São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EXCLUSIVO E FICTÍCIO

A desconstrução da paranóia

AUTOR DE "V." E "O ARCO-ÍRIS DA GRAVIDADE", O AMERICANO THOMAS PYNCHON DEFENDE QUE A FICÇÃO É HOJE CADA VEZ MAIS A PRÓPRIA INFORMAÇÃO

Bernardo Carvalho
Colunista da Folha

É bem mais fácil entrevistar Thomas Pynchon, 67, do que se imagina. Ainda mais depois de ele ter dublado a si mesmo em "Os Simpsons", rompendo 40 anos de silêncio (no episódio do desenho animado que foi ao ar em 25 de janeiro, nos Estados Unidos, seu personagem aparece com um saco de papel enfiado na cabeça). O mais secreto dos escritores americanos, o mais recluso (ao lado de Salinger), autor do monumental "O Arco-Íris da Gravidade" (1973), um dos romances mais importantes do século 20, além do genial "V." (1963), marco da chamada literatura pós-modernista, e dos mais recentes "Vineland" e "Mason & Dixon", concordou em conceder uma entrevista contanto que ela fosse publicada como fictícia e que eu não revelasse como a tinha conseguido.
Responderia a todas as perguntas sem o menor problema -o problema dele, como eu acabaria descobrindo, é a burrice dos entrevistadores. No fundo, não se importa em dar entrevistas contanto que o leitor chegue ao final acreditando que ele (Pynchon) nunca tenha dito nada daquilo, que tudo foi inventado pelo presumido entrevistador. E eu me comprometi a cumprir a exigência. Não vejo graça nas entrevistas fictícias de escritores famosos e reclusos, mas, se era essa a condição para ganhar as suas respostas, podia muito bem mudar de opinião. Garanti que o texto sairia numa edição do Mais!, ao lado de outras entrevistas inventadas. Ninguém iria desconfiar de que, de todas, aquela pudesse ser a única verdadeira.
Marcamos o encontro num café lúgubre da rua 21, no East Side, em Nova York, onde Pynchon nunca tinha pisado nem pretendia voltar a pisar. O escritor é conhecido por um único retrato de ginásio, de 1953, em que aparece dentuço e com topete, com cara de bobo alegre. É óbvio que não o reconheci quando entrou -e em alguns momentos ao longo da entrevista cheguei a duvidar de que fosse ele.
Por exemplo: quando perguntei, sem maiores expectativas, se conhecia algum escritor brasileiro, ele já tinha o nome de Rubem Fonseca na ponta da língua. Disse que o admirava e o conhecia pessoalmente.
Eles tinham se encontrado em Nova York. Estava falando sério. Achei que a revelação só daria ainda mais verossimilhança à inverossimilhança da minha entrevista, contribuindo para o efeito de ficção que ele queria causar no leitor. Ninguém (sobretudo nenhum dos fãs brasileiros) ia acreditar que ele conhecia Rubem Fonseca pessoalmente.
Pynchon disse ainda que acompanha com atenção a carreira de algumas bandas de rock independentes. Mas, para mim, o mais inacreditável continuava sendo a história da sua participação num episódio de "Os Simpsons".

De onde você tirou essa história?
Da internet. Há 20 anos, quando resolvi reunir e publicar os meus contos escritos entre 58 e 64 ("Slow Learner" saiu em 1984), escrevi, no prefácio, que tínhamos entrado numa era em que qualquer um passava a ter acesso a uma massa incrível de informações, com um simples toque de computador. Já não havia desculpas para os erros mais estúpidos que fazíamos no passado. É lógico que tudo tem um preço. Na época, não pensei nisso. Hoje, você publica o que quiser na internet e o mundo inteiro acredita.

As pessoas já acreditavam na televisão e nos jornais.
Temos ainda mais vontade de acreditar. Há uma quantidade incrível de informações nas quais a rigor você sabe que não pode confiar. Isso deveria gerar mais desconfiança. Mas a tentação de acreditar nelas é proporcional à oferta.

A voz nos Simpsons não é sua?
As pessoas perderam a capacidade de desconfiar. Vivemos num mundo de crentes.

Isso significa que já não há entre os leitores o germe da paranóia que garantiu o sucesso de livros como "V." e "O Arco-Íris da Gravidade" durante a Guerra Fria?
Não vejo as coisas desse jeito. É um truísmo dizer que esses romances são paranóicos. A paranóia é o mundo. Não existe literatura nem arte sem paranóia. Provavelmente, não haveria nem civilização. A paranóia é a tentativa de dar sentido ao que não tem, ao desconhecido. E não é isso o que o homem tenta fazer desde o início dos tempos?

