São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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+ cultura

Quadrinistas como Joe Sacco e Paul Karasik tornam a novela gráfica popular e respeitável ao abordarem temas polêmicos, como a questão palestina

Os gibis cult

LYDIA ADETUNJI

Faz bem mais de uma década que Art Spiegelman ganhou um Prêmio Pulitzer por "Maus" [Companhia das Letras], seu trabalho sobre o Holocausto -o primeiro artista de quadrinhos a ser reconhecido pelo prêmio. O evento marcou a chegada da "novela gráfica" como forma literária reconhecida. Os quadrinhos não precisariam mais lutar para serem levados a sério -pelo menos era o que parecia.
"Maus" não foi a primeira novela gráfica, e os quadrinhos adultos, inteligentes e subversivos, têm uma longa história. Mas o Pulitzer inspirou outros e provou que os quadrinhos que atraíam um amplo público leitor não precisavam ser só sobre super-heróis com malhas colantes que livravam o planeta de gênios sinistros. Podiam ser mais ambiciosos e adultos, dignos da atenção da crítica.
As editoras literárias de peso agora estão dando atenção às novelas gráficas, e impressões de especialistas surgem ao lado de grupos independentes influentes, como Fantagraphics e Drawn and Quarterly.
Ainda há muita bobagem por aí -como em qualquer meio-, mas a narrativa gráfica séria atingiu um ponto decisivo. Pela primeira vez, começa a cumprir sua antiga promessa. Essa forma vívida está ampliando seus limites; é tão vigorosa, experimental e arriscada quanto qualquer tipo de literatura.
Hoje, publicam-se quadrinhos em "Granta" e "The Guardian", e augustas publicações americanas como "The New York Review of Books" e "The New York Times" deram sua atenção crítica à forma. "The London Review of Books" foi uma das primeiras publicações a trazer tiras de "À Sombra das Torres Ausentes" [Cia. das Letras], a reação de Spiegelman aos eventos de 11 de setembro de 2001 e sua visão da "guerra ao terrorismo".
Foi um assunto corajoso para Spiegelman, um nativo de Manhattan, abordar numa época em que muitos autores convencionais pareciam paralisados. A obra foi suficientemente provocativa para não conseguir encontrar, de início, um canal de distribuição nos Estados Unidos.

Contra a banalização
A disposição de abordar questões importantes pode ser um dos motivos pelos quais a hostilidade da crítica aos quadrinhos diminuiu. Spiegelman e outros mostraram que um meio popular pode examinar assuntos sérios e fatos reais sem banalizá-los.
"Novela gráfica" é uma maneira canhestra e imprecisa de descrever algo que vai das memórias de não-ficção, da biografia ("Maus", por exemplo, conta a vida do pai de Spiegelman) e da reportagem visual até extensas narrativas ficcionais. Na década de 1980, as editoras adotaram "novela gráfica" como um termo de marketing adequado, enquanto o foco da indústria de quadrinhos norte-americana, estagnada, voltava-se para o lucrativo mercado adulto.
Assim como a estréia de "Maus" -de menor interesse no campo dos quadrinhos-, a era viu novas abordagens mais obscuras de mitos clássicos de super-heróis destinados a adultos, notadamente o perturbador "Batman - O Cavaleiro das Trevas", de Frank Miller, e "Watchmen" [Via Lettera], do autor britânico Alan Moore.
Parte da nova onda de material voltado para adultos era original e boa, mas grande parte não era. Diversos quadrinhos antes publicados em edições mensais foram reunidos em pacotes e vendidos como novela gráfica, mesmo que formassem um todo incoerente.
Mas, sejam quais forem os méritos do termo -e muitos autores ainda preferem "comics" [quadrinhos]-, as mudanças dos anos 80 permitiram o surgimento de um novo tipo de quadrinhos: mais longos, mais ambiciosos e criados por escritores e artistas que eram tratados como autores.
"Jimmy Corrigan - The Smartest Kid on Earth" [Jimmy Corrigan - O Menino Mais Inteligente na Terra], de Chris Ware, ganhou o prêmio Primeiro Livro do jornal britânico "The Guardian" em 2001. No mesmo ano, "Ghost World" [Mundo Fantasma], de Daniel Clowes, foi transformado em filme ("Mundo Cão"). Todos usam técnicas narrativas e visuais inteligentes para explorar temas antes restritos à novela literária tradicional.
Já Joe Sacco é um jornalista que ganhou aplausos por sua dura reportagem gráfica sobre a Guerra da Bósnia (1992-95) e o conflito palestino. Ele tem um olhar afiado para o tipo de personagem que converge nas zonas de guerra -incluindo ele próprio. Sacco se desenha como uma presença questionadora em seu trabalho, sendo honesto sobre alguns compromissos que os repórteres fazem.

