|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ brasil 501 d.C.
Socialismo ou barbárie
José Arthur Giannotti
A disjuntiva é clássica, mas no seu
classicismo formula um programa. Eugen Fink, aluno de Edmund Husserl, notava que pensamos mediante ruínas de pensamento.
Mas, porque o pensamento antigo se incorpora ao novo como monumento semidestruído, é preciso indagar como o
velho, ao se inscrever em nova paisagem,
se rearticula, reconstrói sua própria
identidade. Daí a importância da pergunta sobre os vários sentidos dessa disjuntiva: socialismo ou barbárie. Para o
militante, por exemplo, indica a encruzilhada apontando o caminho da felicidade social ou de sua perversão.
Em contrapartida, para o lógico, para
aquele que procura nos discursos o modo pelo qual os significados se engrenam
entre si por meio de práticas definidas,
em suma, para quem estuda a gramática
deles, a expressão "socialismo ou barbárie" possui sentidos diferentes conforme
se alteram as práticas a ela vinculadas.
Não seria o caso de esboçar o mapa gramatical dessa disjuntiva?
Antes de sugerir alguns passos nessa
direção, convém explicitar o que estou
entendendo por "gramática", pois aplico
esse conceito tal como foi reformulado
por Wittgenstein. Uma flecha, objeto do
mundo cotidiano, assinala o contexto de
seu uso, mas esse sinal se transforma
num autêntico signo se, por exemplo, for
colocado num poste indicando o lado da
estrada que vai para São Paulo e o lado
inverso indo para o Rio de Janeiro. Em
vista desse jogo torna-se então possível
agir correta ou incorretamente. Um sinal
pode ser autêntico, não está, porém, dotado da bipolaridade do verdadeiro e do
falso; somente o signo, elemento de um
jogo de linguagem, possui essa virtude.
Uso esse instrumento para tentar entender a transformação do valor de uso
em valor, proposta por Marx, sem cair
nas arapucas da lógica hegeliana. Mas
aqui não é o lugar para estudar essas
questões.
Fatos do discurso Sabemos que
Marx entende por "barbárie" um regime
político-social no qual a lei se torna "ad
hoc", muito distante, portanto, do estado de selvageria onde nenhuma lei teria
vigência, e por "socialismo", um estágio
de transição para o comunismo, regime
no qual cada um daria de acordo com
suas capacidades e receberia segundo
suas necessidades. Para isso um novo
modo de produção social deveria ser instituído. Essas duas definições são formais, pois não indicam o modo de medir
essa capacidade e essa necessidade. Como emprestar-lhes conteúdo?
Para a maioria dos socialistas do século
19, inclusive para Marx, a ciência seria
capaz de cumprir a tarefa de descobrir
no desenvolvimento do modo de produção capitalista o caminho da abundância
e da justiça social. Divergem, porém, na
maneira pela qual se deve determinar no
fato do capital o elemento de sua superação. O marxismo pretende descobrir
nesse fato uma contradição: a oposição,
o antagonismo do capital e do trabalho,
se esticaria na medida em que o primeiro, graças ao desenvolvimento tecnológico, tenderia a reduzir o trabalho a um
mínimo cada vez mais descartável, e este
consequentemente tenderia a ser reduzido a um nada social.
Hegel não teria grandes dificuldades
em pensar essa tendência chegando a seu
limite, de tal modo que o proletário,
transformado em nada, nada tendo a
perder com a revolução, seria levado a
abolir o capital, apropriando-se da riqueza gerada por ele. O modo pelo qual
essa riqueza é produzida pelo sistema capitalista já integraria seus meios numa
identidade social, atribuiria a eles um
sentido social, a despeito da forma privada de sua apropriação. O perfil do novo
já estaria desenhado no velho. Hegel não
teria dificuldades em explicar essa passagem ao limite, em transformar a tendência numa nova identidade social, pois,
para ele, qualquer contradição se move
na medida em que aspira ao Absoluto.
Como Marx pode raciocinar nesses termos sendo materialista?
Há 30 anos venho repetindo o mesmo
argumento. Mas, provavelmente porque
amo complicações, até Roberto Schwarz,
velho irmão de guerra, ainda não me
compreendeu. Isso se deduz da crítica
que me fez, em sua resenha de "Certa
Herança Marxista", publicada no Mais!
de 4/3/2001, cobrando-me uma hipótese
materialista.
