comunista Chinês.
As potências ocidentais, divididas entre a admiração pela
pujança econômica e o medo
da força exportadora que invade seus mercados, são "imperdoavelmente ignorantes a respeito das fraquezas da China".
Essa é a tese que o jornalista
e sociólogo inglês Will Hutton
defende no recém-lançado
"The Writing on the Wall - China and the West in the 21st
Century" (Escrito na Muralha
-China e o Ocidente no Século
21, ed. Little, Brown, 432 págs.,
20 libras, R$ 82).
Formado em ciências econômicas e sociais pela Universidade de Bristol, Hutton foi editor de economia do jornal "The
Guardian" e editor-chefe do
dominical "The Observer", do
qual é atualmente colunista.
Ele é também um dos idealizadores da Terceira Via [leia
texto na outra página] e um dos
principais mentores da política
econômica do governo trabalhista de Tony Blair.
Falando à Folha por telefone, Hutton afirma ter lido
"mais de mil referências bibliográficas" para formar seu juízo
sobre a China, complementando o trabalho com três visitas
de alguns meses de duração.
Na entrevista, ele também
analisa criticamente o governo
Blair e afirma que o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva representa melhor a Terceira Via do
que o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso.
FOLHA - Em seu novo livro o sr. parece ir contra a atual euforia em relação à China. É preciso relativizar o
crescimento que o país tem obtido?
WILL HUTTON - É claro que o
crescimento da China é impressionante, sua população é
um quinto da humanidade, 800
milhões deles vivendo no campo, em terrenos mínimos, com
produtividade baixa.
Se eles se mudam para cidades e passam a fazer algo que
seja minimamente útil, o PIB
cresce inevitavelmente, e foi isso o que aconteceu. Mesmo sob
Mao [Tse-tung] o PIB cresceu
4,5% ao ano, entre 1949 e 1976.
É muito difícil para a China
não crescer.
FOLHA - O sr. argumenta que o Ocidente não compreende a ameaça
que a China representa, o que pode
ter conseqüências graves.
HUTTON - Sua economia é muito vulnerável, é basicamente
uma subcontratada do Ocidente. Ela é feita de falsificações e
imitações de produtos ocidentais, há pouca inovação. Isso
pode mudar, mas não há sinais
no momento, pois a infra-estrutura do país é muito pobre.
A China não tem nenhuma
marca entre as cem maiores do
mundo, tem apenas uma empresa entre as 300 maiores de
pesquisa e desenvolvimento.
Na lista das 500 maiores empresas do mundo da "Forbes"
há 20 chinesas, mas todas são
estatais que, se tivessem a contabilidade registrada ao modo
ocidental, estariam quebradas.
A inflação é outra preocupação constante.
É preciso colocar o crescimento em proporção. A posição da China é muito instável,
há inquietação social, greves
cada vez mais numerosas, desigualdade de classes, e o Partido
Comunista não tem uma ideologia viável que convença os líderes do partido e menos ainda
a população em geral.
FOLHA - E que conseqüências a instabilidade chinesa pode ter para o
resto do mundo?
HUTTON - Para o Ocidente, é
necessário uma China em crescimento que seja governada
não por um partido único, mas
de acordo com as instituições
da democracia, melhor dizendo, do iluminismo: imprensa,
Judiciário e universidades independentes, servidores públicos e gerentes sendo responsabilizados por seus atos, revisão
independente em pesquisas
científicas...
Enfim, o tipo de coisa que
Brasil e Índia [que formam o
bloco Bric dos emergentes,
com China e Rússia] têm.
FOLHA - Mas Brasil e Índia também
têm grandes desigualdades sociais,
que o sr. diz, no caso da China, serem
incompatíveis com o conceito de livre mercado.
HUTTON - A desigualdade social
é menor no Brasil do que na
China, pelas estatísticas oficiais. Acho que ela é um problema gigante e crescente na China, e o governo sabe disso.
[O presidente] Hu Jintao
prometeu uma política de "desenvolvimento harmonioso",
tentando reduzir os impostos
dos camponeses, melhorar os
serviços de saúde e de educação
no interior.
Há muitos trabalhadores que
são ilegais porque as pessoas
precisam de autorização para
mudar de uma cidade para outra, e muitos acabam indo para
as grandes cidades costeiras,
onde há trabalho, sem essa licença e se tornam migrantes
ilegais. Eles deveriam ter o direito de trabalhar.
E esse tipo de coisa, que
constrói a desigualdade chinesa, é algo muito complexo.
Em todo lugar da China há
controle de pensamento, controle social e político... O partido está em todo lugar.
Em cada organização, seja
um jornal, uma empresa, um
sindicato, o comitê dos comunistas faz parte do comando, direcionando as políticas.
Se alguém quer protestar
contra as desigualdades, não
consegue. Responsabilizar um
político por alguma coisa, como
a poluição ambiental ou a falta
de direitos para os camponeses,
é impossível.
Muita gente não entende, e
imagino que seus leitores também não conseguiriam entender, o desamparo que os chineses sentem e o desespero que
isso provoca.
FOLHA - O sr. vê semelhanças entre
a China atual e a União Soviética?
HUTTON - Não, a União Soviética teve uma economia muito
menos bem-sucedida do que a
chinesa.
Na China, a transição foi organizada de forma muito sagaz.
O que aconteceu na URSS foi
que não apenas [o ex-líder Mikhail] Gorbatchov mas também o partido perceberam que
não havia uma sociedade comunista, mas uma cleptocracia
que conduzia uma economia
fracassada, que não poderia alcançar a dos EUA e que, por isso, teria de mudar.