O senhor escreveu, a propósito da ameaça atômica durante a Guerra Fria, que "todos tentamos de uma maneira ou de outra viver na lenta escalada da impotência e do terror, seja procurando pensar em outra coisa, seja perdendo de vez a cabeça. Entre as diferentes manifestações de impotência, uma solução se apresentava: fazer disso ficção". Hoje, com o terrorismo, há uma nova forma de ameaça mundial no ar. E a ficção?
A ficção é cada vez mais a própria informação. Mas, ao contrário do que você sugeriu, e só para completar, eu diria ainda que os meus romances tentaram desconstruir a paranóia. Isso me parece claro. A não ser que você não perceba nenhum humor neles.

O senhor definiu a paranóia como "o reflexo de buscar outras ordens por trás do visível"...
É só um dos aspectos, o positivo, o artístico, digamos. A busca do sentido pela desconfiança.

E o negativo?
É o inverso. A cegueira.

Como assim?
O terrorismo, por exemplo, incita a paranóia. É por isso que, mesmo perdendo por critérios tradicionais, mesmo sendo aniquilados, os terroristas da Al Qaeda já ganharam a guerra contra os "infiéis do Ocidente". Igualaram as sociedades ocidentais ao terror. Foi a desculpa que faltava aos que, de dentro do mundo ocidental, já queriam dar um fim às liberdades conquistadas pelos regimes democráticos e pela modernidade. Submeteram a sociedade laica à lógica da religião, que está sempre à espreita, pronta para germinar.

O senhor escreveu que a guerra é apenas um disfarce, um espetáculo que encobre e faz desviar os olhares dos reais movimentos da guerra. Quais são hoje os reais movimentos da guerra?
As diferenças raciais ou religiosas sempre foram desculpas para as desigualdades materiais e de poder. É o que eu penso há 40 anos. Elas apenas encobrem essas desigualdades. Eu achava que um dos efeitos mais perniciosos dos anos 50 tinha sido convencer os americanos de que aquilo ia durar para sempre. Os anos 80 e os 90 talvez tenham sido ainda piores. As pessoas acharam que iam continuar vivendo daquele jeito. Um dia acordaram para a promiscuidade entre as grandes corporações e o poder. Os americanos só desconfiam quando perdem dinheiro, quando o visível deixa de ser aquilo em que apostaram as suas economias. Mas não durou muito tempo. O terrorismo, em seguida, conseguiu fazer com que passassem a viver sob o mesmo estado de insegurança e medo a que mais de dois terços da população do planeta já estavam acostumados havia décadas. É um desafio brutal à razão. A paranóia é o berço de toda religião. "Tudo está ligado." Afinal, não é esse o bordão de ambas? Para a paranóia e para a religião, tudo tem que fazer sentido. Só que a paranóia devia ser, por princípio, a religião dos descrentes. E o terrorismo converte a paranóia em crença. Não é por acaso que integrismo e terrorismo andam de mãos dadas. São tentativas de dar um sentido ao mundo à força. Nesse ponto, religião e informática também devem ter algo em comum. Ambas pedem um mundo de crentes.

Na juventude, o senhor gostava dos surrealistas, porque combinavam elementos díspares para alcançar resultados ilógicos. Justamente o contrário da religião. Há um trabalho na atual bienal do museu Whitney cujo título é "Pictures Showing What Happens on Each Page of Thomas Pynchon's Novel "Gravity's Rainbow'" [Quadros Mostrando O Que Acontece em Cada Página do Romance de Thomas Pynchon "O Arco-Íris da Gravidade'"], de Zak Smith. O que acha da arte hoje?
Não acompanho. A mim parece que a arte está em outro lugar, que ainda não chamamos de arte. Só não me pergunte que lugar é esse.

Até agora, falamos basicamente sobre a mentira. O senhor escreveu uma vez que a verdade surge da mistura entre autobiografia e imaginação.
Não me lembro disso.

Lembrei dessa frase por causa das aparições esporádicas, ainda que virtuais, que tem feito na mídia, endossando um grupo de rock, fazendo o prefácio de uma nova edição de "1984", de George Orwell, ou dublando a si mesmo em "Os Simpsons". A reclusão combinada com essas aparições no fundo não alimenta a imaginação, o mito e o efeito de marketing sobre a sua pessoa ausente e os seus livros?
Você tinha me parecido mais inteligente. O seu tempo se esgotou.


Bernardo Carvalho é autor de "Mongólia", "Nove Noites" e "As Iniciais" (Cia. das Letras), entre outros livros.


Texto Anterior: + cultura: O guru do design sul-africano
Próximo Texto: + o que ler
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.