São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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+ entrevistas históricas

Regras de um método filosófico

Caio Guatelli/Folha Imagem
O filósofo Bento Prado Jr., na biblioteca de sua casa, em São Carlos, no interior de São Paulo


Ricardo Musse
especial para a Folha

Depois de mais de 35 anos de produção filosófica ininterrupta, chegou a hora do reconhecimento internacional para Bento Prado Jr. Sua tese sobre Henri Bergson, obra de juventude, escrita sob pressão em dois meses e meio, logo após o golpe militar, está sendo publicada na França. É dele um dos artigos de introdução à versão inglesa das obras completas de Gilles Deleuze. No número de abril desse ano, a prestigiosa revista "Magazine Littéraire" trouxe um artigo seu, apresentando-o ao público francês como "filósofo maior do Brasil".
Parte desse sucesso se explica pelo fato de que, no mundo superespecializado de hoje, Bento Prado Jr. é um dos poucos que dominam as três vertentes principais da filosofia ocidental: a francesa, a germânica e a anglo-saxônica. O que lhe permite, por exemplo, explicar John Searle para os franceses e Gilles Deleuze para os ingleses.
O paradoxo desse êxito advém de sua recusa em cultivar um modelo de filosofia magistral, expressa em sua relação com a própria obra. Autor de inumeráveis artigos, Bento desdobra-os ao léu, resistindo à tentação de organizá-los não apenas em sistema, mas até mesmo em livro. "Alguns Ensaios" (Max Limonad, 1985), título despretensioso da primeira e única reunião desses artigos, mantém-se fora de catálogo desde o fechamento da editora.
Essa despreocupação com a obra, traço canônico da modernidade desde o livro de Émile Zola sobre os pintores impressionistas, permitiu a Bento -desobrigado da frenética busca nacional da obra-prima- construir sem alarde uma carreira intelectual sólida como poucas em sua geração.
O método e o estilo de Bento permitiram-lhe falar com propriedade, na entrevista a seguir, sobre os temas mais variados -seja a psicanálise, a educação, a filosofia no Brasil, a literatura etc. Tudo isso mediado por uma informação e um tom filosófico que dispensam o pedantismo de uma linguagem técnica. Tomando por ponto de partida a experiência cotidiana universalizada, Bento dialoga com o cidadão cultivado.


Ricardo Musse é doutor em filosofia pela USP e professor associado junto ao departamento de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


O caldo cultural de então combinava modernismo literário e esquerdismo com certa irresponsabilidade, mas com muita vitalidade; num artigo que escrevi sobre isso, disse que éramos socialistas, sim, mas com Proust e Kafka


O sr. dedica o livro "Presença e Campo Transcendental" ao seu pai, "leitor constante de Pascal, poeta, latinista e fazendeiro"...
Meu pai, um Almeida Prado nascido perto de Jaú, e minha mãe, uma Amaral de São Carlos, tiveram dez filhos, dos quais sou o último. Meu pai tornou-se fazendeiro quando ainda era muito jovem. Antes disso, quando começou a cursar politécnica, passou a frequentar os círculos literários. Era um bom moço, mas parece que havia moças no pedaço. Seus irmãos mais velhos dedaram-no para meu avô, que descobriu que ele estava entrando para a boêmia. Cassou sua politécnica e ele foi obrigado a voltar para tocar a fazenda de café. Enquanto cuidava da fazenda, estudava literatura latina. Certa ocasião, pela primeira vez, desobedeceu ao pai e comprou muita terra, mais do que devia. Com a crise do café, viu-se em situação difícil. Achando que a moratória era uma indignidade, resolveu pagar tudo. Ficou apenas com uma pequena fazenda de sete alqueires, perto de Jaú. Eu ainda não tinha nascido, mas ele já tinha uma filharada numerosa. Então fez concurso na Escola Normal de Jaú e começou uma carreira de professor de latim. Depois, em 1943, fomos todos para São Paulo, e lá ele fez letras clássicas na São Bento, onde, depois, foi convidado para ser professor.
De seus filhos, somos seis homens e quatro mulheres. Todos cresceram mais ou menos à sombra desse horizonte definido pelo meu pai. Quase todos somos professores, à exceção de um, que é advogado. O mais velho é matemático, o segundo é advogado, o terceiro, físico, outro, engenheiro, uma é helenista, a outra fez letras clássicas. De maneira geral, os homens se dedicaram mais à matemática e à física, e as mulheres, às letras. Eles pendem mais para o marxismo, e elas, mais para o catolicismo de esquerda. O clima lá em casa era, de maneira não muito pesada, de esquerda.
Quando eu era moleque, ouvia muito falar no padre Lebret, de um lado, e de dialética, do outro lado. Meu pai era um velho liberal do Partido Democrático. Quando descobriu que eu era um jovem militante do Partido Comunista, escreveu um belo soneto. Mais tarde derivou à esquerda, um pouco por influência dos filhos.