A dificuldade, penso eu, não está em
"imaginar que as próprias idéias hegelianas de contradição e superação tenham a
ver com os movimentos da sociedade
contemporânea", mas legitimar essa
afirmação no mínimo esdrúxula. As
contradições são fatos do discurso e,
portanto, não podem ser tomadas como
realidade enquanto não for mostrado
como esse real é discursivo. Ninguém
tropeça nelas como se fossem pedras,
por isso as ciências sempre as evitam.
Afirmar, em contrapartida, que tudo é
contraditório leva ao paradoxo, pois, se
essa afirmação também é contraditória,
ela perde seu sentido. Como separar na
realidade o que é contraditório e o que
não é? Está fora de propósito atribuir
uma visão divina que permitiria ver a si
mesmo como o ponto absoluto da totalização desse real. Nesse ponto Marx, ao
longo de sua vida, é ambíguo, mas o
marxismo fecha a questão fazendo do
proletariado o Absoluto da história.
Nunca aceitei essa saída e por isso procuro aquela contradição específica do capital, como vem a ser fato e, ao mesmo
tempo, jogo de socialização. Se a ciência
não me leva a ela, cabe buscá-la no lado
crítico dos próprios fatos, por meio de
um discurso significativo que vá além
dos limites do pensamento científico.
Que sentido possui essa crítica e como
ela lida com sentidos sociais? Essa é minha questão.
Roberto Schwarz percebe claramente
que, ao colocá-la nesses termos, estou
duvidando da visão marxista da política.
Se para mim a contradição do capital e
do trabalho se trava, precisamente, porque o desenvolvimento tecnológico embaralha as forças em conflito, se não vejo
nos antagonismos da sociedade contemporânea uma socialização das forças
produtivas configurando um novo modo de produção univocamente definido,
se a barbárie pode estar no capitalismo e
no socialismo, não devo pedir à política
que se limite a desempenhar o papel de
parteira de um filho já pronto. Não vejo
como imaginar que os trabalhadores, devendo concorrer entre si até mesmo para
encontrar emprego, possam encontrar
sua possibilidade de unificação numa
classe social na estruturação totalizante
do capital. Se o mercado explode em várias direções, o trabalhador total, como
foi concebido por Marx, perde qualquer
sentido e, com isso, a unidade social e revolucionária do proletariado.
Pluralidade dos partidos No entanto, se a possibilidade do novo não está
inteiramente inscrita no movimento do
capital, não estou por isso negando que
continua a criar riqueza e miséria ao
mesmo tempo. Mas com isso apenas se
consolida uma base em que se assentam
várias formas possíveis de justiça social.
Se o capitalismo apenas sugere novas
formas de produção, se o velho não desenha o perfil do novo, se tão-só prepara o
terreno para nova semeadura, a política
precisa inventar uma maneira de tratar a
contradição do capital. A barbárie do capitalismo pode muito bem ser mantida
num sistema em que a forma de produção baseada na mercadoria seja posta em
xeque. Roberto Schwarz se engana redondamente quando me empresta o
projeto de encontrar em Marx "o ferrolho teórico do capital" ou, ainda, de tentar mostrar que "a superação do capitalismo leva à barbárie".
Na barbárie já estamos metidos e, no
que concerne ao capital, apenas tento
mostrar que não traz no ventre o filho do
socialismo. Muito menos vejo na grande
indústria aquela identidade que prefiguraria a identidade do Partido-Estado, a
parteira da classe operária como classe,
como pretendeu Lênin.
Se o mercado explode em várias direções, o trabalhador total, como foi concebido por Marx, perde qualquer sentido e, com isso, a unidade social e revolucionária do proletariado
|
Ora, se a unidade da produção e aquela
da classe operária implodem, o que deve
mudar numa política de esquerda? Se do
lado do capital e do lado do trabalho o todo se forma por meio de políticas "ad
hoc", se uma totalidade inscrita na sociedade burguesa não prefigura a totalidade
de sua superação, a ponte unindo movimentos sociais e movimentos políticos
precisa ser tecida pelos processos de representação indireta, pois cada um dos
interesses de classe haverá de ser visto
sob aspectos diferentes.
