São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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Socialismo ou barbárie

José Arthur Giannotti

A disjuntiva é clássica, mas no seu classicismo formula um programa. Eugen Fink, aluno de Edmund Husserl, notava que pensamos mediante ruínas de pensamento. Mas, porque o pensamento antigo se incorpora ao novo como monumento semidestruído, é preciso indagar como o velho, ao se inscrever em nova paisagem, se rearticula, reconstrói sua própria identidade. Daí a importância da pergunta sobre os vários sentidos dessa disjuntiva: socialismo ou barbárie. Para o militante, por exemplo, indica a encruzilhada apontando o caminho da felicidade social ou de sua perversão.
Em contrapartida, para o lógico, para aquele que procura nos discursos o modo pelo qual os significados se engrenam entre si por meio de práticas definidas, em suma, para quem estuda a gramática deles, a expressão "socialismo ou barbárie" possui sentidos diferentes conforme se alteram as práticas a ela vinculadas. Não seria o caso de esboçar o mapa gramatical dessa disjuntiva?
Antes de sugerir alguns passos nessa direção, convém explicitar o que estou entendendo por "gramática", pois aplico esse conceito tal como foi reformulado por Wittgenstein. Uma flecha, objeto do mundo cotidiano, assinala o contexto de seu uso, mas esse sinal se transforma num autêntico signo se, por exemplo, for colocado num poste indicando o lado da estrada que vai para São Paulo e o lado inverso indo para o Rio de Janeiro. Em vista desse jogo torna-se então possível agir correta ou incorretamente. Um sinal pode ser autêntico, não está, porém, dotado da bipolaridade do verdadeiro e do falso; somente o signo, elemento de um jogo de linguagem, possui essa virtude.
Uso esse instrumento para tentar entender a transformação do valor de uso em valor, proposta por Marx, sem cair nas arapucas da lógica hegeliana. Mas aqui não é o lugar para estudar essas questões.