Sua vida pública, bastante precoce, começou nos círculos literários da "boêmia intelectual" dos anos 50.
Quando entrei para a Faculdade de Filosofia da USP, em 1956, já havia sido militante da Juventude Comunista, à qual fui conduzido por um primo. Cursava ainda a primeira série no colégio Roosevelt, quando assisti a uma cena de repressão na praça da Sé. A cavalaria da Polícia Militar atacou vários manifestantes e perseguiu inclusive uma mulher grávida. Ela tentou se proteger numa farmácia, que mantinha as portas fechadas. Achei que não era possível continuarmos naquela situação.
Nessa época, alimentava-me da literatura de Stálin. Depois, já no colégio Bandeirantes, tentava, como militante comunista, conquistar os colegas. Em certo momento, porém, percebi que havia alguma coisa errada com o stalinismo. Acho que foi quando mataram o Béria.
Em 1954, passei a frequentar a Biblioteca Municipal. Fiquei amigo do pessoal da esquerda anti-stalinista -Maurício Tragtenberg, Del Fiori-, mas também do pessoal de teatro -Manoel Carlos, Flávio Rangel, Fernanda Montenegro, Fernando Torres- e de inúmeros poetas. Maurício me emprestou livros de León Trótski. Entre 54 e 55, começamos a constituir uma juventude no Partido Socialista, da qual fui tesoureiro. Nosso líder e teórico era Paul Singer. Foi nessa época que conheci Roberto Schwarz. Éramos secundaristas, ele, um ano mais novo. Eu estava na Biblioteca (Municipal), ele chegou e me cumprimentou. Não o conhecia direito, mas, como começou a falar de Drummond e de Gottfried Benn, ficamos amigos imediatamente.

Nessa época, preocupação política e interesse literário andavam juntos...
Justamente. Essas coisas se misturavam de uma forma ao mesmo tempo irresponsável e rica. Havia muito diletantismo, mas também um pouco da atmosfera do anarquismo. Estávamos todos no início da profissionalização e éramos razoavelmente rebeldes. Eu ia até a Biblioteca Municipal em busca da filosofia. Tive a oportunidade de ser aluno de João Eduardo Villa-Lobos, um excelente professor. Simultaneamente à filosofia grega, descobri Drummond, lendo a "A Máquina do Mundo". Juntei então filosofia, poesia e anti-stalinismo.
Na biblioteca encontrei gente muito parecida comigo. O caldo cultural de então combinava modernismo literário e esquerdismo com certa irresponsabilidade, mas com muita vitalidade. Num artigo que escrevi sobre isso, disse que éramos socialistas, sim, mas com Proust e Kafka. O existencialismo tornou-se o melhor instrumento para substituir o marxismo doutrinário. Fornecia um esquerdismo ideológico mais livre, mais próximo da realidade.

Quando ingressou na universidade, ao contrário da prática habitual, o sr. entrou direto no curso de filosofia. Como foi sua graduação?
No período em que fiz o curso, houve um lapso de professores estrangeiros. Claude Lefort, que estava substituindo Gilles-Gaston Granger, tinha acabado de voltar para a França, e seu sucessor, Gérard Lebrun, só chegou depois que me formei, em 1960. Granger passou algumas vezes, em duas ou três visitas de um mês. Esse foi o único contato que tive com professores estrangeiros. O corpo docente local não ultrapassava cinco ou seis professores. Lívio Teixeira e Cruz Costa, da primeira geração, Gilda de Mello e Souza, da outra, e depois José Arthur Giannotti e Ruy Fausto, que começavam a dar aulas.

Nesse período, participou do famoso seminário de estudos sobre "O Capital".
O seminário reuniu professores e alunos. Os alunos éramos eu, Michael Löwy, Roberto Schwarz e Francisco Weffort. Os professores eram José Arthur Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Ruth e Fernando Henrique Cardoso. Participei desde o começo, em meados de 1958. Foi quando o Giannotti, voltando da França, propôs o seminário. Devo ter participado do seminário no máximo durante um ano. Já estava casado, tinha de trabalhar de manhã na Difusão Européia do Livro e, de noite, dava aula num ginásio estadual em Vila Carrão. Meu namoro com o marxismo sempre foi à distância.

O que achou do texto sobre o seminário feito por Roberto Schwarz em texto publicado no "Mais!" (08/10/95)?
Um ponto incontestável na construção de Schwarz é que uma grande e importante quantidade de obras na área de ciências humanas saiu desse seminário.
Tenho a idéia de escrever um ensaio tentando recuperar a atmosfera que pairava sobre ele. Tentarei retomar um artigo que se perdeu do Lebrun acerca do prefácio da tese de Fernando Henrique, que retratava bem a discussão teórica do grupo. Nesse texto, Lebrun, falando de Jean-Paul Sartre e de Lévi-Strauss, fez uma espécie de síntese, provavelmente crítica, mas com um interesse aceso pela questão.

