São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

Texto Anterior | Índice

De volta à República

Nova tradução do mais influente diálogo de Platão ressalta suas qualidades literárias

FERNANDO SANTORO
ESPECIAL PARA A FOLHA

H á 2.500 anos, Sócrates desceu ao [porto de] Pireu. Seremos capazes de descer outra vez? Na casa do filho de um velho estrangeiro, amigo de Péricles, depois de festejos em homenagem à deusa Bêndis, Platão situou uma conversa entre Sócrates e amigos sobre a justiça e a constituição de uma cidade ideal. Nessa conversa, Platão expôs, pela voz de Sócrates, o modelo de um Estado justo, harmônico e governado por filósofos. Assim, o Ocidente ganhou o Diálogo intitulado "Politeia", isto é, "constituição", que a latinidade traduziu por Res Publica: "A República". Este libelo contra a democracia ateniense e protótipo das sociedades utópicas teve imensa influência.
Desde as teses mais gerais até os menores detalhes, não há ali proposta que não tenha sido calorosamente discutida, experimentada, defendida, refutada ao longo da história.

Fonte inspiradora
São teses políticas, logo polêmicas, e sabe-se que inspiraram experiências díspares ao longo da história: o iluminismo dos déspotas esclarecidos, a propriedade coletiva dos socialismos, a eugenia do nazismo... E ainda inspiram o sistema educacional seletivo dos republicanos norte-americanos. Mais do que as teses políticas, as teses metafísicas estabeleceram as bases do pensamento ocidental nos planos moral, científico, religioso.
A prevalência de uma idéia universal de justiça, a distinção entre verdade e aparência, a associação dos valores de eternidade, unidade, verdade, bem. A separação entre corpo e alma; e entre sensação, paixão e razão etc. -tudo isso é da seara de palavras da "República". Dispúnhamos de duas traduções bem cuidadas desse diálogo e recebemos agora a terceira, editada pela Martins Fontes (464 págs., R$ 58), de Anna Lia Amaral de Almeida Prado, com introdução de Roberto Bolzani Filho.
Obra capital da nossa cultura, as dificuldades de trazê-la ao vernáculo são proporcionais a suas qualidades.

Armadilhas de tradução
A despeito do controverso episódio da expulsão dos poetas [não tolerados na república], Platão tem uma qualidade literária ímpar, de modo que é um autor básico em todo curso de letras clássicas. A tradução, do ponto de vista literário, alcança a fluência necessária da conversa entre amigos, melhor do que a de Carlos Alberto Nunes, de 1976, pela Universidade do Pará.
A boa tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, de 1972 [Fundação Calouste Gulbenkian], traz trejeitos da conversa lusitana, o que soa estranho para nós, brasileiros. Almeida Prado também se sai bem nas palavras intraduzíveis, que crucificam os tradutores: "Meu excelente amigo, disse eu, um homem se torna tirânico no sentido estrito quando, por natureza e por seus hábitos, ou por ambos os motivos, torna-se um bêbado, um enamorado, um rancoroso" (573 c-d). A armadilha é a palavra traduzida por "rancoroso": literalmente "melancólico". A tradutora compreende o sentido que a palavra assume na passagem, sem se atrapalhar com a medicina antiga, e acrescenta uma nota pertinente.
As notas são parcimoniosas, mas não deixam de informar o leitor sobre personagens, autores ou fatos históricos a que o texto faz alusão. Informam também sobre os intraduzíveis; vejamos outro: a palavra "daimon" é quase sempre traduzida por "divindade" para evitar o tom pejorativo que "demônio" tomou com o cristianismo, mas, quando se trata de definir a sua especificidade, a tradutora a vernaculiza com propriedade pela palavra "dêmone" (469 a).
Não há como acertar sempre; nas passagens mais originais, nós, tradutores, procuramos errar menos. Na apresentação da imagem da caverna, Sócrates propõe comparar nossa natureza no que se refere à "educação ou à ausência de educação" (514 a). No grego, estão as palavras "paidéia" e "apaideusia".
Ora, a "ausência de educação" pode ser pela arrogância de alguém crer que sabe quando não sabe, em grego -"amathia"- ou porque não recebeu instrução -"agnóia". "Apaideusia" é um neologismo que se vale do prefixo de privação "a" e acrescenta o sufixo de processo "ia". Conforme o contexto, trata-se mais de "resistência à educação" do que de sua ausência ou falta.

Crítica à democracia
A edição tem ótima introdução, como as outras duas. A da Universidade do Pará, de Benedito Nunes, vale por si só o livro. O texto de Bolzani apresenta o diálogo com boas informações que o situam entre as demais obras de Platão e faz um resumo que pontua o texto em passagens antológicas, útil para a visão de conjunto. As considerações sobre a crítica à democracia, para nós que experimentamos alguns milênios de aventuras absolutistas e totalitárias, nos previnem dos anacronismos e romantismos que a leitura de Platão pode incitar.
Afinal, para as democracias contemporâneas, sobretudo em países em que ainda é pouco madura, estudar os problemas da democracia antiga é um bom caminho para não sucumbir às demagogias das tiranias.


FERNANDO SANTORO é professor de filosofia antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "Poesia e Verdade" (Sette Letras).


Texto Anterior: Versos de Xenófanes saem em tradução de viés concretista
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.