São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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Leia trecho de "William Shakespeare", do francês Victor Hugo
Olimpo e teatro de feira

da Redação

Leia abaixo trecho de "William Shakespeare", ensaio do poeta, ficcionista e dramaturgo Victor Hugo (1802-1888), considerado o maior nome do romantismo francês, que está sendo lançado pela editora Campanário.

 


Quem diz poeta diz ao mesmo tempo e necessariamente historiador e filósofo. Heródoto e Tales estão incluídos em Homero. Shakespeare é esse homem triplo. É, além disso, o pintor, e que pintor! O pintor colossal. O poeta na verdade faz mais do que contar, ele mostra. Os poetas têm em si um refletor, a observação, e um condensador, a emoção; daí esses grandes espectros luminosos que saem do cérebro deles, e que se vão flamejando para sempre na tenebrosa muralha humana. Existir tanto quanto Aquiles seria a ambição de Alexandre. Shakespeare tem a tragédia, a comédia, a magia, o hino, a farsa, o vasto riso divino, o terror do horror e, para dizer tudo numa palavra, o drama. Ele toca nos dois pólos. É do Olimpo e do teatro de feira. Não lhe falta nenhuma possibilidade. Quando ele nos agarra, ficamos presos. Não esperemos dele nenhuma misericórdia, Ele tem a crueldade patética. Mostra-nos uma mãe, Constância, mãe de Artur, e, quando nos levou até esse ponto de comoção que o nosso coração se torna o dela, ele lhe mata o filho; vai em horror mais longe mesmo do que a história, o que é difícil; não se contenta em matar Rutland e em desesperar York; mergulha no sangue do filho o lenço com que enxuga os olhos do pai. Faz com que a elegia seja sufocada pelo drama, Desdêmona por Otelo. Não há nenhuma atenuação para a angústia. O gênio é inexorável. Ele tem a sua própria lei e a segue. O espírito também tem os seus inclinados, e essas vertentes determinam a sua direção. Shakespeare escorre rumo ao terrível. Shakespeare, Ésquilo, Dante são grandes rios de emoção humana derramando no fundo de seu antro a urna das lágrimas. (...)

Graça e horror
O bonito grande é possível; está em Homero, Astíanax é um exemplo, mas a graça profunda de que falamos é algo além dessa delicadeza épica. Complica-se com certa preocupação e subentende o infinito. É uma espécie de deslumbramento claro-escuro. Os gênios modernos são os únicos a ter essa profundidade no sorriso que, ao mesmo tempo em que é uma elegância, faz ver o abismo. Shakespeare possui essa graça, que é totalmente contrária à graça doentia, embora se lhe assemelhe, emanando, também, da tumba. O luto, o grande luto do drama, que não é outra coisa além do meio humano levado à arte, envolve essa graça e esse horror.
Hamlet, a dúvida, está no centro de sua obra, e nas duas extremidades, o amor; Romeu e Otelo, todo o coração. Há luz na dobra da mortalha de Julieta; mas nada que se compare à negrura do sudário de Ofélia desdenhada e de Desdêmona suspeitada. Essas duas inocências às quais o amor faltou com a palavra não podem ser consoladas. Desdêmona canta a canção do salgueiro sob o qual a água leva Ofélia. Elas são irmãs sem se conhecerem e se tocam pela alma, embora cada qual tenha seu drama à parte. O salgueiro freme sobre ambas. No misterioso canto da caluniada que vai morrer flutua a afogada, despenteada, vislumbrada. (...)
Shakespeare é, antes de tudo, uma imaginação. Ocorre que essa é uma verdade que já indicamos e que os pensadores conhecem: a imaginação é profundeza. Nenhuma faculdade do espírito se enfia e cava mais do que a imaginação; é a grande mergulhadora. A ciência, chegada aos últimos abismos, a encontra. Nas seções cônicas, nos logaritmos, no cálculo diferencial e integral, no cálculo das probabilidades, no cálculo infinitesimal, no cálculo das ondas sonoras, na aplicação da álgebra à geometria, a imaginação é o coeficiente do cálculo, e a matemática se torna poesia. Acredito pouco na ciência dos cientistas estúpidos.
O poeta filosofa porque imagina. É por isso que Shakespeare tem esse domínio soberano da realidade que lhe permite ficar sem o seu capricho. E esse próprio capricho é uma variedade do verdadeiro. Variedade sobre a qual é preciso meditar. A que se assemelha a sina, senão a uma fantasia? Nada de mais incoerente em aparência, nada de mais mal apegado, nada de mais mal deduzido. Para que coroar esse monstro, João? Para que matar essa criança, Arthur? Para que Luís 15 feliz? Para que Luís 15 punido? Deixemos passar a lógica de Deus. É nessa lógica que o poeta bebe a sua fantasia. A comédia explode nas lágrimas, o soluço nasce do riso, os rostos se misturam e se chocam, formas maciças, quase animais, passam arrastadamente, larvas, mulheres talvez, talvez fumaça, ondulam; as almas, libélulas da sombra, moscas crepusculares, fremem em todos os juncos negros a que chamamos paixão e acontecimentos. Num pólo, Lady Macbeth, no outro, Titânia. Um pensamento colossal e um capricho imenso.
O que são "A Tempestade", "Troilus e Cressida", "Os Dois Fidalgos de Verona", "As Alegres Comadres de Windsor", "O Sonho de uma Noite de Verão", "Conto de Inverno"? É a fantasia, é o arabesco. O arabesco na arte é o mesmo fenômeno que a vegetação na natureza. O arabesco empurra, cresce, se prende, se esfolia, se multiplica, amadurece, dá forma, se ramifica em todos os sonhos.
O arabesco é incomensurável; tem um poder inaudito de extensão e de engrandecimento; preenche horizontes e abre outros; intercepta os fundos luminosos por inumeráveis entrecruzamentos. (...) Distinguimos na clarabóia, atrás do arabesco, toda a filosofia; a vegetação vive, o homem se panteíza, faz para si no finito uma combinação de infinito, e, diante dessa obra em que há o impossível e o verdadeiro, a alma humana freme de uma emoção obscura e suprema.



William Shakespeare
318 págs., R$ 28,00 de Victor Hugo. Tradução de Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Ed. Campanário (r. Umuarama, 103, CEP 86060-510, Londrina, PR, tel. 0/xx/43/328-1840).



Trecho extraído de "William Shakespeare".


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