A leitura que fizeram de "O Capital" foi muito marcada pelo debate intelectual da época?
Com certeza. Existiam aqueles que entendiam de economia e os que faziam filosofia: de um lado, Paul Singer, Fernando Novais e Fernando Henrique; de outro, eu e o Giannotti, que tentava, inicialmente, levar a discussão para o campo fenomenológico e, posteriormente, para o debate estruturalista. Quando participei do seminário, era sartriano. Contra Giannotti, julgava que era preciso fornecer um fundamento antropológico ao marxismo, via "Crítica da Razão Dialética", vinculando Ludwig Feuerbach e o jovem Marx.

Como começou sua carreira de professor?
Eu me formei em 1959. Naquela época, as contratações eram muito complicadas, tão difíceis quanto hoje. Dava aulas em Rio Claro e também na USP, mas, aqui, como assistente voluntário (um professor contratado sem salário). Em meados de 1961, fui para a França, Rennes e depois Paris. Ganhei uma pequena bolsa do governo francês. O professor Lívio Teixeira me transferiu parte de seu salário. Os pais da Lúcia me deram outra ajuda e, por intermédio de Fernando Henrique Cardoso, consegui US$ 50 do Itamaraty. Lá estudei com Victor Goldschmidt e com Granger. Quando voltei, em meados de 63, minha tese sobre Henri Bergson já estava armada.

Por que Bergson?
Meu projeto inicial era estudar Feuerbach. Depois achei que, como andava muito sartriano, iria projetar isso em Feuerbach. Sartre dizia que era preciso pensar contra si mesmo. Propunha medir o coeficiente de verdade de uma idéia pela repugnância que ela causava. Como o anti-sartriano era Bergson, fui estudá-lo. Só mais tarde descobri as identidades entre um e outro.

Sua tese sobre Bergson ("Presença e Campo Transcendental", Edusp) foi redigida em 1964, nos meses seguintes ao golpe militar; antes, portanto, da publicação do livro de Gilles Deleuze, "Le Bergsonisme" (P.U.F., 1966).
Se o livro de Deleuze tivesse sido publicado antes, provavelmente não teria escrito o meu. São muito parecidos. Talvez tenha me inspirado em um artigo dele sobre o assunto, mas julgo que o mais decisivo foi um curso, até hoje inédito, de Goldschmidt sobre Bergson. Aliás, passei o texto desse curso para os franceses, que vão publicá-lo. É um curso muito interessante, com muitos comentários sobre o primeiro capítulo de "Matéria e Memória", um livro central em minha tese.

Não há também certa influência da obra tardia de Merleau-Ponty?
Também. Merleau-Ponty talvez até seja mais importante, porque reinterpreta Bergson de uma maneira menos polêmica do que a tradição anterior. Merleau-Ponty e Sartre se afastam de Bergson ao atribuírem a ele alguma espécie de naturalismo. Em meu livro, observo que a idéia de natureza em Bergson tem uma dimensão por assim dizer transcendental. Aliás, o último Merleau-Ponty, quando trata da idéia de natureza, "bergsoniza-se".
Escrevi a tese em dois meses e meio. Fui obrigado a escrevê-la rapidamente porque, devido ao golpe, precisava fazer logo a livre-docência, pois o departamento de filosofia contava com poucos professores titulados. Nessa época, Lefort havia enviado a Lívio Teixeira "O Visível e o Invisível", um livro póstumo do Merleau-Ponty. Sua leitura me deixou absolutamente deslumbrado.

Sua tese desenvolve uma interpretação de Bergson muito diferente da dos manuais de história da filosofia. Para tanto, recorre ao conceito de "campo transcendental". Essa noção também é decisiva em "As Palavras e as Coisas", de Michel Foucault. Já conhecia os textos dele?
Não. Só vim a conhecê-lo em 1965, quando eu já tinha escrito a tese. Tanto que, depois, cometi uma maldade com Lebrun. Discutimos muito na defesa de minha tese, porque ele achava que a idéia de "vida" em Bergson era puramente empírica. Um ano depois, estávamos num boteco com Foucault. Ele ainda não tinha publicado "As Palavras e as Coisas", mas estava aqui no Brasil dando o curso sobre os mistos empíricos e transcendentais, "vida", "trabalho" e "linguagem". Estávamos os três na mesa e eu lhe perguntei: "O senhor acha que a noção de "vida" em Bergson tem um papel transcendental?". Ele me respondeu: "Mas é óbvio que tem".


O tecnicismo é mortal para a filosofia; o coeficiente de tecnicidade da filosofia é inversamente proporcional ao coeficiente de significação e de interesse; aquilo que configura hoje o seu "mainstream", que é de inspiração analítica, corresponde a um esvaziamento total da filosofia


A maioria das histórias da filosofia francesa no século 20 tende a atribuir um lugar secundário a Bergson...
O significativo aí é a postura de Sartre e de Merleau-Ponty. Meu artigo aqui no Mais! (29/8/99), republicado depois na "Magazine Littéraire", mostra que, para Sartre e Merleau-Ponty, o que importa são a fenomenologia e a dialética. Hegel, por meio de Alexandre Kojève, e fenomenologia, pela via do Jean Wahl. No fundo, eles descobriram e optaram pela filosofia alemã, jogando-a contra a tradição espiritualista e epistemológica francesa. Mas o que descobri é que foram preparados para incorporar a fenomenologia e Hegel devido à familiaridade deles com o pensamento de Bergson. Por isso Marilena Chaui escreveu, na "Apresentação" de meu livro, que ele contribuiu para esclarecer as metamorfoses da filosofia francesa.

