São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

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A cidade proibida

Olimpíadas de 2008 devem incrementar número de museus na capital, mas os atuais sofrem com o descuido e a falta de verbas

MURE DICKIE

Pequim é a capital artística e política de uma das maiores civilizações do mundo, mas há muito tempo os museus da cidade são uma vergonha. Visitantes e cidadãos que desejam conhecer as riquezas culturais da China muitas vezes têm de olhar através de vidros empoeirados para objetos mal iluminados e pouco explicados, de autenticidade duvidosa. O mau cheiro dos banheiros descuidados paira sobre salas e corredores do Museu Nacional, que geralmente se sai melhor exibindo estátuas de cera de David Beckham e Gêngis Khan do que seus antigos bronzes e jades. O Museu do Palácio, mantenedor da fabulosa Cidade Proibida, é uma glória arquitetônica, mas está estranhamente vazio; as autoridades só abrem suas salas mais guarnecidas para visitantes importantes e mantêm a maior parte de seus tesouros escondida em porões.
O estado lastimável dos museus de Pequim é um sintoma do duradouro desprezo pelo passado demonstrado pelo Partido Comunista desde a Revolução de 1949 [quando Mao Tse-tung chegou ao poder]. Durante décadas, o legado do país foi no mínimo negligenciado. E, durante a Revolução Cultural, em 1966-76, milhões de guardas vermelhos inspirados por Mao percorreram o país destruindo qualquer coisa relacionada aos antigos costumes "feudais".

Pazes com o passado
Depois de abandonar o maoísmo no início da década de 1980, o partido começou a enxergar o valor de fazer as pazes com o passado imperial. Mas as pressões orçamentárias e o enfoque em locais que atraem multidões de turistas, como a Grande Muralha -partes da qual foram maciçamente reconstruídas-, fizeram com que o papel mais sutil dos museus continuasse amplamente desprezado.
Apenas um quarto dos 80 museus municipais e distritais de Pequim tem sistemas de controle de temperatura e umidade, expondo inúmeras relíquias frágeis a danos desnecessários. A conservação é complicada pela luta constante para cobrir os custos com as vendas de ingressos. Em uma entrevista à mídia estatal três anos atrás, o diretor do Departamento Municipal de Patrimônio Cultural de Pequim, Mei Ninghua, culpou a fraca receita dos ingressos pela falta de interesse dos moradores pelos museus, mas reconheceu que essa indiferença é compreensível.
"Parte da razão é que as exposições na maioria dos museus são antiquadas e entediantes", disse. Mas as coisas estão mudando. O rápido crescimento econômico e a crescente receita dos impostos deram ao governo mais verbas para gastar em atividades culturais. As autoridades, cada vez mais cosmopolitas, decidiram que a China deve possuir todos os equipamentos de uma grande potência moderna e não desejam mais ver seus museus tão atrasados em relação aos dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, o abandono da ideologia comunista pelo partido o levou a buscar outras maneiras de sustentar sua legitimidade e manter a união nacional -e celebrar o legado cultural da China é uma dessas maneiras.
Um exemplo drástico dessa mudança de atitude é o enorme Museu da Capital, em Pequim, um novo repositório para as maravilhas culturais da cidade, que pretende exibir as realizações artísticas chinesas e mapear o desenvolvimento da própria Pequim desde tempos pré-históricos até hoje. Enquanto a maioria dos museus de Pequim sofre com fachadas decadentes e salas sombrias, o Museu da Capital exibe um enorme saguão central dominado por uma rotunda inclinada em forma de urna, com decoração em bronze inspirada em artefatos da era Zhou, dos séculos 11 a.C. a 8º a.C.
Os arquitetos do museu, o francês Arep e o China Architecture Design and Research Group, fizeram a rotunda irromper pela fachada do prédio, coberta de vidro. O telhado é inspirado na arquitetura tradicional chinesa, mas também emprega painéis solares. Essa extravagância não foi barata nem fácil. O novo museu custou ao governo US$ 168 milhões [R$ 349,6 milhões], muito acima das estimativas, e sua construção levou um ano a mais do que se previa. Mas o resultado é um museu amplo e arejado, completamente diferente dos outros da cidade.
Igualmente bem-vindos são os esforços do Museu da Capital para atrair as crianças, dando-lhes uma oportunidade de fazer pintura e cerâmica -abordagem estranha à maioria dos museus de Pequim.

Legendas engajadas
Ao contrário de seus colegas de outras instituições culturais da capital, os funcionários também parecem entusiasmados. "Como se diz "proibido fotografar", em inglês?", pergunta um atendente a um visitante estrangeiro que fala mandarim. O Museu da Capital tem seus problemas. Apesar da qualidade das exposições clássicas, ele não se compara ao Museu de Xangai, que se tornou o primeiro museu de padrão mundial da China após sua reinauguração em um novo prédio, em 1996. Hoje em um edifício notável no centro da cidade, o Museu de Xangai reforçou seu acervo com doações de emigrantes ricos e introduziu inovações, como a iluminação que diminui automaticamente quando não há visitantes próximos. Como toda a cultura aprovada oficialmente na China, o Museu da Capital também está submetido à versão de correção política do Partido Comunista.
A maioria das legendas parece politicamente neutra, mas a apresentação de uma exposição de estátuas do Tibete as descreve como "tibetano-chinesas". Não importa que o domínio chinês desde a década de 1950 tenha sido um desastre cultural para o Tibete. Esses vestígios de propaganda lembram que nem os mais modernos museus da China podem pretender tornar-se centros de investigação como nos países democráticos.
Mas o entusiasmo tardio da China pelos museus trará alguns benefícios. Pelo menos o Museu da Capital dará aos visitantes uma oportunidade de se envolver até certo ponto com a extraordinária riqueza da herança cultural do país. Essas oportunidades provavelmente vão proliferar. A Administração Estatal do Patrimônio Cultural pediu a construção de mil novos museus até 2015, que se somarão aos 2.000 já em operação. A mídia local diz que Pequim sozinha pretende construir 20 museus antes das Olimpíadas de 2008.
Permanecem enormes desafios para melhorar a qualidade da pesquisa e da conservação e encontrar dinheiro para garantir que as muitas novas instituições consigam sobreviver.


A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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