São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Autores

Fim de história

A partir de biografias de Stálin e Mao lançadas no Brasil, filósofo discute padrões de intolerância revolucionária

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre me fascinou a transformação da idéia de uma história universal num fato temporalmente circunscrito, que tanto fecha o ciclo de todos os acontecimentos anteriores quanto abre uma nova forma de vida social.
O exemplo mais conhecido é como o marxismo vê a revolução proletária, que encerraria o longo período da luta de classes para inaugurar os tempos da igualdade e da liberdade.
Não foram simples as torções por que passou a idéia reguladora de uma história universal, que no fundo tem no horizonte uma forma qualquer de juízo final fora do tempo, para se transformar no diagnóstico de um acontecimento total inserido no tempo.
Essas torções não resultaram simplesmente de elucubrações de pensadores utópicos, mas tiveram como ponto de apoio a Revolução Francesa, que acreditou encerrar o Antigo Regime e instalar na Terra o reino da razão e da igualdade, embora tenha terminado por instalar no poder uma nova classe dominante.

Nova historicidade
Tenho lido biografias de grandes homens que se pensam eles próprios como o fim da pré-história da humanidade e início de uma nova forma de historicidade, o que me leva a me inquietar sobre esse problema.
Em particular acabei de ler a de Mao Tse-tung escrita por Jon Halliday e Jung Chang ["Mao - A História Desconhecida"] e aquela de Stálin escrita por Simon Sebag Montefiori ["Stálin"], ambos livros publicados pela Companhia das Letras.
Poucos ainda duvidam de que os dois políticos foram monstros odiosos, mas as biografias, principalmente a de Mao, se esgotam na denúncia moral sem levar em consideração o enorme papel político que desempenharam.
A biografia de Stálin é mais generosa, pois o estuda no meio de sua corte, de um grupo social pouco refinado que acabara de ocupar os salões e as mesas da aristocracia czarista. Surpreende seu refinamento, o gosto pela literatura e pelo cinema, o pai extremoso de uma família.
Mas se Mao é frio e poeta, enquanto Stálin é "bon vivant" e encantador, ambos tiveram como único amor o partido e em nome dele exterminaram milhões de seres humanos.
Estão muito distantes, por exemplo, de Napoleão, que esperava de cada soldado uma "belle mort" como exemplo de como se pode dar a vida pela liberdade.
Os heróis políticos chineses e russos são pequenas peças de uma enorme máquina a serem desprezadas quando não funcionam mais a contento, desgarram-se do motor governante.
Estou obviamente excluindo toda a população civil que sofreu fome, massacres, humilhações para manter a dignidade nacional. Quero apenas chamar a atenção para a diversidade das formas da violência política.
Devoração
O expurgo, iniciado por Lênin e levado ao extremo por Stálin, serviu para afastar e até mesmo destruir antigos companheiros, transformados em bodes expiatórios dos erros que o Comitê Central e o próprio Stálin cometiam. Não era tanto o erro que não podia ser permitido, mas a falta de onisciência.
É comum a revolução devorar seus próprios atores, mas a Revolução de Outubro iado de ontem, que hoje precisa pagar o preço pelo fracasso de uma política que ele mesmo havia apoiado. Sua fraqueza é ser diferente, embora possa ter colaborado para o consenso que levou às medidas adotadas.
Isso já acontece, mas ainda de uma forma imprecisa, com o massacre dos cúlaques, daqueles camponeses proprietários que passaram a ter a obrigação de entregar a preço vil ou gratuitamente os produtos agrícolas necessários para sustentar o programa de rápida industrialização da União Soviética.
A transgressão da norma nunca poderia nascer de uma necessidade fisiológica, como a fome de cada um, porque o simples desobedecer já era considerado traição moral e política.
Nada parecido com Robespierre guilhotinando Danton numa luta entre facções, num conflito de programas e de interesses; depois da Revolução de Outubro, a falta marca todo o grupo e elege outro como justiceiro.
Por isso deve ser punida por todos, a ponto de cada região receber uma cota para matar seus próprios cúlaques.
Os números são assustadores. Calcula-se que morreram, só na Ucrânia, entre 4 a 5 milhões de pessoas; outros chegam à cifra de 10 milhões. Se, na verdade, os números são comparáveis ao terror nazista e ao maoísta, importa, creio eu, assinalar a diferença no sentido desses massacres.