Embora sua tese esteja alicerçada em Victor Goldschmidt e Maurice Merleau-Ponty, seu resultado está bem próximo do pensamento da nova geração da filosofia francesa, em particular de Deleuze e Foucault...
Sim. Afora o renovado interesse que a obra de Bergson tem despertado, minha tese está sendo publicada agora na França também como resgate de um momento da filosofia francesa dos anos 60.

Mas, ao mesmo tempo, trata-se também de uma certidão de nascimento da implantação da filosofia universitária no Brasil, via departamento de filosofia da USP. Como o sr. julga as recentes versões da história do departamento?
Concordo com a avaliação de Oswaldo Porchat, embora suas observações tenham sido deformadas de maneira odiosa. Talvez ele peque um pouco por uma profissão de fé analítica. Ele pensa mais ou menos como Paulo Arantes. Ambos acreditam que a tarefa da filosofia é descrever o mundo presente. Como não faço uma distinção fundamental entre história da filosofia e filosofia, não vejo como descrever a experiência contemporânea do mundo sem um pouco de história da filosofia.
Paulo Arantes, por sua vez, foi acusado tanto de ter feito um texto crítico ao departamento, como também de supervalorizá-lo. Seu livro não é uma coisa nem outra. Pelo contrário, mostra como, de certa maneira, a estratégia pedagógica inaugurada pelos franceses funcionou. Mas chega à conclusão de que esse acerto não é suficiente, que a filosofia deveria ir mais longe.

Há também quem defenda que o departamento deva tomar a direção da especialização, o que desemboca num certo tecnicismo...
O tecnicismo é mortal para a filosofia. O coeficiente de tecnicidade da filosofia é inversamente proporcional ao coeficiente de significação e de interesse. Com certeza, a filosofia implica certa dose de tecnicidade. Mas aquilo que configura hoje o seu "mainstream", que é de inspiração analítica, corresponde a um esvaziamento total da filosofia.

Marilena Chaui salienta que o método do departamento não se limita à análise estrutural de textos, mas incorpora também uma interpretação da cultura, pela associação da história da filosofia com a história das ciências, das artes etc., sem deixar de lado a matriz social e política da história.
Estou rigorosamente de acordo com ela. Aliás, a oposição entre ela e Paulo Arantes não existe propriamente. A não ser pelo fato de o Paulo ter a mania de dizer que não faz filosofia. Mas o que é seu livro sobre o abc da miséria alemã ("O Ressentimento da Dialética", Paz e Terra) senão uma tentativa de iluminar o presente à luz da história cultural e social (que são indissociáveis). Os modos de filosofar de Paulo e Marilena talvez sejam menos distantes do que ambos pensam. Sei que têm estilos e perspectivas diferentes, mas sou sensível a algo que há de comum entre os dois e que talvez não seja tão visível nem para um nem para outro: certa concepção realista da filosofia, prática e humana.
O que não está em desacordo com a vertente clássica da filosofia, não sendo necessariamente índice de "antifilosofia". Tenho a impressão de que tanto Edmund Husserl quanto Ludwig Wittgenstein dizem que a filosofia é uma enorme ginástica intelectual que tem por único objetivo tornar visível aquilo que está na cara. Quer dizer, não constitui exatamente uma espécie de superdiscurso e de super-saber, mas procura tornar nossa experiência um pouco mais transparente.

Como avalia a situação da filosofia hoje no Brasil?
A filosofia em nosso país cresceu muito nos últimos 30, 40 anos. No meu tempo de estudante não havia textos traduzidos para o português. Hoje em dia há uma quantidade enorme de traduções, publicam-se muitas teses, há enfim um mercado e um público leitor de textos filosóficos.
O padrão médio acadêmico melhorou muito. O problema é o peso institucional da administração, que ficou muito grande. A avaliação tornou-se uma peça essencial, mesmo porque o financiamento das atividades de pós-graduação exige que haja avaliação. Mas avaliar é sempre um ato problemático.
Os filósofos saíram dos limites da universidade e passaram a intervir no debate público com muito mais presença do que no passado. Nos anos 70, não havia nada disso, só economistas e sociólogos participavam da discussão política. Hoje os filósofos estão presentes aqui muito mais do que nos Estados Unidos, onde predomina uma concepção puramente técnica da filosofia. Aqui, mesmo Giannotti, que é um adepto da concepção técnica da filosofia, tem uma presença forte na vida pública.