Os chineses adotaram a política das Três Representações
[desenvolvida por Jiang Zemin,
líder do PC chinês entre 1989 e
2002]: a China não estava mais
construindo um regime comunista, mas uma economia de
mercado socialista, direcionada para o desenvolvimento harmônico de acordo com linhas
confucianas.
Assim, o PC não representava mais os trabalhadores e
camponeses, mas todos os elementos da sociedade.
São duas maneiras completamente distintas de dirigir um
país. A razão para a mudança,
ainda que tenha havido alguma
pressão social das camadas inferiores, foi o fato de o partido
não acreditar mais no sistema.
FOLHA - No livro o sr. argumenta
que a China não faz um socialismo
de mercado, mas um "leninismo
corporativista". O que seria isso?
HUTTON - O regime chinês é leninista no sentido de que o partido segue o ditame de Lênin de
monopolizar o controle político, econômico e social.
E é corporativista porque toda a atividade econômica é submetida a uma coordenação
central, da qual nenhum dos
atores da economia, mesmo
aqueles mais humildes, consegue escapar.
FOLHA - Ou seja, o país não está se
movendo na direção do capitalismo,
como o Ocidente acredita?
HUTTON - Não no sentido em
que definimos o termo. Na China não há direito a propriedade
privada. Só um pequeno número de empresas, operando na
Bolsa de Xangai, é privado. Não
há competição, do modo como
a entendemos no Reino Unido
ou no Brasil.
FOLHA - O sr. é otimista em relação
ao futuro da China?
HUTTON - Acho que o atual modelo econômico não é sustentável, então sou otimista em relação às mudanças que terão de
ser feitas. Não sei, porém, se
elas virão de uma maneira pacífica ou com brigas políticas e
crise econômica.
Mas estou seguro de que a
China emergirá dessas mudanças tendo desenvolvido estruturas políticas. Está acontecendo um iluminismo asiático em
lugares como Coréia do Sul,
Taiwan e Índia, e a China vai se
juntar a eles.
FOLHA - Episódios como a invasão
do Iraque e a guerra ao terror não
tornaram o Oriente mais reticente
em relação à alardeada democracia
ocidental?
HUTTON - Não creio que documentos como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas sejam
questionáveis por serem ocidentais, acho que se aplicam a
todos os povos.
Eu penso o mesmo sobre o
iluminismo: tornar os políticos
responsáveis por suas ações,
adotar direitos constitucionais,
como liberdade de debate e de
discurso, dar padrões mínimos
de qualidade de vida são demandas universais -e não apenas ocidentais.
FOLHA - Como ideólogo da Terceira Via e mentor dos novos trabalhistas britânicos, que avaliação o sr. faz
dos quase dez anos do governo de
Tony Blair?
HUTTON - Há prós e contras. A
política externa tem sido um
fracasso, seja no Oriente Médio, no combate ao terrorismo,
em relação à União Européia
ou no apoio ao presidente dos
EUA, George W. Bush, e à invasão do Iraque.
Foi uma política mal concebida e é a principal fraqueza de
Blair.
Ele também não fez quase
nada contra a desigualdade no
Reino Unido, não alterou as estruturas do capitalismo britânico. Permitir aos ricos ficarem
ainda mais ricos não foi muito
inteligente, e os trabalhistas
pagaram caro por isso.
Mas apóio diversas políticas
essenciais que ele adotou, como a reforma do serviço público. Ele esteve certo ao quebrar
alguns monopólios públicos
em favor de uma pluralidade de
instituições.
Blair também fez muito pelo
debate sobre políticas sociais,
exigindo responsabilidade daqueles que recebem benefícios
do Estado.
E há diversos pequenos
avanços que nunca aconteceriam sob um governo dos conservadores, como as políticas
de igualdade para os gays, os
grandes gastos com portadores
de deficiências físicas, medidas
que são muito progressistas.
Ele também fez diferença na
questão da mudança climática,
que seu governo levou a sério.
FOLHA - O que o sr. achou do recente veto do governo britânico à entrada de trabalhadores da Romênia
e da Bulgária, que ingressaram na
União Européia em janeiro passado?
HUTTON - No mundo todo há
uma espécie de regressão em
termos de abertura. Vivemos
em tempos conservadores, vocês passam por isso no Brasil
também.
Quando o Reino Unido abriu
suas portas para os trabalhadores do Leste Europeu [com a
entrada de dez países do bloco
na UE, em 2004], recebeu mais
de 600 mil imigrantes. Com a
entrada da Romênia e da Bulgária, outras centenas de milhares poderiam vir.
O Reino Unido tem sido muito mais liberal, nesse aspecto,
do que a Alemanha e a França,
por exemplo.
Não acho que o governo Blair
deva ser criticado por isso.
FOLHA - Ainda há espaço para o
bloco crescer?
HUTTON - Não, acho que precisamos digerir os membros que
já temos, o que já é suficientemente difícil. Não acho que a
Turquia vá se juntar à UE nos
próximos 25 anos.
FOLHA - O sr. visitou o então presidente Fernando Henrique Cardoso
em 1999 e lhe fez elogios. Como
compara seu governo com o atual?
HUTTON - Fiquei impressionado com Lula, ele é um presidente pragmático.
Paradoxalmente, ele tem sido mais bem-sucedido ao implementar políticas da Terceira
Via do que FHC (risos).
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