São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Café, leite, milagre e ditaduras

Com mais de 40 colaboradores, coleção "O Brasil Republicano" busca dar conta da história do país no período, mas centra demais o foco no eixo Rio-São Paulo

Marco Antonio Villa
especial para a Folha

Diversamente de Portugal, onde temos, somente nas últimas décadas, a publicação de várias histórias gerais do país, como as organizadas por João Medina e João Matoso, no Brasil são raras publicações do mesmo gênero. O lançamento da coleção "O Brasil Republicano", coordenada por Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado, deve ser saudado pelos professores e pesquisadores de história do Brasil. Afinal, não é sempre que uma editora apóia um projeto que envolveu mais de 40 pesquisadores, produzindo quatro grossos volumes em um total de cerca de 1.700 páginas. Em cada volume há uma bibliografia e uma filmografia relacionadas ao período pesquisado. Dada a abrangência da coleção, a obra acabará sendo de consulta obrigatória para especialistas, alunos dos cursos de história e até professores do ensino secundário, como, por sinal, sugerem os coordenadores da coleção. O primeiro volume ("O Tempo do Liberalismo Excludente") trata da República Velha, mas não inova em relação aos temas tratados na "História Geral da Civilização Brasileira", nos tomos que foram coordenados por Boris Fausto, publicados há mais de 20 anos. Analisa o coronelismo, a economia cafeeira, a organização da classe operária, o tenentismo; contudo ignora o surto da borracha, que, vale lembrar, teve um capítulo na obra coordenada por Fausto. O volume passou ao largo da história dos Estados nordestinos, dando um perfil excessivamente sulista aos ensaios. Em alguns textos, causa estranheza a bibliografia relativamente desatualizada utilizada pelos autores, além de uma abordagem conservadora e com várias imprecisões históricas. É o caso do ensaio de Jacqueline Hermann, que analisa conjuntamente os movimentos de Juazeiro, Canudos e Contestado. Se, na coleção coordenado por Fausto, Douglas Teixeira Monteiro fez um ensaio com uma abordagem semelhante, um quarto de século depois não é mais possível colocar no mesmo saco movimentos tão díspares. Porém no volume deve ser ressaltado o bom ensaio de Isabel Lustosa, e aí se trata de uma inovação, que analisa como os presidentes foram retratados nas caricaturas e pelo humor, principalmente na imprensa carioca.

Nacional-estatismo
O segundo volume ("O Tempo do Nacional-Estatismo") disseca o primeiro governo Vargas (1930-1945). Apesar do título infeliz, pois o nacional-estatismo caracteriza as décadas posteriores, é o melhor volume da coleção, até porque os autores dos ensaios são reconhecidos especialistas, como Dulce Pandolfi, Marly Vianna, Marcos Chor, Monica Pimenta Velloso, Maria Celina d'Araújo, entre outros. São bons os ensaios que tratam da Ação Integralista Brasileira, da Aliança Nacional Libertadora e das relações entre Estado, classe trabalhadora e políticas sociais.


É difícil entender porque consta o filme "Os Trapalhões na Serra Pelada" como referência para estudar o regime militar