Fatos do discurso Sabemos que Marx entende por "barbárie" um regime político-social no qual a lei se torna "ad hoc", muito distante, portanto, do estado de selvageria onde nenhuma lei teria vigência, e por "socialismo", um estágio de transição para o comunismo, regime no qual cada um daria de acordo com suas capacidades e receberia segundo suas necessidades. Para isso um novo modo de produção social deveria ser instituído. Essas duas definições são formais, pois não indicam o modo de medir essa capacidade e essa necessidade. Como emprestar-lhes conteúdo?
Para a maioria dos socialistas do século 19, inclusive para Marx, a ciência seria capaz de cumprir a tarefa de descobrir no desenvolvimento do modo de produção capitalista o caminho da abundância e da justiça social. Divergem, porém, na maneira pela qual se deve determinar no fato do capital o elemento de sua superação. O marxismo pretende descobrir nesse fato uma contradição: a oposição, o antagonismo do capital e do trabalho, se esticaria na medida em que o primeiro, graças ao desenvolvimento tecnológico, tenderia a reduzir o trabalho a um mínimo cada vez mais descartável, e este consequentemente tenderia a ser reduzido a um nada social.
Hegel não teria grandes dificuldades em pensar essa tendência chegando a seu limite, de tal modo que o proletário, transformado em nada, nada tendo a perder com a revolução, seria levado a abolir o capital, apropriando-se da riqueza gerada por ele. O modo pelo qual essa riqueza é produzida pelo sistema capitalista já integraria seus meios numa identidade social, atribuiria a eles um sentido social, a despeito da forma privada de sua apropriação. O perfil do novo já estaria desenhado no velho. Hegel não teria dificuldades em explicar essa passagem ao limite, em transformar a tendência numa nova identidade social, pois, para ele, qualquer contradição se move na medida em que aspira ao Absoluto. Como Marx pode raciocinar nesses termos sendo materialista?
Há 30 anos venho repetindo o mesmo argumento. Mas, provavelmente porque amo complicações, até Roberto Schwarz, velho irmão de guerra, ainda não me compreendeu. Isso se deduz da crítica que me fez, em sua resenha de "Certa Herança Marxista", publicada no Mais! de 4/3/2001, cobrando-me uma hipótese materialista.
A dificuldade, penso eu, não está em "imaginar que as próprias idéias hegelianas de contradição e superação tenham a ver com os movimentos da sociedade contemporânea", mas legitimar essa afirmação no mínimo esdrúxula. As contradições são fatos do discurso e, portanto, não podem ser tomadas como realidade enquanto não for mostrado como esse real é discursivo. Ninguém tropeça nelas como se fossem pedras, por isso as ciências sempre as evitam. Afirmar, em contrapartida, que tudo é contraditório leva ao paradoxo, pois, se essa afirmação também é contraditória, ela perde seu sentido. Como separar na realidade o que é contraditório e o que não é? Está fora de propósito atribuir uma visão divina que permitiria ver a si mesmo como o ponto absoluto da totalização desse real. Nesse ponto Marx, ao longo de sua vida, é ambíguo, mas o marxismo fecha a questão fazendo do proletariado o Absoluto da história.
Nunca aceitei essa saída e por isso procuro aquela contradição específica do capital, como vem a ser fato e, ao mesmo tempo, jogo de socialização. Se a ciência não me leva a ela, cabe buscá-la no lado crítico dos próprios fatos, por meio de um discurso significativo que vá além dos limites do pensamento científico. Que sentido possui essa crítica e como ela lida com sentidos sociais? Essa é minha questão.
Roberto Schwarz percebe claramente que, ao colocá-la nesses termos, estou duvidando da visão marxista da política. Se para mim a contradição do capital e do trabalho se trava, precisamente, porque o desenvolvimento tecnológico embaralha as forças em conflito, se não vejo nos antagonismos da sociedade contemporânea uma socialização das forças produtivas configurando um novo modo de produção univocamente definido, se a barbárie pode estar no capitalismo e no socialismo, não devo pedir à política que se limite a desempenhar o papel de parteira de um filho já pronto. Não vejo como imaginar que os trabalhadores, devendo concorrer entre si até mesmo para encontrar emprego, possam encontrar sua possibilidade de unificação numa classe social na estruturação totalizante do capital. Se o mercado explode em várias direções, o trabalhador total, como foi concebido por Marx, perde qualquer sentido e, com isso, a unidade social e revolucionária do proletariado.

Pluralidade dos partidos No entanto, se a possibilidade do novo não está inteiramente inscrita no movimento do capital, não estou por isso negando que continua a criar riqueza e miséria ao mesmo tempo. Mas com isso apenas se consolida uma base em que se assentam várias formas possíveis de justiça social. Se o capitalismo apenas sugere novas formas de produção, se o velho não desenha o perfil do novo, se tão-só prepara o terreno para nova semeadura, a política precisa inventar uma maneira de tratar a contradição do capital. A barbárie do capitalismo pode muito bem ser mantida num sistema em que a forma de produção baseada na mercadoria seja posta em xeque. Roberto Schwarz se engana redondamente quando me empresta o projeto de encontrar em Marx "o ferrolho teórico do capital" ou, ainda, de tentar mostrar que "a superação do capitalismo leva à barbárie".
Na barbárie já estamos metidos e, no que concerne ao capital, apenas tento mostrar que não traz no ventre o filho do socialismo. Muito menos vejo na grande indústria aquela identidade que prefiguraria a identidade do Partido-Estado, a parteira da classe operária como classe, como pretendeu Lênin.


Se o mercado explode em várias direções, o trabalhador total, como foi concebido por Marx, perde qualquer sentido e, com isso, a unidade social e revolucionária do proletariado


