São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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+ tecnologia

2001 - do silêncio ao silício

Desenvolvimento de novos softwares e aumento da velocidade de processamento de informações pelos computadores ameaçam colocar em xeque a noção de autoria

Roland de Azeredo Campos
especial para a Folha

Ao contrário do que vaticinara Arthur Clarke, o físico e escritor autor de "2001 - Uma Odisséia no Espaço" (levado às telas por Stanley Kubrick em 1968), a recente evolução tecnológica se orientou para o espaço interior dos microcomputadores e dos chips de silício, antes de povoar os planetas e o espaço sideral com bases e naves terrestres. O ano de 2001 saudou a informática e vestiu os indivíduos (os não-varridos pelo arrastão neoliberal, naturalmente) -no aconchego de seus gabinetes- com teclados, mouses e monitores integrados ao micro, em vez de lançá-los à odisséia errante nos arredores de Júpiter, encerrados em módulos metálicos silentes, em litígio com gigantescas e alucinadas máquinas computacionais. Comunicação via Internet em lugar do isolamento ano-luzente. O silício (re)solvendo o silêncio.
Na esteira do progresso da informática germinaram os softwares de texto, imagem e vídeo, motivando projetos artísticos multifacetados, que passaram a situar o próprio computador como partícipe -e mesmo autor- dos produtos gerados. Como isso é possível? Segundo Noam Chomsky, a aquisição de linguagem é consequência de um conjunto de regras (geradoras e transformacionais) -comuns a todas as línguas- que repousam em estruturas fisiológicas do cérebro. A pesquisa de tais regras deve, em princípio, conduzir a processos de simulação computacional passíveis de gerar trabalhos artísticos originais, configurando e instituindo a inteligência artificial criadora. Tentativas nesse sentido são relatadas no livro "Would-Be Worlds" ("Mundos Virtuais", na edição brasileira, ed. Revan), de John L. Casti.
Crê o autor -membro do corpo docente do Instituto Santa Fé, Novo México, Estados Unidos- na potencialidade dos processadores como "geradores de símbolos" (sic) ou signos (na nomenclatura da semiótica peirceana). A transição ao pensamento criativo e as alternativas para os sistemas adaptativos complexos são também discutidas com propriedade em "O Quark e o Jaguar" (Rocco), de Murray Gell-Mann -propositor dos quarks.
Coloca-se então -e não sem algum trauma- a possibilidade de termos, num futuro próximo, o computador como nosso êmulo nas atividades de criação intelectual, quem sabe até ultrapassando o patamar humano. Lembremos que no match enxadrístico de 1997 entre Garry Kasparov (o então campeão mundial) e o computador Deep Blue, se saiu este vitorioso inconteste. A tecnologia RS/6000 desenvolvida pela IBM proporcionou ao Deep Blue a capacidade de analisar 200 milhões de posições por segundo. Kasparov consegue habitualmente examinar cerca de três posições por segundo.
Acredita-se então que o ponto crucial seja: o homem pensa conceitualmente, ao passo que a máquina usa a força bruta -alastrando sua prodigalidade analítica até as posições terminais das sequências possíveis e acolhendo a melhor. Recentemente, em um torneio, um processador anunciou a um (humilhado) humano: "Mate em 68 jogadas!". Mas o xadrez -dirão alguns, para minimizar o triunfo- é meramente um jogo computacional. Não tem sido esta, no entanto, a opinião de seus mais notáveis cultores ao longo do tempo, os quais têm invariavelmente destacado o viés artístico do "jogo dos reis" (denominado também -e não casualmente- a "arte de Caissa"). É, de fato, difícil deixar de atribuir a certas partidas de Morphy, Alekhine, Rubinstein, Keres, Tahl, Fischer (e tantos outros, inclusive Kasparov) adjetivos como "belas", "originais", "preciosas", "geniais", tão corriqueiramente empregados para qualificar instâncias bem-sucedidas da manifestação artística...
A poesia, por sua vez, pressupondo uma articulação semiótica tão complexa e sutil a ponto de se afigurar exclusivamente humana, estaria, "ipso facto", distante e a salvo da sanha do silício. Há indícios, todavia, de que tal distância, se outrora arbitrada em séculos-luz, pode, num futuro próximo, se reduzir a segundos-luz e, se não colapsar, ao menos relativizar egos poéticos... Um exemplo: a mais recente versão (5.1) do "McPoet", programa voltado para a (des)construção de textos, possibilita a elaboração de poemas a partir de métodos estatísticos (cadeias de Markov), de mapeamentos (com substituições previamente agendadas) ou de tratamento completamente randômico. Uma de suas mais divertidas opções -"eecummingsfy"- mimetiza, ainda que de forma superficial, o estilo de e.e. cummings!
Embora, por enquanto, sem uma fatura poética numérica e qualitativamente consistente, é um avanço em que se deve acreditar, considerando-se, em adição, as técnicas que -se supõe- a computação quântica trará.
A estrutura quântica permeia os chips e pode operar futuramente uma arremetida rumo a uma qualidade diferenciada: microchips disponibilizando uma nova lógica de processamento e acarretando empreendimentos computacionais inusitados. O bit convencional, com seus estados alternativos zero ou um, dará lugar ao bit quântico (qubit), capaz de abrigar simultaneamente as duas configurações, já que as funções de onda quânticas correspondem a uma superposição instantânea de estados elementares.
