São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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Estudo tenta apontar falhas e acertos históricos em dramas como "Ricardo 3º"
Nem tudo é história

R.N. Swanson
especial para "The NYT Book Review"

Ao evocar imagens da história inglesa do final da Idade Média, Shakespeare é responsável por muitas coisas. Ilhas sob a égide de um cetro, Crispin Crispian, um reino trocado por um cavalo, tudo isso já se tornou parte da bagagem cultural mundial. Representações memoráveis -especialmente no cinema, talvez- inevitavelmente afetam nossa percepção. Mas, entre Henriques e Ricardos, conspirações e a poesia, até que ponto podemos nos fiar na história conforme ela é relatada por Shakespeare? John Julius Norwich procura avaliar a confiabilidade histórica das dramatizações shakespearianas dos reinados dos últimos monarcas da dinastia dos Plantagenetas. "Shakespeare's Kings" (Os Reis de Shakespeare) é "uma tentativa de analisar as peças, cena por cena, à luz da história, para determinar onde a luz brilha livre e desanuviada, onde ela é sombreada ou refratada e onde é bloqueada por completo".

Preencher as brechas
A recente integração de "Eduardo 3º" ao cânone estende o panorama de modo a cobrir a maior parte dos século 14 e 15, desde o início da Guerra dos Cem Anos, em 1337, até a derrota de Ricardo 3º na batalha de Bosworth, em 1485. A abordagem adotada significa, em essência, que se estabelece uma narrativa histórica -preenchendo as brechas na série de peças (especialmente os anos finais de Eduardo 3º, o reinado de Ricardo 2º até 1398 e os reinados de Eduardo 4º e Eduardo 5º), ordenando os personagens confusos ou fundidos em um só e dispondo os fatos em ordem cronológica.
Narrar os acontecimentos é fácil quando se trata dos anos em branco, como em boa parte do século 14. Quando ocorrem sobreposições, Norwich relata a história e então testa as tramas das peças. Capítulos de narrativa histórica se alternam com outros que comentam as peças. As limitações de espaço impedem que sejam examinadas todas as cenas: a cena das rosas, em "Henrique 6º", é incluída porque dá o clima das festas na Guerra das Duas Rosas. Por serem irrelevantes à história política, as cenas falstaffianas em "Henrique 4º" são virtualmente ignoradas, para não dizer totalmente colocadas de lado.
A história apresentada é bastante simples. O objetivo é corrigir os erros históricos nas peças de Shakespeare, e não fornecer uma análise acadêmica. Essa é uma história centrada nos reis e magnatas, para a qual os acontecimentos externos à corte real, às residências dos nobres ou aos locais de concentração dos exércitos são, em grande medida, irrelevantes. Alguns deles não podem deixar de impor sua presença -é o caso da Revolta Camponesa, de 1381, ou da Rebelião de Cade, em 1450-, mas as tendências menos dramáticas subjacentes que formam a base das discussões históricas de hoje ficam de fora.
A chave é dada pelos personagens, como é inevitavelmente o caso dos personagens dramáticos. Temos os mocinhos e os bandidos, e não há relutância alguma em fazer julgamentos morais a seu respeito. Ricardo 2º merece um tapa na mão, Henrique 5º é um herói falho, Henrique 6º, um desastre rematado. Para concluir, Ricardo 3º faz por merecer sua fama de mau. Nenhuma concessão é feita às idéias recentes segundo as quais ele teria sido um grande rei, apesar de não ter sido uma boa pessoa.
Lorde Norwich empreende sua tarefa com a verve que lhe é característica. Seu estilo é simples e proporciona uma leitura agradável, embora ocasionalmente bombástica. A necessidade de condensar e manter o fluxo às vezes resulta em tropeços menores, mas capazes de assustar a quem tiver conhecimentos mais detalhados sobre o período em questão.
Mas tropeços não são sinônimos de erros. As complexidades e sutilezas legais das reivindicações inglesas e francesas e dos relacionamentos reais sob os reinados de Henrique 5º e Henrique 6º são fatigantes, para dizer o mínimo, numa guerra que foi travada não propriamente entre países, mas entre dois candidatos a reis da França, um dos quais, por coincidência, era rei da Inglaterra e pôde, apesar da má vontade de seus súditos ingleses, fazer uso dos recursos deles para lutar por seus objetivos.
É claro que não podemos culpar Shakespeare por ter cometido erros históricos. Ele se baseava nos cronistas do século 16 e, às vezes, realmente misturava fatos, especialmente quando precisava comprimir anos inteiros de história em atos ou cenas únicos. Os erros de reprodução de fatos são maiores em suas primeiras peças, especialmente nas três partes de "Henrique 6º".
Em vista do objetivo histórico e da ênfase sobre os personagens, a única grande surpresa desse livro é sua bibliografia. As histórias institucionais e políticas da Inglaterra no final da Idade Média foram amplamente revistas nas últimas décadas; além disso, houve uma pequena avalancha de biografias das principais personalidades desse período.
Em última análise, porém, tais objeções menores são irrelevantes. Este livro pode não satisfazer as exigências de historiadores ou estudiosos mais profundos de Shakespeare, mas com certeza fornece um pano de fundo histórico das peças para os apreciadores não-especialistas da obra de Shakespeare.



Shakespeare's Kings
401 págs., US$ 30 de John Julius Norwich.
Scribner (EUA).



R.N. Swanson é ensaísta, autor de, entre outros, "Religion and Devotion in Europe - 1215-1515" (Religião e Devoção na Europa - 1215-1515).
Tradução de Clara Allain.


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