Em "Um Departamento Francês de Ultramar", Paulo Arantes define seu pensamento nos anos 60 como uma tentativa de constituir, seguindo a matriz foucaultiana, uma "filosofia da literatura"...
Não creio que eu estivesse tão próximo de Foucault como ele descreve. No final do meu comentário ao livro de Schwarz ("A Sereia e o Desconfiado"), quando falava da essência da literatura, me referia ao Foucault, mas, com certeza, estava pensando mais em Drummond. Termino o texto meio parnasianamente, dizendo que a literatura é apenas um arabesco no ar, mas que pesa, no entanto, e que ilumina.
Queria chamar a atenção para a dimensão cognitiva da literatura. Lembro-me de que Foucault, em uma aula inaugural no Collège de France, caracterizando a linguagem como atividade fechada sobre si mesma, desprovida de alcance semântico, disse que a sofística corresponderia àquilo que chamamos hoje de literatura. Isso me pareceu uma insensatez total, pois não me parece que haja algo em comum entre Mallarmé e Protágoras. Sempre me pareceu claro que a literatura é uma forma de conhecimento.


Em maio de 68, comprei o jornal e fui ao Chic Chá; levei um susto quando li na primeira página que estavam fazendo barricadas em Paris; de repente, acendem uma luz muito forte, quase violenta; assustado, perguntei o que estava acontecendo; responderam-me que estavam filmando "O Bandido da Luz Vermelha"


Aliás, escrevendo sobre Antonio Candido num prefácio, disse que alguns falam de um sociologismo nesse autor. Trata-se de um equívoco. Não apenas porque Antonio Candido fala da autonomia relativa da literatura. Trata-se da própria utilização da literatura como forma de conhecimento da realidade social. Há uma ciência que vincula a literatura a uma forma social, que toma a forma literária com um efeito da forma social. Na literatura, ao contrário, usam-se os elementos literários para a compreensão da sociedade. Ela dá a compreender aquilo que o cientista social não compreenderia sozinho.

Sua crítica ao livro do Roberto Schwarz derivaria então do fato de ele não dar o devido valor à dimensão artística do texto literário?
Hoje eu não escreveria mais a mesma coisa sobre esse livro. Não quero reassinar o texto. Quero apenas mostrar que aquele texto sobre Schwarz, com todos os defeitos que tem, não pode ser acusado de participar de algum tipo de absolutismo literário.

O que estava em jogo era a interpretação do modernismo, afinal, sua análise de Guimarães Rosa também se distancia da leitura de Roberto Schwarz.
Sim, seguramente. Mas seria bom voltar um pouco atrás. O contexto do artigo contra Roberto Schwarz é o da "Teoria e Prática", uma revista parecida com o que é hoje a "praga". Tratava-se de uma revista essencialmente teórica, mas engajada. Como publicação de intervenção no debate cultural, tinha também o propósito de trazer a público nossas discussões. Ruy Fausto incentivou-me a escrever um texto crítico sobre o livro do Roberto, que acabara de sair. Na verdade, o que visava era a uma certa proximidade dos textos do Roberto -dos quais sempre gostei muito- com certo modelo lukacsiano. Esse modelo se funda na contraposição do bom realismo do século 19, contraposto à literatura de vanguarda pensada como desvio, embora seja importante ressaltar que Lukács nunca fez apologia do realismo socialista. Meu artigo sobre Schwarz visava mais a esse vínculo.
O artigo sobre Guimarães Rosa continua o debate com Schwarz, que tinha escrito um texto sobre esse autor. Depois dessas coisas escritas, conversei muito com ele e repito: não reescreveria esses textos. Só para ter uma idéia do que se discutia, ele certa vez me fez uma pergunta que não soube responder: "Por que uma situação exótica como a do jagunços pode ser paradigmática para a nossa autocompreensão?". Talvez seja justamente para que haja a iluminação paradigmática que a diferença requer. Eu estava deslumbrado com a linguagem de Guimarães Rosa.

A época em que esses artigos foram escritos foi um tempo de efervescência das vanguardas no Brasil.
É verdade. Creio que nos textos de Roberto Schwarz transparece certa desconfiança em relação às vanguardas. Eu acompanhava a discussão em torno do cinema novo, do tropicalismo etc. um pouco à distância. Mas vi o cinema novo e fiquei muito entusiasmado. "Os Fuzis", do Ruy Guerra, por exemplo, é uma obra-prima. Para mim, como para Schwarz, foi uma revelação. Schwarz descreveu, certa feita, seu estilo como uma mistura de parnasianismo, Drummond classicizante e fenomenologia. Não é uma descrição incorreta. Meu primeiro contato com poesia foi com meu pai, que era um poeta parnasiano. As primeiras coisas que escrevi eram modernas, no sentido do primeiro Drummond, do poema-piada e do poema engajado. Descobri Drummond na maturidade, junto com Sartre, com a fenomenologia. Em 1954, eu tinha acabado de comprar "Claro Enigma", estava indo para a escola, quando bati os olhos em "A Máquina do Mundo". Após a leitura, pensei: a língua portuguesa permite essa altitude de poesia e, nesse momento, a poesia se aproxima da filosofia.

Passado o momento da poesia-piada e da poesia engajada, chega a vez de uma poesia mais filosófica. O trabalho com a linguagem torna-se mais apurado, como no caso de Guimarães Rosa. Isso não deixa de ser uma avaliação do modernismo brasileiro...
Quando tentava descrever minha pequena diferença com Schwarz, o que eu procurava ressaltar é que ela talvez seja mais uma diferença de gosto do que teórica. As teorizações estão, no fundo, determinadas por um juízo de gosto. Há, de certa forma, uma espécie de chão pré-teórico, difícil de teorizar.