Desse modo, os registros de qubits conterão formações superpostas e exponencialmente mais abundantes. E não se trata apenas de mero aumento da velocidade de processamento. A computação quântica deve originar algoritmos inusuais, mudando qualitativamente certos cálculos complicados (ou até irrealizáveis, atualmente). O primeiro destes algoritmos -visando, no caso, efetuar com eficiência a fatoração numérica- foi concluído por Peter Shor em 1994.
É preciso destacar um outro aspecto: a alta voltagem do desenvolvimento de aplicativos, quer destinados a setores específicos, quer direcionados ao design em geral, exige cada vez mais o trabalho em colaboração, com equipes cada vez mais numerosas. Basta notar que nos quadros de apresentação do "Adobe Photoshop 6" (conhecido software de imagem) ou do "Macromedia Flash 5" (ferramenta multimídia para a Internet) se contam as assinaturas de dezenas de participantes. Acrescendo-se então os múltiplos recursos de hardware e de software que propiciam o resultado final, é razoável incluir na autoria de cada produto gerado (objeto de arte, lazer ou propaganda) toda a gama de pessoas em maior ou menor escala envolvidas no processo. Daí observar-se uma diluição do próprio conceito de autoria. E algo semelhante ocorre no campo correlato da Internet, onde a circulação rápida e copiosa de informações dissolve a ênfase dada em cada autor em particular.
Em vista disso, não seria equivocado inferir que a afirmação da individualidade autoral, convalidada desde o romantismo, no século 19, está hoje posta em xeque e predisposta a definhar. Tal como desapareceu, segundo a arguta interpretação de Walter Benjamin, a aura em torno do objeto de arte em função de sua reprodutibilidade, tende a degenerar-se (ao menos no território computacional-internético) a aura que emoldura o (suposto) autor do produto artístico.
Levando o debate a uma abrangência maior, quanto ao "approach" heurístico: poderia o computador simular todos os caminhos neurobiológicos da mente humana e repetir sua ação cognitiva? Tal hipótese ousada encontra objetores de peso. Um deles, Roger Penrose (físico de renome, propositor de um mecanismo fundamental de emissão de partículas no horizonte dos buracos negros), crê haver uma diferença qualitativa entre o cérebro humano e o "modus operandi" dos chips.
Em outras palavras, certas iniciativas cerebrais do Homo sapiens fugiriam ao alcance dos processadores, configurando um entendimento não-computacional, característico talvez da consciência -esse fenômeno esquivo, tão vinculado à própria sobrevivência de nossa espécie.
Contudo um ranço antropomórfico perpassa, quem sabe, a discussão. Afinal, por que desejar que o computador reproduza a mente humana para verificar se ele está ou não apto a superá-la nos transes da criação? Que tal imaginar o "cérebro eletrônico" -instruído, é claro, pelo homem- concebendo, por meio de mecanismos inaparentes e idiossincráticos, obras comparáveis ou superiores às humanas? Invoquemos novamente a disputa Deep Blue x Kasparov. Na segunda partida, um misterioso movimento de torre do processador da IBM (a saber: 23 Tec.1) lançou o nosso campeão -e os analistas presentes- na mais completa perplexidade. Tal lance, na aparência neutro, insosso, não-palatável a um enxadrista humano, induziu Kasparov a um plano equivocado e, após mais 22 jogadas, à derrota. Não parece absurdo, então, supor que a máquina, elegendo sua estratégia segundo padrões próprios, alcançou um nível de "entendimento" da partida acessível a bem poucos grandes mestres de carne e osso...
A constatação dos avanços nas ações e respostas dos engenhos computadores desperta em muitos de nós o "frisson" do Golem -o lendário monstro conjurado pelas manobras cabalísticas de um rabino de Praga. Este mito, lindamente exposto no poema "El Golem", de Jorge Luis Borges, também foi motivo de um filme mudo importante no acervo do cinema expressionista alemão: "Der Golem" (1920), dirigido por Paul Wegener e Henrik Galeen. O temor arquetípico de que a criatura se volte contra o criador provavelmente contribui para a resistência ao prenúncio de computadores autônomos e, a seu modo, inteligentes.
Embute-se aí, inclusive, a angústia -já explorada à saciedade em narrativas de ficção científica- diante do confronto com seres artificiais poderosos, dotados de "sentimentos" e propensos a nos impor sempiterna escravidão, ainda mais ostensiva do que a consumada pelos nossos banqueiros neoliberais (tão formigueiramente pertinazes em subjugar a população pobre do planeta). Só que a manutenção desta última -a ditadura (des)humana- é, em verdade, tristemente mais provável do que o surgimento espontâneo de máquinas pensantes egoístas e perversas. Parece remota uma argumentação objetiva e isenta capaz de promover o computador a candidato mais viável do que o próprio homem à condição de futuro demiurgo maléfico -ou escravocrata contumaz. E que os deuses do silício nos livrem disso!


Roland de Azeredo Campos é físico do Núcleo de Relatividade e Partículas e professor do Instituto de Física da Universidade de Brasília. Doutor em física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, com pós-doutorado no departamento de Física Matemática da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica).


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