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2001 - do silêncio ao silício
Desenvolvimento de novos softwares e aumento da velocidade de processamento de informações pelos computadores ameaçam colocar em xeque a noção de autoria
Roland de Azeredo Campos
especial para a Folha
Ao contrário do que vaticinara
Arthur Clarke, o físico e escritor
autor de "2001 - Uma Odisséia
no Espaço" (levado às telas por
Stanley Kubrick em 1968), a recente evolução tecnológica se orientou para o espaço interior dos microcomputadores e
dos chips de silício, antes de povoar os
planetas e o espaço sideral com bases e
naves terrestres. O ano de 2001 saudou a
informática e vestiu os indivíduos (os
não-varridos pelo arrastão neoliberal,
naturalmente) -no aconchego de seus
gabinetes- com teclados, mouses e monitores integrados ao micro, em vez de
lançá-los à odisséia errante nos arredores de Júpiter, encerrados em módulos
metálicos silentes, em litígio com gigantescas e alucinadas máquinas computacionais. Comunicação via Internet em
lugar do isolamento ano-luzente. O silício (re)solvendo o silêncio.
Na esteira do progresso da informática
germinaram os softwares de texto, imagem e vídeo, motivando projetos artísticos multifacetados, que passaram a situar o próprio computador como partícipe -e mesmo autor- dos produtos
gerados. Como isso é possível? Segundo
Noam Chomsky, a aquisição de linguagem é consequência de um conjunto de
regras (geradoras e transformacionais)
-comuns a todas as línguas- que repousam em estruturas fisiológicas do cérebro. A pesquisa de tais regras deve, em
princípio, conduzir a processos de simulação computacional passíveis de gerar
trabalhos artísticos originais, configurando e instituindo a inteligência artificial criadora. Tentativas nesse sentido
são relatadas no livro "Would-Be
Worlds" ("Mundos Virtuais", na edição
brasileira, ed. Revan), de John L. Casti.
Crê o autor -membro do corpo docente do Instituto Santa Fé, Novo México, Estados Unidos- na potencialidade
dos processadores como "geradores de
símbolos" (sic) ou signos (na nomenclatura da semiótica peirceana). A transição
ao pensamento criativo e as alternativas
para os sistemas adaptativos complexos
são também discutidas com propriedade
em "O Quark e o Jaguar" (Rocco), de
Murray Gell-Mann -propositor dos
quarks.
Coloca-se então -e não sem algum
trauma- a possibilidade de termos,
num futuro próximo, o computador como nosso êmulo nas atividades de criação intelectual, quem sabe até ultrapassando o patamar humano. Lembremos
que no match enxadrístico de 1997 entre
Garry Kasparov (o então campeão mundial) e o computador Deep Blue, se saiu
este vitorioso inconteste. A tecnologia
RS/6000 desenvolvida pela IBM proporcionou ao Deep Blue a capacidade de
analisar 200 milhões de posições por segundo. Kasparov consegue habitualmente examinar cerca de três posições
por segundo.
Acredita-se então que o ponto crucial
seja: o homem pensa conceitualmente,
ao passo que a máquina usa a força bruta
-alastrando sua prodigalidade analítica
até as posições terminais das sequências
possíveis e acolhendo a melhor. Recentemente, em um torneio, um processador
anunciou a um (humilhado) humano:
"Mate em 68 jogadas!". Mas o xadrez
-dirão alguns, para minimizar o triunfo- é meramente um jogo computacional. Não tem sido esta, no entanto, a opinião de seus mais notáveis cultores ao longo do tempo, os quais têm invariavelmente destacado o viés artístico do "jogo
dos reis" (denominado também -e não
casualmente- a "arte de Caissa"). É, de
fato, difícil deixar de atribuir a certas partidas de Morphy, Alekhine, Rubinstein,
Keres, Tahl, Fischer (e tantos outros, inclusive Kasparov) adjetivos como "belas", "originais", "preciosas", "geniais",
tão corriqueiramente empregados para
qualificar instâncias bem-sucedidas da
manifestação artística...
A poesia, por sua vez, pressupondo
uma articulação semiótica tão complexa
e sutil a ponto de se afigurar exclusivamente humana, estaria, "ipso facto", distante e a salvo da sanha do silício. Há indícios, todavia, de que tal distância, se
outrora arbitrada em séculos-luz, pode,
num futuro próximo, se reduzir a segundos-luz e, se não colapsar, ao menos relativizar egos poéticos... Um exemplo: a
mais recente versão (5.1) do "McPoet",
programa voltado para a (des)construção de textos, possibilita a elaboração de
poemas a partir de métodos estatísticos
(cadeias de Markov), de mapeamentos
(com substituições previamente agendadas) ou de tratamento completamente
randômico. Uma de suas mais divertidas
opções -"eecummingsfy"- mimetiza,
ainda que de forma superficial, o estilo
de e.e. cummings!
Embora, por enquanto, sem uma fatura poética numérica e qualitativamente
consistente, é um avanço em que se deve
acreditar, considerando-se, em adição,
as técnicas que -se supõe- a computação quântica trará.
A estrutura quântica permeia os chips
e pode operar futuramente uma arremetida rumo a uma qualidade diferenciada:
microchips disponibilizando uma nova
lógica de processamento e acarretando
empreendimentos computacionais inusitados. O bit convencional, com seus estados alternativos zero ou um, dará lugar
ao bit quântico (qubit), capaz de abrigar
simultaneamente as duas configurações,
já que as funções de onda quânticas correspondem a uma superposição instantânea de estados elementares.