Esses textos foram publicados em 1968. Como acompanhou o Maio francês?
Em maio de 68, um dia pela manhã, comprei o jornal e fui até o Chic Chá. Levei um susto quando li na primeira página que estavam fazendo barricadas em Paris. Barricadas em Paris? Seria a Comuna rediviva? Como é possível? De repente, acendem uma luz muito forte, quase violenta. Assustado, perguntei o que estava acontecendo. Responderam-me que estavam filmando "O Bandido da Luz Vermelha". Tratava-se de uma cena em que o Luz jogava uma bomba no Chic Chá, bem no dia seguinte ao início do Maio francês. Rogério Sganzerla fez um filme de inspiração 68. O refrão dizia: "Quem tem sapato não sobra". Pena que na montagem final não tenham incluído, como disseram que fariam, a cena do prof. Bento Prado lendo as notícias sobre Maio de 68.

E aqui no Brasil?
Na USP a coisa explodiu em junho com o movimento pela "universidade crítica". Entre seus líderes estava uma aluna nossa, a Helena Hirata, embora, em geral, os alunos de filosofia fossem muito conservadores. O movimento teve consequências em nossa vida cotidiana porque pôs em crise o chamado ensino magistral, que, na universidade, estava projetado na relação professor/aluno. Organizamos então um projeto de administração paritária da universidade, com a gestão mantida por um quórum de 50% de professores e 50% de alunos. Em julho, muitos departamentos, em graus diferentes, já estavam aceitando essa forma de administração. Em nosso departamento, a paritária chegou a ser organizada formalmente.
Tornei-me chefe de um departamento paritário. De fato havia um entendimento, um "gentlemen's agreement", em que as decisões paritárias eram aceitas pelo departamento formal. Funcionou bem. Como a representação dos alunos não era monolítica, não houve nenhum gesto da paritária que tivesse sido recusado pelo departamento. Isso na nossa perspectiva. Entre os alunos mais fanáticos, corria a seguinte frase: "Esse departamento não tem salvação, todos são iguaizinhos ao Porchat e ao Giannotti".
Nossos cursos na universidade tornaram-se, muitas vezes, verdadeiras assembléias. Havia muita inocência política, a ilusão de que se podia fazer frente ao aparato de Estado. No projeto de construir uma "universidade crítica", julgava-se que a universidade era um campo importante da luta política imediata, cujo limite era dado pelo enfrentamento militar do Estado. Hoje é muito fácil identificar, retrospectivamente, o equívoco. Mas na ocasião não se via muita saída. Na época não era objetivamente possível identificar nossa cegueira.

E em 1969 o sr. volta a Paris...
Fui cassado em março de 1969. Imediatamente fui para a França, bastante aliviado, pois a situação estava insustentável. Embora eu não tivesse nenhuma ligação formal com os movimentos políticos da época, havia muito risco, pois havia abrigado alguns militantes em minha casa.
Na época, o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) estava sendo formado. Fernando Henrique Cardoso arrumou dinheiro com a Ford Foundation para financiar os excluídos da universidade e me convidou. Mas, como eu não tinha a menor afinidade com pesquisa empírica, julguei que não caberia no figurino do Cebrap. Por sorte, na ocasião, o adido cultural da França convidou-me para visitá-lo. Durante a conversa, perguntou-me o que eu queria fazer, se achava bom que Sartre e Lévi-Strauss fizessem um manifesto. Respondi que preferia que os franceses me dessem uma bolsa. Fui, então, com pelo menos um ano de garantia. Depois prestei concurso e passei um bom período lá como pesquisador do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris). Poderia ter ficado indefinidamente, não fosse a saudade do país.

Como era a vida no exílio?
No início, a situação aqui era tão horrível que eu pensava em não voltar nunca mais. Mesmo porque praticamente não sentia falta dos meus amigos. Quase todos, por força ou por escolha, estavam por lá. Roberto Schwarz, Paulo e Otília Arantes, Célia e José Francisco, Ruy Fausto, Helena Hirata, Gilbert Mathias e outros.
Durante os dois primeiros anos, assisti aos cursos do Michel Foucault e do Gilles Deleuze. Mas, depois de dois anos, passei a morar a 70 km de Paris. Meu contato com a "intelligentsia" francesa foi muito pequeno. Como sou muito tímido, assistia às aulas do Deleuze, mas nunca o procurei pessoalmente.

Sua pesquisa para o CNRS foi sobre Jean-Jacques Rousseau...
O trabalho trata da teoria da linguagem, da teoria do romance e da teoria do teatro em Rousseau. Ele está sendo traduzido, pois foi escrito em francês, e vai ser publicado em breve pela Discurso Editorial. Consta de uma longa introdução e de um capítulo sobre a filosofia da linguagem em Rousseau (já publicada como "Apresentação" da tradução de "Ensaio sobre a Origem das Línguas", Ed. Unicamp, 1998). Haverá uma primeira parte, com cinco capítulos, e uma segunda parte sobre a teoria do teatro (parcialmente publicada na revista "Novos Estudos", do Cebrap).


