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De volta à República
Nova tradução do mais
influente diálogo de Platão
ressalta suas qualidades literárias
FERNANDO SANTORO
ESPECIAL PARA A FOLHA
H
á 2.500 anos, Sócrates desceu ao
[porto de] Pireu.
Seremos capazes
de descer outra
vez? Na casa do filho de um velho estrangeiro, amigo de Péricles, depois de festejos em homenagem à deusa Bêndis, Platão situou uma conversa entre
Sócrates e amigos sobre a justiça e a constituição de uma cidade ideal.
Nessa conversa, Platão expôs, pela voz de Sócrates, o modelo de um Estado justo, harmônico e governado por filósofos. Assim, o Ocidente ganhou
o Diálogo intitulado "Politeia",
isto é, "constituição", que a latinidade traduziu por Res Publica: "A República".
Este libelo contra a democracia ateniense e protótipo
das sociedades utópicas teve
imensa influência.
Desde as teses mais gerais
até os menores detalhes, não
há ali proposta que não tenha
sido calorosamente discutida,
experimentada, defendida, refutada ao longo da história.
Fonte inspiradora
São teses políticas, logo polêmicas, e sabe-se que inspiraram experiências díspares ao
longo da história: o iluminismo
dos déspotas esclarecidos, a
propriedade coletiva dos socialismos, a eugenia do nazismo...
E ainda inspiram o sistema
educacional seletivo dos republicanos norte-americanos.
Mais do que as teses políticas, as teses metafísicas estabeleceram as bases do pensamento ocidental nos planos moral,
científico, religioso.
A prevalência de uma idéia
universal de justiça, a distinção
entre verdade e aparência, a associação dos valores de eternidade, unidade, verdade, bem. A
separação entre corpo e alma; e
entre sensação, paixão e razão
etc. -tudo isso é da seara de palavras da "República".
Dispúnhamos de duas traduções bem cuidadas desse diálogo e recebemos agora a terceira,
editada pela Martins Fontes
(464 págs., R$ 58), de Anna Lia
Amaral de Almeida Prado, com
introdução de Roberto Bolzani
Filho.
Obra capital da nossa cultura, as dificuldades de trazê-la ao
vernáculo são proporcionais a
suas qualidades.
Armadilhas de tradução
A despeito do controverso
episódio da expulsão dos poetas [não tolerados na república], Platão tem uma qualidade
literária ímpar, de modo que é
um autor básico em todo curso
de letras clássicas.
A tradução, do ponto de vista
literário, alcança a fluência necessária da conversa entre amigos, melhor do que a de Carlos
Alberto Nunes, de 1976, pela
Universidade do Pará.
A boa tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, de 1972
[Fundação Calouste Gulbenkian], traz trejeitos da conversa
lusitana, o que soa estranho para nós, brasileiros.
Almeida Prado também se
sai bem nas palavras intraduzíveis, que crucificam os tradutores: "Meu excelente amigo, disse eu, um homem se torna tirânico no sentido estrito quando,
por natureza e por seus hábitos,
ou por ambos os motivos, torna-se um bêbado, um enamorado, um rancoroso" (573 c-d).
A armadilha é a palavra traduzida por "rancoroso": literalmente "melancólico". A tradutora compreende o sentido que
a palavra assume na passagem,
sem se atrapalhar com a medicina antiga, e acrescenta uma
nota pertinente.
As notas são parcimoniosas,
mas não deixam de informar o
leitor sobre personagens, autores ou fatos históricos a que o
texto faz alusão.
Informam também sobre os
intraduzíveis; vejamos outro: a
palavra "daimon" é quase sempre traduzida por "divindade"
para evitar o tom pejorativo
que "demônio" tomou com o
cristianismo, mas, quando se
trata de definir a sua especificidade, a tradutora a vernaculiza
com propriedade pela palavra
"dêmone" (469 a).
Não há como acertar sempre;
nas passagens mais originais,
nós, tradutores, procuramos
errar menos.
Na apresentação da imagem
da caverna, Sócrates propõe
comparar nossa natureza no
que se refere à "educação ou à
ausência de educação" (514 a).
No grego, estão as palavras
"paidéia" e "apaideusia".
Ora, a "ausência de educação" pode ser pela arrogância
de alguém crer que sabe quando não sabe, em grego -"amathia"- ou porque não recebeu
instrução -"agnóia".
"Apaideusia" é um neologismo que se vale do prefixo de
privação "a" e acrescenta o sufixo de processo "ia". Conforme
o contexto, trata-se mais de
"resistência à educação" do que
de sua ausência ou falta.
Crítica à democracia
A edição tem ótima introdução, como as outras duas.
A da Universidade do Pará,
de Benedito Nunes, vale por si
só o livro.
O texto de Bolzani apresenta
o diálogo com boas informações que o situam entre as demais obras de Platão e faz um
resumo que pontua o texto em
passagens antológicas, útil para
a visão de conjunto. As considerações sobre a crítica à democracia, para nós que experimentamos alguns milênios de
aventuras absolutistas e totalitárias, nos previnem dos anacronismos e romantismos que
a leitura de Platão pode incitar.
Afinal, para as democracias
contemporâneas, sobretudo
em países em que ainda é pouco
madura, estudar os problemas
da democracia antiga é um bom
caminho para não sucumbir às
demagogias das tiranias.
FERNANDO SANTORO é professor de filosofia
antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "Poesia e Verdade" (Sette Letras).
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