Desse modo, os registros de qubits
conterão formações superpostas e exponencialmente mais abundantes. E não se
trata apenas de mero aumento da velocidade de processamento. A computação
quântica deve originar algoritmos inusuais, mudando qualitativamente certos
cálculos complicados (ou até irrealizáveis, atualmente). O primeiro destes algoritmos -visando, no caso, efetuar
com eficiência a fatoração numérica-
foi concluído por Peter Shor em 1994.
É preciso destacar um outro aspecto: a
alta voltagem do desenvolvimento de
aplicativos, quer destinados a setores específicos, quer direcionados ao design
em geral, exige cada vez mais o trabalho
em colaboração, com equipes cada vez
mais numerosas. Basta notar que nos
quadros de apresentação do "Adobe
Photoshop 6" (conhecido software de
imagem) ou do "Macromedia Flash 5"
(ferramenta multimídia para a Internet)
se contam as assinaturas de dezenas de
participantes. Acrescendo-se então os
múltiplos recursos de hardware e de software que propiciam o resultado final, é
razoável incluir na autoria de cada produto gerado (objeto de arte, lazer ou propaganda) toda a gama de pessoas em
maior ou menor escala envolvidas no
processo. Daí observar-se uma diluição
do próprio conceito de autoria. E algo semelhante ocorre no campo correlato da
Internet, onde a circulação rápida e copiosa de informações dissolve a ênfase
dada em cada autor em particular.
Em vista disso, não seria equivocado
inferir que a afirmação da individualidade autoral, convalidada desde o romantismo, no século 19, está hoje posta em
xeque e predisposta a definhar. Tal como
desapareceu, segundo a arguta interpretação de Walter Benjamin, a aura em torno do objeto de arte em função de sua reprodutibilidade, tende a degenerar-se
(ao menos no território computacional-internético) a aura que emoldura o (suposto) autor do produto artístico.
Levando o debate a uma abrangência
maior, quanto ao "approach" heurístico:
poderia o computador simular todos os
caminhos neurobiológicos da mente humana e repetir sua ação cognitiva? Tal hipótese ousada encontra objetores de peso. Um deles, Roger Penrose (físico de
renome, propositor de um mecanismo
fundamental de emissão de partículas no
horizonte dos buracos negros), crê haver
uma diferença qualitativa entre o cérebro humano e o "modus operandi" dos
chips.
Em outras palavras, certas iniciativas
cerebrais do Homo sapiens fugiriam ao
alcance dos processadores, configurando um entendimento não-computacional, característico talvez da consciência
-esse fenômeno esquivo, tão vinculado
à própria sobrevivência de nossa espécie.
Contudo um ranço antropomórfico
perpassa, quem sabe, a discussão. Afinal,
por que desejar que o computador reproduza a mente humana para verificar
se ele está ou não apto a superá-la nos
transes da criação? Que tal imaginar o
"cérebro eletrônico" -instruído, é claro, pelo homem- concebendo, por
meio de mecanismos inaparentes e
idiossincráticos, obras comparáveis ou
superiores às humanas? Invoquemos
novamente a disputa Deep Blue x Kasparov. Na segunda partida, um misterioso
movimento de torre do processador da
IBM (a saber: 23 Tec.1) lançou o nosso
campeão -e os analistas presentes- na
mais completa perplexidade. Tal lance,
na aparência neutro, insosso, não-palatável a um enxadrista humano, induziu
Kasparov a um plano equivocado e, após
mais 22 jogadas, à derrota. Não parece
absurdo, então, supor que a máquina,
elegendo sua estratégia segundo padrões
próprios, alcançou um nível de "entendimento" da partida acessível a bem poucos grandes mestres de carne e osso...
A constatação dos avanços nas ações e
respostas dos engenhos computadores
desperta em muitos de nós o "frisson" do
Golem -o lendário monstro conjurado
pelas manobras cabalísticas de um rabino de Praga. Este mito, lindamente exposto no poema "El Golem", de Jorge
Luis Borges, também foi motivo de um
filme mudo importante no acervo do cinema expressionista alemão: "Der Golem" (1920), dirigido por Paul Wegener e
Henrik Galeen. O temor arquetípico de
que a criatura se volte contra o criador
provavelmente contribui para a resistência ao prenúncio de computadores autônomos e, a seu modo, inteligentes.
Embute-se aí, inclusive, a angústia -já
explorada à saciedade em narrativas de
ficção científica- diante do confronto
com seres artificiais poderosos, dotados
de "sentimentos" e propensos a nos impor sempiterna escravidão, ainda mais
ostensiva do que a consumada pelos
nossos banqueiros neoliberais (tão formigueiramente pertinazes em subjugar a
população pobre do planeta). Só que a
manutenção desta última -a ditadura
(des)humana- é, em verdade, tristemente mais provável do que o surgimento espontâneo de máquinas pensantes
egoístas e perversas. Parece remota uma
argumentação objetiva e isenta capaz de
promover o computador a candidato
mais viável do que o próprio homem à
condição de futuro demiurgo maléfico
-ou escravocrata contumaz. E que os
deuses do silício nos livrem disso!
Roland de Azeredo Campos é físico do Núcleo
de Relatividade e Partículas e professor do Instituto de Física da Universidade de Brasília. Doutor em
física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas,
com pós-doutorado no departamento de Física
Matemática da Universidade Livre de Bruxelas
(Bélgica).
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