Há uma zona de conflito e de ambiguidade entre filosofia e psicanálise, como se a primeira tivesse dificuldade em assimilar a segunda e vice-versa; como nunca fui analista nem analisado, não tenho a menor idéia do benefício que a psicanálise possa ter nesse comércio com a filosofia


Seu resgate da teoria da linguagem em Rousseau aproxima-se muito das discussões contemporâneas sobre teoria social, em particular da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas.
Sim. Inclusive, em certa ocasião, cheguei a dizer que, quando Habermas marca uma pequena distância em relação a Marx, fazendo a distinção entre uso comunicativo e uso técnico da linguagem, ele está retomando Rousseau. A discussão sobre a dominação técnica do mundo e a relação comunicativa entre os sujeitos, tratada contemporaneamente por Habermas, é especialmente rousseauísta, embora o nome do Rousseau não seja evocado. Se Habermas leu ou não esse autor, pouco importa. O fato é que Rousseau foi incorporado pela filosofia alemã, pelos autores do "Sturm und Drang".

Logo após seu retorno ao Brasil, o sr. passa a editar a revista "Almanaque".
Cogitamos fazer uma revista que reunisse as ciências humanas, a filosofia, a literatura etc. e que fosse de oposição. É verdade que de uma oposição discreta. Em todo caso, tratava-se mais de uma revista de cultura do que de intervenção política, diria que era uma revista de cultura crítica. Nessa época mudei para São Carlos e me desinteressei um pouco da revista, que havia chegado ao 17º número.

Por que São Carlos?
Em 1978, exatamente um ano antes de ser anistiado, fui convidado para dar aulas na Universidade Federal de São Carlos. Respondi que não poderia porque estava cassado. Descobri então que já tinham acertado tudo. O regime estava enfraquecendo e a reitoria tinha entrado em contato com o Ministério da Educação, que deu o sinal verde. Pensei que não podia deixar escapar essa oportunidade, afinal, seria o primeiro cassado a ser contratado por uma universidade pública. Aceitei, em tempo parcial. Depois, quis passar para tempo integral. Entre morar em São Carlos e em São Paulo, a diferença é brutal.

Nessa época, o sr. se dedica sobretudo a estudar as relações entre filosofia e psicologia. Como se deu essa passagem?
Não foi, como pode parecer, uma mudança radical. Já me interessava por psicanálise desde os anos 60, por intermédio da leitura de Sartre e da psicanálise existencial. Além disso, quando fiz filosofia, não havia ainda o curso de psicologia. Ao retornar da França, recebi um convite para trabalhar no Sedes Sapientiae, na área de filosofia da psicanálise. Quando comecei a dar aulas na Pontifícia Universidade Católica, meu primeiro curso foi sobre um texto inédito de Freud, "Projeto para uma Psicologia". Quando vim para São Carlos, no fim dos anos 70, o espaço da filosofia era muito pequeno. Levando em conta que no nosso centro havia um grupo de psicólogos de bom nível, de formação behaviorista, organizei seminários sobre o livro de Gilbert Ryle, "The Concept of Mind" (O Conceito da Mente). Daí começamos a entrar na filosofia analítica. Meus interesses em psicologia, em filosofia e as contingências me levaram à releitura de Wittgenstein e da psicanálise.

Seus ensaios sobre as interpretações de Freud combatem recorrentemente as leituras idealistas, insistindo na tese de um Freud materialista...
Meu ponto de partida é a relação da filosofia com a psicanálise. Há uma zona de conflito e de ambiguidade entre as duas, como se a filosofia tivesse dificuldade em assimilar a psicanálise e vice-versa. Como nunca fui analista nem analisado, não tenho a menor idéia do benefício que a psicanálise possa ter nesse comércio com a filosofia. É claro que o psicanalista, estudando com os olhos do filósofo, entende Freud melhor. Mas não sei se entender Freud melhor é necessário para a prática psicanalítica.
Já ao filósofo interessa compreender a psicanálise, já que me parece que a filosofia tende a só assimilá-la amputando algumas de suas dimensões essenciais, o que é certamente uma perda teórica.

O sr. critica o anseio dos autores do marxismo ocidental em fornecer uma fundamentação filosófica para a obra de Marx. Os filósofos estariam cometendo o mesmo erro com Freud?
Sim, embora dizer isso não signifique muito, já que se permanece num discurso negativo.

O próprio ato de fazer esse mapeamento não indicaria uma preocupação em delimitar o espaço de um discurso positivo?
Seguramente. É o que pretendo fazer em meu próximo livro, voltado para a compreensão das formas da subjetividade.
Na primeira parte procurarei verificar como se institui o sujeito e sua subjetividade, por meio do exame dos limites entre fenomenologia e filosofia analítica.
Na segunda parte, pretendo examinar as formas literárias de expressão da subjetividade, pensando-as como indicadoras das condições éticas da subjetividade. Trata-se de estudar as formas romanescas como circunscrição de um horizonte ético para a subjetividade, associando romance, ética e política. A terceira parte tratará da expressão metafísica da subjetividade por meio da poesia e da filosofia da poesia. Entram Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Francis Ponge, Rainer Maria Rilke etc.

