São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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+ cultura

O designer que criou a nova tipografia do Judiciário sul-africano, a partir de grafites em presídio de vítimas do apartheid, faz palestra sexta-feira em SP

O guru do design sul-africano

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

Depois de 25 anos "vendendo a alma ao diabo" (com design gráfico comercial) e tendo passeado pelas margens do mundo da arte, em seu país e no exterior, Garth Walker tem o seguinte a dizer: "A África do Sul é o último "Oeste selvagem" não descoberto do globo. Eu acredito firmemente que somos a nação mais talentosa e criativa na Terra". A afirmação (inclusive aquela acerca de vender a alma) foi feita em uma publicação de arte contemporânea sul-africana, "Artthrob".
Por ocasião de sua vinda a São Paulo, onde participa da Icograda Design Week [sexta, às 9h], conferência paralela à 7ª Bienal de Design Gráfico ADG Brasil -que se inaugura na próxima terça no Memorial da América Latina e vai até 25/5-, Garth Walker falou ao Mais! sobre seu mais recente trabalho: a criação de caracteres gráficos para o "Constitution Hill", nova sede da Corte Constitucional de seu país, que foi inaugurada em março em homenagem aos dez anos de democracia na África do Sul pós-apartheid.
Diretor de criação da companhia Orange Juice Design e editor da "I-Jusi", revista "cult" que passeia nas margens entre arte e design, Walker foi descrito pela curadora e crítica especializada em arte sul-africana Virginia MacKenny como o "internacionalmente renomado guru do design e da cultura africana".
 
O que o sr. levou em consideração quando foi convidado a criar fontes para a nova Corte Constitucional?
A encomenda para o design de uma fonte para ser usada na comunicação visual e sinalização interna da Corte e do complexo arquitetônico como um todo foi aberta. Fundamentalmente, os arquitetos deixaram a interpretação para mim. Eu fui a Johannesburgo para pesquisar todo o terreno do "Constitution Hill" [que abrigou por mais de um século o principal presídio do país, onde ficaram encarcerados de Mahatma Gandhi a Nelson Mandela] e ver o que havia lá. Como eu descobri, prisões desenvolvem pouco sua sinalização interna! Além de algum grafite nas paredes das celas e alguns símbolos pintados a mão por guardas, havia muito pouco. O local (que é enorme e quase no centro de Johannesburgo) é uma combinação de um número de prédios de carceragem e edifícios administrativos do presídio.
Passei dois dias fotografando todo os detalhes de sinal gráfico que pude encontrar. De grafite a quadros de aviso, de ícones em banheiros a números em portas de cela, gravei tudo o que vi. A fonte foi então desenhada usando as formas de letra que considerei adequadas para a "personalidade" da tipologia que queria criar. O restante do projeto de sinalização usou as características da fonte e as interpretou para os sinais necessários em todo o edifício (saídas de emergência, banheiros e assim por diante). O resultado é uma fonte totalmente única, que é uma coleção da história tipográfica das prisões reais e do próprio "Constitution Hill". Na minha apresentação em São Paulo, vou mostrar as fotografias.

A documentação da iconografia sul-africana tem um papel importante em seu processo criativo. O que o sr. encontrou de mais interessante em suas pesquisas?
Sul-africanos comuns (principalmente negros) estão fazendo um "trabalho" muito melhor como designers gráficos do que nós profissionais. Na minha opinião, o design local, feito pelos pequenos comerciantes, é fantástico. Tem charme, sagacidade e relevância para seu público. Quantas vezes o "design-Primeiro-Mundo" pode fazer tal reivindicação? Esse estilo se desenvolveu nos dez breves anos de democracia: de cartazes feitos a mão para sinalizar salões de beleza, açougues ou sapateiros, à sofisticada "linguagem visual" corrente -que incorpora esportes locais e estrelas midiáticas. Em termos de tipografia, a tendência é usar fontes de "efeitos especiais", que incorporam estilos e scripts decorativos. Nada de helvética zen!

A "Icograda Design Week" tem como tema principal "o trabalho e os meios com os quais os designers gráficos de todo o mundo encaminham, prestam serviço e interagem com ideologias e desafios sociais". O sr. poderia explicar como o design gráfico pode ser (ou é) político?
Na minha opinião, muito pouco do design gráfico global é "político", "social" ou provocador. Designers estão muito mais interessados em fama e fortuna do que em alimentar pessoas. A Europa tem uma longa tradição de design de pôster (para mudança social) que infelizmente não é o caso aqui na África do Sul (um legado dos anos de apartheid, quando quaisquer pôsteres "não-governamentais" eram ilegais). Temos baixos níveis de alfabetização e uma necessidade terrível de elevação social, portanto o design poderia desempenhar um papel significativo.
De modo geral, penso que os designers estão interessados apenas no que está ocorrendo em Londres, Paris e Nova York (o trabalho de nomes famosos), em detrimento do que podem fazer para mudar o mundo. E também não imagino ver isso mudando...

Dois números da revista "I-Jusi" foram dedicados à "nova tipografia sul-africana". Trata-se de algo consolidado ou o sr. se refere a essas improvisações populares?
Não existe nada como uma "fonte tipicamente africana". O resto do mundo parece ter uma fantasia sobre "caracteres africanos", quando na realidade a África ama o design de fontes das culturas "muito eurocêntricas". Africanos usam letras heráldicas, góticas, sombreadas e decorativas apenas. Nós não usamos a "escola suíça" de helvética sem serifa e semelhantes. Em termos simples, os africanos usam qualquer tipo de letra de que venham a gostar. Se é relevante (ou não) para o debate gráfico internacional, não é uma questão, conseqüentemente nós temos um estilo de letra que celebra a escrita decorativa (e que é muito mais bonito também!).

No ano passado, quando esteve no Brasil como curador de um segmento da 5ª edição da Bienal de Arquitetura, o arquiteto sul-africano Henning Rasmuss afirmou que Johannesburgo tinha se transformado, em muito poucos anos, de cidade da segregação racial em uma cidade de segregação social. Como foi que o regime do apartheid ecoou em sua cidade natal, Durban, nesse sentido?
Durban é, de longe, a cidade mais cosmopolita da África do Sul -temos uma grande população nativa, brancos, negros e, naturalmente, os zulus (maior tribo indígena da África do Sul). Temos menos segregação social que Johannesburgo (Durban tem muito menos dinheiro!). Eu penso que a segregação, no futuro, vai se tornar econômica (e não racial, apesar de a população de baixa renda ser predominantemente negra). Como uma cidade, Durban é muito criativa (em música, dança, arte e cultura), portanto nós capitaneamos o país no que se refere a isso.
Johannesburgo é como Nova York. Muito dinheiro, mas nenhuma alma. Durban foi historicamente menos influenciada pelo apartheid por ter sido sempre muito cosmopolita. Nos tempos coloniais, muita gente vivendo em Durban se misturava livremente com outras raças (o apartheid, claro, existia por lei etc.). É o motivo por que escolhi permanecer aqui.

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