Ora, se a unidade da produção e aquela da classe operária implodem, o que deve mudar numa política de esquerda? Se do lado do capital e do lado do trabalho o todo se forma por meio de políticas "ad hoc", se uma totalidade inscrita na sociedade burguesa não prefigura a totalidade de sua superação, a ponte unindo movimentos sociais e movimentos políticos precisa ser tecida pelos processos de representação indireta, pois cada um dos interesses de classe haverá de ser visto sob aspectos diferentes.
Por certo há de incentivar a participação direta em níveis locais, mas seria ignorar o sentido construtivo da política contemporânea fazer da representação direta o ideal da república. Se o povo não possui aquela identidade que possibilite reconhecer no espelho seu perfil já formado, ele só pode governar a si mesmo se aceitar a mediação de um espelho fragmentado, onde cada parte não possui o segredo do todo. Desse modo, qualquer participação direta da população nos destinos de um governo fica sujeita ao jogo interno dos partidos. Não basta, portanto, afirmar o compromisso inapelável das esquerdas com a democracia, ainda é preciso esclarecer devidamente como lidam com a pluralidade de representação da própria classe operária. Sendo falso imaginar que os trabalhadores em geral tenham interesses que possam ser considerados de um único ponto de vista, não há como impedir a pluralidade dos partidos, inclusive daqueles que se dizem representantes dos trabalhadores. Não se está assim abandonando definitivamente o ideal unificador da revolução? Por que não confessar, então, que viramos todos social-democratas? Por que não condenar toda forma de partido único? Tergiversar numa questão de princípio apenas confunde a ação política. Mas a relação que os políticos de esquerda mantêm com a ditadura cubana é exemplar dessa ambiguidade. Todas as restrições que Fidel Castro impõe às liberdades democráticas são minimizadas e justificadas tendo em vista o perigo externo representado pelo bloqueio americano.

Única irmandade Penso que esse bloqueio é uma vergonha, mas o que leva Fidel a se colocar como o único representante dos interesses cubanos? Essa explicação apela para a tradicional ameaça de um inimigo externo que, devendo unir os amigos numa única irmandade, justifica qualquer ditadura interna. A parte, porém, que se quer total e representante da unidade é germe de totalitarismo. E não se venha com a desculpa de que uma eleição certamente daria vitória ao comandante.
Como o nazismo nos mostrou, não é o voto pontual do povo que empresta caráter democrático a um regime, mas o jogo partidário da multiplicidade dos interesses. No fundo dessa hesitação transparece o velho preconceito de que uma sociedade profundamente desigual não está preparada para a democracia, que o explorador não pode ter os mesmos direitos políticos do explorado. Onde está porém a linha clara e precisa que os separa? Os direitos de cidadania, atribuídos a todos independentemente de suas situações sociais, não possuem um poder corrosivo que o marxismo desconhece?
Em que, porém, essas teses me distinguiriam do liberalismo? Na tentativa de mostrar que existe, no próprio nível da sociedade civil-burguesa, uma fissura, uma contradição entre o exercício da produção e a apropriação dos frutos do trabalho social. Continuo a pensar que as sociedades capitalistas estão atravessadas por uma contradição, travada, contudo, no seu desdobramento.

Passes possíveis Daí a urgência de políticas muito específicas, cujo perfil se desenha pela maneira de tratar essa fissura, negando-a ou assumindo-a para então implementar novas formas de sociabilidade. A dificuldade está em alimentar a igualdade inscrita nas relações sociais, notadamente presente na superfície dos contratos de trabalho, mostrar que essa igualdade, matriz de plena cidadania, só se pode realizar se houver controle público das decisões de política econômica. Mas para isso será preciso inventar e instalar novas formas de representação indireta.
Pela primeira vez Roberto Schwarz me concede que, quando trato de problemas lógicos, não estou falando de flores. Simplesmente procuro bases diferentes para a ética e para a política. Se essa procura é estranha, se alguns me acusam de determinista, se outros, de libertário, é porque não entendem a especificidade que tento estabelecer entre o possível e o real. Em poucas palavras diria que o possível somente vem a ser possível de uma realidade efetiva se alargar o âmbito inicial dessa possibilidade, se inventar uma nova forma de necessidade. Mas para isso termina criando formas inauditas de erro.
Por exemplo: no jogo de futebol são possíveis certos passes, outros não; contudo é também possível ampliar o jogo permitindo cobrar certas faltas fazendo o uso da mão. Mas essa ampliação do jogo também requer nova institucionalidade do juiz. Não é nesse meio de possibilidade que a história se move? Paremos, entretanto, por aqui, senão deixo de ser obscuramente claro para vir a ser claro na minha própria obscuridade.

José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.



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