Por certo há de incentivar a participação direta em níveis locais, mas seria ignorar o sentido construtivo da política
contemporânea fazer da representação
direta o ideal da república. Se o povo não
possui aquela identidade que possibilite
reconhecer no espelho seu perfil já formado, ele só pode governar a si mesmo
se aceitar a mediação de um espelho
fragmentado, onde cada parte não possui o segredo do todo. Desse modo, qualquer participação direta da população
nos destinos de um governo fica sujeita
ao jogo interno dos partidos. Não basta,
portanto, afirmar o compromisso inapelável das esquerdas com a democracia,
ainda é preciso esclarecer devidamente
como lidam com a pluralidade de representação da própria classe operária. Sendo falso imaginar que os trabalhadores
em geral tenham interesses que possam
ser considerados de um único ponto de
vista, não há como impedir a pluralidade
dos partidos, inclusive daqueles que se
dizem representantes dos trabalhadores.
Não se está assim abandonando definitivamente o ideal unificador da revolução?
Por que não confessar, então, que viramos todos social-democratas? Por que
não condenar toda forma de partido único? Tergiversar numa questão de princípio apenas confunde a ação política. Mas
a relação que os políticos de esquerda
mantêm com a ditadura cubana é exemplar dessa ambiguidade. Todas as restrições que Fidel Castro impõe às liberdades democráticas são minimizadas e justificadas tendo em vista o perigo externo
representado pelo bloqueio americano.
Única irmandade Penso que esse bloqueio é uma vergonha, mas o que leva Fidel a se colocar como o único representante dos interesses cubanos? Essa explicação apela para a tradicional ameaça de
um inimigo externo que, devendo unir
os amigos numa única irmandade, justifica qualquer ditadura interna. A parte,
porém, que se quer total e representante
da unidade é germe de totalitarismo. E
não se venha com a desculpa de que uma
eleição certamente daria vitória ao comandante.
Como o nazismo nos mostrou, não é o
voto pontual do povo que empresta caráter democrático a um regime, mas o jogo partidário da multiplicidade dos interesses. No fundo dessa hesitação transparece o velho preconceito de que uma
sociedade profundamente desigual não
está preparada para a democracia, que o
explorador não pode ter os mesmos direitos políticos do explorado. Onde está
porém a linha clara e precisa que os separa? Os direitos de cidadania, atribuídos a
todos independentemente de suas situações sociais, não possuem um poder corrosivo que o marxismo desconhece?
Em que, porém, essas teses me distinguiriam do liberalismo? Na tentativa de
mostrar que existe, no próprio nível da
sociedade civil-burguesa, uma fissura,
uma contradição entre o exercício da
produção e a apropriação dos frutos do
trabalho social. Continuo a pensar que as
sociedades capitalistas estão atravessadas por uma contradição, travada, contudo, no seu desdobramento.
Passes possíveis Daí a urgência de
políticas muito específicas, cujo perfil se
desenha pela maneira de tratar essa fissura, negando-a ou assumindo-a para
então implementar novas formas de sociabilidade. A dificuldade está em alimentar a igualdade inscrita nas relações
sociais, notadamente presente na superfície dos contratos de trabalho, mostrar
que essa igualdade, matriz de plena cidadania, só se pode realizar se houver controle público das decisões de política econômica. Mas para isso será preciso inventar e instalar novas formas de representação indireta.
Pela primeira vez Roberto Schwarz me
concede que, quando trato de problemas
lógicos, não estou falando de flores. Simplesmente procuro bases diferentes para
a ética e para a política. Se essa procura é
estranha, se alguns me acusam de determinista, se outros, de libertário, é porque
não entendem a especificidade que tento
estabelecer entre o possível e o real. Em
poucas palavras diria que o possível somente vem a ser possível de uma realidade efetiva se alargar o âmbito inicial dessa possibilidade, se inventar uma nova
forma de necessidade. Mas para isso termina criando formas inauditas de erro.
Por exemplo: no jogo de futebol são
possíveis certos passes, outros não; contudo é também possível ampliar o jogo
permitindo cobrar certas faltas fazendo o
uso da mão. Mas essa ampliação do jogo
também requer nova institucionalidade
do juiz. Não é nesse meio de possibilidade que a história se move? Paremos, entretanto, por aqui, senão deixo de ser
obscuramente claro para vir a ser claro
na minha própria obscuridade.
José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento), autor de,
entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.
Texto Anterior: + tecnologia - Roland de Azeredo Campos: 2001 - do silêncio ao silício Próximo Texto: Luiz Costa Lima: Entre o humor e o absurdo Índice
|