Um destaque é o ensaio de Lúcia Lippi de Oliveira, que analisa a modernidade da era Vargas por meio do estudo da vida literária, do cinema e do rádio. O terceiro volume ("O Tempo da Experiência Democrática") trata dos anos 1945-1964, mas novamente a coleção peca por olhar o Brasil pela ótica fundamentalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. O Nordeste só aparece -e era inevitável- quando o assunto são as ligas camponesas, mas não há nem sequer uma palavra sobre o maior deslocamento populacional da história do Brasil, a migração dos paus-de-arara para o sul, principalmente após a inauguração da Rio-Bahia, em 1949. Dada a importância da cultura nesses anos, o leitor fica com um gosto amargo na boca ao ler somente um ensaio que trata da questão e, pior, que analisa o abstracionismo nas artes plásticas, o concretismo na poesia e o dodecafonismo na música, que, convenhamos, não foram as marcas mais expressivas daquele momento. Também deve ser lembrado que, dos 11 ensaios deste volume, Jorge Ferreira -um especialista reconhecido no período- escreve três, portanto um quarto do livro, o que, numa obra dessas proporções, é um exagero. O quarto e último volume ("O Tempo da Ditadura"), apesar do título, estende suas análises até o final dos anos 1990. Há bons ensaios, como os de Carlos Fico, Marcelo Ridenti, Denise Rollemberg e Marco Aurélio Santana, porém outros pecam pelos erros básicos de informação histórica ou por uma escrita indecifrável. No primeiro caso pode ser arrolado o ensaio de Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor titular de história moderna e contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado "Crise da Ditadura Militar e o Processo de Abertura Política". Entre outros exemplos, vale a pena destacar esta passagem: "Em 1968, no bojo de uma profunda crise econômica e da perda do controle das ruas e do avanço da guerrilha urbana -seqüestro do embaixador dos Estados Unidos, por exemplo-, produz-se o chamado golpe dentro do golpe, quando uma junta militar impede a posse do vice-presidente, o mineiro Pedro Aleixo, no afastamento por motivo de saúde do general Costa e Silva, e impõe ao país uma dura série de medidas policiais, consolidadas, numa sexta-feira 13 (dezembro, 1968, início de uma longa noite de terror), no chamado Ato Institucional nš 5" (pág. 257).

Cidadania e democracia
Vamos aos erros. Primeiro: em 1968 já se havia iniciado a retomada da economia, tanto que é o início do "milagre brasileiro". Segundo: o embaixador Charles Elbrick foi seqüestrado em setembro de 1969. Terceiro: a Junta Militar toma posse em agosto de 1969. Quarto: já na Presidência, a patente de Costa e Silva era a de marechal. Quinto: o AI-5 foi assinado por Costa e Silva, e não pela Junta Militar. Convenhamos: são muitos erros para tão poucas linhas.
Indo para o segundo caso, um exemplo é o ensaio escrito por Lucilia de Almeida Neves Delgado e Mauro Passos, recheado de frases de difícil compreensão, o que deixa o leitor perplexo, principalmente porque a co-autora do texto escreveu vários livros, como o que analisou o Comando Geral dos Trabalhadores, que são absolutamente claros e bem escritos. Só um exemplo: "Sob os mais variados temas e orientações, outros projetos foram folheados. Autores diferentes interagiram na construção do futuro. Outros credos compuseram a litania do incessante movimento humano dos direitos. Os olhares desse presente fizeram elo com as miradas do futuro, com novas utopias e possibilidades" (págs. 127-128).
Este volume tem muitos problemas, inclusive na filmografia. É difícil entender porque foi selecionado o filme "Os Trapalhões na Serra Pelada" como referência para estudar o regime militar.
Numa obra com tantos colaboradores, um ou outro percalços são justificáveis -evidentemente, seria melhor que não tivessem ocorrido e devem ser corrigidos numa próxima edição. Porém a coleção é relevante para semear discussões sobre duas questões centrais da história do Brasil republicano e que são destacadas pelos organizadores na introdução: a construção e consolidação da cidadania e da democracia.

Marco Antonio Villa é historiador e professor no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP). É autor de "Jango, um Perfil - 1945-1964" (ed. Globo).

O Brasil Republicano
448 págs., R$ 48,90 (vol. 1) 374 págs., R$ 45,90 (vol. 2) 434 págs., R$ 48,90 (vol. 3) 434 págs., R$ 48,90 (vol. 4) Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (orgs.). Ed. Civilização Brasileira (rua Argentina, 171, RJ, CEP 20921-380, tel. 0/ xx/ 21/ 2585-2000).



Texto Anterior: + brasil 505 d.C.: A modernização da Turquia vista daqui
Próximo Texto: Ponto de fuga: Guidom e selim
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.