São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

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+ Cinema

Em busca do Haiti

Elogiado por Werner Herzog, o diretor dinamarquês Asger Leth lança filme sobre a violência política e social no país caribenho
LARS MOVIN
Em outubro passado, Werner Herzog esteve no centro das atenções de um seminário de dois dias de duração promovido pela Escola Nacional de Cinema da Dinamarca.
Quando lhe pediram para identificar novas tendências no cinema documental que considerasse especialmente interessantes, Herzog citou um único título: "Ghosts of Cité Soleil" [Fantasmas de Cité Soleil], o trabalho de estréia na direção de Asger Leth, cineasta dinamarquês de 36 anos (com co-direção do sérvio Milos Loncarevic).
O filme foi rodado em Cité Soleil, uma favela em rápido crescimento situada na periferia da capital do Haiti e já citada pela ONU como o local mais perigoso do planeta.
O filme se passa nos meses em torno do Ano Novo de 2003-4, um período especialmente tumultuado, quando o presidente Jean-Bertrand Aristide, eleito pela primeira vez em 1991, foi obrigado a recuar e fugir do país, deixando o Haiti em estado de anarquia sangrenta.
Os personagens principais são dois irmãos, Bily e 2pac, líderes destacados das chamadas "chimères" [quimeras], milícias informais armadas que apoiavam Aristide e, ao mesmo tempo -num misto de idealismo e métodos criminosos-, tentavam conservar um semblante de justiça na favela.
A história atinge diretamente o coração do caos num lugar que em geral é de acesso proibido a jornalistas ou cineastas, onde líderes de gangues convivem com a miséria abjeta da população e o atoleiro de corrupção, brutalidade e abuso de poder que caracteriza o Haiti quase sem interrupção desde 1804 -quando se tornou a primeira república negra a conquistar a independência.
O fato de o Haiti ter se tornado o tema do primeiro filme de Leth não é coincidência. Nos últimos anos, Asger tem passado alguns meses de todos os anos no Haiti, pois seu pai, o cineasta Jorgen Leth, vive nesse país.
Pai e filho passaram a colaborar em nível mais profissional: Asger Leth foi co-roteirista e diretor de segunda unidade de "The Five Obstructions" [Os Cinco Obstáculos](2003), o desafio irreverente lançado por Lars von Trier a Jorgen Leth.

Ataque das milícias
"Trabalhar em "Obstáculos" liberou muita energia criativa em mim", diz Asger Leth. "Nessa época eu estava casado e vivia nos EUA, mas me divorciei pouco depois e senti que era hora de começar a fazer meu próprio trabalho. Entrei numa fase de busca ativa por uma história que eu pudesse fazer."
Uma história começou a tomar forma em 2003, quando a pressão internacional obrigou o presidente Aristide a colocar na prisão um dos líderes mais visíveis das "chimères", Amiot Métayer, líder do chamado Exército Canibal.
A reação dos militantes de base das "chimères" não se fez esperar. Eles libertaram Métayer da prisão, e, pouco depois de este ter ameaçado contar à imprensa internacional sobre o pacto secreto entre o presidente e os líderes de gangues, Aristide reagiu ordenando o assassinato de Métayer, o que desencadeou uma revolta em grande escala.
O irmão de Métayer retornou do exílio na Flórida para assumir a liderança do Exército Canibal; dois outros haitianos exilados -um ex-chefe de polícia, Guy Philippe, e um ex-comandante do Exército, Louis Jodel Chamblain- aproveitaram a oportunidade para retornar à ilha e tomar parte no levante.

Disco quebrado
"Nesse momento, eu já sabia que tinha uma história a contar e eu sabia mais ou menos o rumo que as coisas iam tomar", conta Leth.
"A história do Haiti é como um disco quebrado, que fica repetindo sempre a mesma nota. As mesmas coisas se repetem, sempre. É tão banal que se torna quase inacreditável. A revolta geralmente começa numa cidade ao norte de Porto Príncipe chamada Gonaives, e, quando chega a época do Carnaval, você já sabe que o presidente, ou quem quer que esteja no poder, está prestes a ser obrigado a deixar o país."
"E foi isso mesmo o que aconteceu: a revolta que começou por volta do Ano Novo de 2003-4 surgiu em Gonaives. Então eu sabia que, se pudesse conseguir acesso aos líderes da ‘chimère" em Cité Soleil, eu teria tanto o pano de fundo quanto o esqueleto dramático de uma história."
" O que me faltava, para satisfazer minhas ambições de narrador, eram histórias pessoais fortes que estivessem ligadas ao drama político, e a busca por elas tinha começado."
Leth conheceu dois irmãos, Bily e 2pac, líderes poderosos de gangue. Quis o destino que ambos estivessem lutando por Aristide, mas baseados em visões totalmente divergentes do sistema político. Bily acreditava
no presidente, mas 2pac odiava Aristide e preferiria compor raps que o criticassem a combater a seu lado, coisa que se via obrigado a fazer pelas circunstâncias.
"Era uma coisa quase shakespeariana", diz, "com os dois irmãos: 2pac, de tendências poéticas, que queria sair da favela e fazer rap e que perdera toda sua fé em Aristide; e Bily, um tipo mais a la Che Guevara e que lutava com afinco por Aristide".
"Em torno dos dois personagens era travado um grande jogo de poder político entre o presidente e seu povo e os rebeldes do norte do país. E, para dar o toque final, os dois estavam apaixonados pela mesma mulher."
"Fantasmas de Cité Soleil" é um filme singular, feito no momento certo. Narra uma pequena história que jamais poderá ser repetida. Enquanto isso, a história maior do Haiti continua a tocar, como uma agulha que não sai do mesmo sulco, atolando cada vez mais fundo no abism o.

Imortalidade
Quando perguntei a Leth por que os habitantes de Cité Soleil se deixaram filmar, ele respondeu: "Acho que se deram conta de que iam morrer em pouco tempo, e ninguém quer deixar o mundo sem deixar um rastro seu nele -essa é uma característica humana universal".
"Talvez eles tenham visto o filme como chance de alcançar a imortalidade. Uma parte pequena da razão pode ter sido a esperança de que a presença de uma equipe de filmagem lhes fosse garantir algum tipo de proteção."
"O maior perigo era provavelmente o fato de que estávamos à mercê dos líderes da "chimère". Se fossem mortos enquanto fazíamos o filme, aquela camada de proteção desapareceria de uma hora para outra, e nós teríamos sido mortos também".
Este texto foi publicado na revista "Film". Tradução de Clara Allain.


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