E seus textos e cursos sobre Wittgenstein?
Não pretendo escrever propriamente sobre ele. Não posso concorrer com os bons wittgensteinianos que circulam por aí. Mas me parece que se trata de um autor indispensável para compreender as questões contemporâneas. O que me interessa é o abismo que separa a circunscrição da subjetividade na tradição analítica e na fenomenológica.
Como Wittgenstein é o melhor representante da filosofia analítica, constitui um ponto de referência que não pode ser abandonado, sobretudo porque, de algum modo, sua iniciativa chega a tocar nos limites da própria fenomenologia.
No livro que pretendo escrever sobre a subjetividade, talvez comente as maneiras concorrentes pelas quais o pensamento contemporâneo refaz a dedução transcendental kantiana. Há o modelo heideggeriano, que destaca o tempo. Em "Ser e Tempo", Heidegger como que reescreve a "Crítica da Razão Pura", em uma linguagem fenomenológica. Do lado da filosofia analítica, há o livro de P.F. Strawson, "The Bounds of Sense". Três maneiras de reconstruir Kant: Wittgenstein, Strawson e Heidegger.

O sr. não concorda muito com a interpretação de Wittgenstein feita por José Arthur Giannotti...
Já me estendi sobre isso em um texto longo, publicado em "A Crise da Razão" (Funarte/Cia. das Letras). Embora Giannotti tenha razão ao criticar as interpretações relativistas, comete o pecado inverso, isto é, inclui Wittgenstein numa perspectiva classicamente universalista. Penso que as duas perspectivas não dão conta de Wittgenstein. Há uma frase do Luiz Henrique Lopes dos Santos que considero uma boa definição: "Perspectivismo sem relativismo". Depois de escrever o artigo, disse ao Giannotti que, se tivesse lido com mais cuidado o apêndice do livro dele, que trata da idéia kantiana de reflexão, talvez tivesse nuançado minha crítica.

Wittgenstein parece ter também pontos de contato com Bergson, principalmente no "Tractatus Logico-Philosophicus", que apresenta uma preocupação ética explícita.
Até mais que isso. Há trabalhos sobre o "Tratactus" que mostram muitas superposições. Mas existem também pelo menos duas referências manuscritas em que Wittgenstein identifica suas posições com as de Bergson. O mesmo acontece com Husserl, que, certa feita, disse a um aluno que reconhecia sua própria filosofia na filosofia de Bergson. Os heróis das duas tradições rivais, Wittgenstein, da vertente analítica, e Husserl, da fenomenológica, remetem explicitamente a Bergson.
Pretendo escrever um ensaio que teria por título "Imagens Bergsonianas e Imagens Wittgensteinianas". Bergson utiliza metáforas e imagens de forma racionalista e crítica. Joga umas contra as outras para efetuar uma espécie de catarse do entendimento, que é muito parecida com a análise conceptual. Julgo que Bergson e Wittgenstein têm a mesma estratégia no que tange ao uso das metáforas e das imagens, a mesma concepção acerca dos limites da filosofia e da necessidade de dissolução dos falsos problemas filosóficos.

Mais recentemente o sr. voltou a fazer crítica literária e até mesmo a escrever poemas...
Sempre escrevi poemas, mas de forma bissexta, um a cada dois anos. Sei que sou amador. Mas mesmo assim os publico com a maior tranquilidade.
Crítica de poesia faço muito casualmente. O professor universitário é solicitado institucionalmente a produzir dentro de sua área. A atividade de escrever sobre outros assuntos exige um estímulo externo. Voltei a escrever mais agora, nessa contribuição mensal para a Folha (na seção "Brasil 501 d.C", do Mais!). Nesse livro que pretendo escrever, a relação entre literatura e filosofia é diferente, pois suprime a distinção entre elas, já que a literatura se torna objeto e instrumento da análise filosófica.

Por que o sr. publica tão pouco, mantendo livros e textos guardados na gaveta durante anos?
Desconfio muito de meus textos. Acho bom dar um tempo para descobrir se eles resistem. Só assim não corro o risco de publicar um texto e me arrepender seis meses depois. Há pouco me propuseram publicar meu livro sobre Bergson na França. Aceitei, porque, se depois de 36 anos ele é ainda considerado publicável, ficou em pé. Hesitei durante dez anos em editá-lo aqui. Pretendia fazer isso imediatamente após sua redação. Estava indo entregá-lo à Difel quando encontrei o Roberto Schwarz, que me perguntou se eu tinha feito uma revisão cuidadosa. Desisti, pensando em fazer a tal revisão -revisão que não foi feita jamais. A demora para publicar meus textos tem um pouco a ver com preguiça e procrastinação. Gosto de deixar para amanhã.



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