Justificações da destruição
Desde o início, o stalinismo não exclui o outro porque é adversário político, grupo que contesta a política em exercício e propõe novos rumos para o país, mas simplesmente porque é identificado como adversário de classe, da justiça histórica e da razão, simplesmente porque se tornou o elo mais fraco da cadeia do progresso.
Diferente é o genocídio nazista, quando o outro se mostra adversário porque diverge no modo de ser, não do fazer, dos eleitos, escapando assim do padrão da comunidade. A impureza é então natural, encontrando-se marcada no corpo e no sangue.
Notemos igualmente como essa ideologia do massacre difere do terrorismo de hoje, quando o inimigo radical é o infiel, aquele que não crê no que deve crer conforme reza a norma inscrita no livro sagrado. O extermínio stalinista nada mais pretende do que suprimir a vontade adversa.
Isso se exacerba quando os expurgos passam a ser feitos no interior do próprio partido.
Num lindo livro, já de 1947, "Humanismo e Terror" [ed. Tempo Brasileiro], Merleau-Ponty tenta explicar por que, nos processos de Moscou de 1936-37, comunistas da velha guarda, camaradas de Lênin, como Zinóviev e Bukhárin, chegaram a confessar traições contra o Partido que eles nunca poderiam ter cometido.
Deixaram de se defender, considera Merleau-Ponty, porque a integridade e a racionalidade do partido eram mais importantes do que suas próprias vidas.
Documentos recentemente liberados permitem a Sebag Montefiori nuançar essa interpretação, já que a confissão pública seria a moeda de troca para salvar a vida, segundo um acordo que Stálin nunca cumpriu.
Posta a onisciência do Partido, posta a necessidade de suprimir qualquer tipo de discórdia, não há espaço para qualquer forma de política. Nem mesmo o "Príncipe", de Maquiavel, que descreve o caso-limite da política da destruição do adversário, deixa de considerar as vantagens de um cálculo na distribuição dos males e dos bens, assim como a necessidade de uma aliança com o povo miúdo.
Na sua gigantesca análise do totalitarismo, Hannah Arendt mostra como o campo de concentração construía uma fabulosa máquina destinada a suprimir a vontade alheia, transformando o inimigo numa folha levada pelo vento.
Se esse procedimento também foi aplicado no gulag soviético, inexistia no jogo interno do Partido, quando o outro, para ser aniquilado, necessitava ter vontade. O jogo é entre vontades mais fracas e mais fortes.
O Politburo destruiu a si mesmo a tal ponto que, quando a Segunda Guerra se iniciou, não mais podia contar com políticos e militares da velha guarda.
Mas isso não o impediu de, nesse momento, continuar a mandar fuzilar militares descontentes, desertores comunistas alemães que traziam notícias indesejáveis e até mesmo os "derrotistas" que, logo no início, não" souberam resistir às forças do invasor alemão.

Guerra autofágica
A guerra de massa moderna atinge graus inéditos e inacreditáveis de violência.
Mas sua explosão se torna autofágica quando um grupo socialmente subalterno chega ao poder e considera essa ascensão como prova da razão histórica. Ele não está agora no poder, mas se pensa como poder. Daí a necessidade de suprimir toda e qualquer diversidade.
Interessante é que essa anulação do adversário não se faz em termos morais, como acontece atualmente, o bem devendo anular o mal, mas, antes de tudo porque o outro, mostrando-se mais fraco, se candidata a bode expiatório dos erros do grupo dirigente. A vitória comprova sua vontade de potência na impotência de o outro resistir. Mas estaria a política contemporânea inteiramente blindada d essa forma de violência?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção Autores.


Texto Anterior: + Livros: Reinventando a roda
Próximo Texto: + Lançamentos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.