Tradução visual
Levou tempo para que se acumulasse uma massa crítica desses trabalhos. Em uma tentativa de acelerar o processo, Art Spiegelman iniciou o projeto em que o romance curto "Cidade de Vidro" [Via Lettera], de Paul Auster, ganhou uma forma gráfica. Em sua introdução a "Cidade de Vidro", Spiegelman diz que o objetivo não foi criar uma versão "clássico ilustrado" emburrecida, mas uma "tradução" visual digna da atenção de adultos.
O romance de Auster, parte da "Trilogia de Nova York", é uma obra capciosa. Ela conta a história de Daniel Quinn, um escritor cuja rotina é interrompida certa noite por um telefonema de um homem nervoso, perguntando por um detetive particular chamado Paul Auster. O que se segue é em parte uma trama detetivesca à Raymond Chandler [1888-1959], em parte uma reflexão sobre a identidade e a linguagem.
Fingindo ser Auster, Quinn encontra seu interlocutor, Peter Stillman. Esse homem perturbado passou a infância trancado em isolamento por seu pai, um acadêmico desequilibrado, como parte de um experimento para redescobrir a linguagem original da inocência, falada antes da expulsão do homem do Éden, quando "uma coisa e seu nome eram intercambiáveis". Depois de vários anos em uma instituição, o pai teria alta e Quinn concorda em segui-lo por Nova York para proteger o filho.
Os artistas Paul Karasik e David Mazzucchelli traduzem lindamente a imagem "noir" do livro original mas também brincam inventivamente com o meio quadrinhos. O resultado vai além da ilustração literal do texto original de Auster.

Arte seqüencial
Os quadrinhos têm diversas maneiras de mostrar a passagem do tempo. Os painéis regulares e rígidos de "Cidade de Vidro" dão um ritmo constante à história, rompendo-se perto do fim, quando Quinn começa a mergulhar na loucura e perde o rastro dos dias e meses.
É uma experiência muito diferente da leitura do romance e, de certa maneira, mais emocionante; os desenhos ousados em preto-e-branco esclarecem, assim como ilustram, o texto.
A narrativa gráfica é usada de maneira diferente e didática em "The Plot - The Secret History of the Protocols of the Elders of Zion" (A Trama - A História Secreta dos Protocolos dos Sábios de Sião), o último livro escrito por Will Eisner, uma das lendas dos quadrinhos americanos, antes de sua morte, em janeiro de 2005.
Em 1978, Eisner produziu a que é freqüentemente considerada a primeira novela gráfica, "Contrato com Deus" (ed. Brasiliense), mas se tornou famoso por sua tira "The Spirit", na década de 1930.
Eisner foi quem popularizou o termo "arte seqüencial", buscando reconhecimento para a forma em que trabalhava. Em seus livros influentes sobre essa arte, ele salientou o surgimento de narrativas mais longas e complexas e de temas mais sofisticados.
"A Trama", concluído pouco antes de sua morte, desvenda as origens duvidosas dos "Protocolos dos Sábios de Sião", uma fraude que ainda circula amplamente e que pretende ser um plano judeu para dominar o mundo. Os "Protocolos" foram plagiados no final do século 19 do "Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu", um panfleto político mais antigo escrito pelo satirista francês Maurice Joly, que não se refere aos judeus.
Eisner traça a história dos "Protocolos" da Rússia sob o reinado de Nicolau 2º, o último czar, até a atualidade. Para Eisner, filho de imigrantes judeus nos EUA, foi uma obra muito pessoal. Enquanto muitos acadêmicos denunciaram a falsidade dos "Protocolos", Eisner escreveu que a aceitação da narrativa gráfica como veículo de literatura popular era uma oportunidade para tratar do tema em linguagem acessível.
Enquanto o gênio de Eisner está na interação entre suas palavras e seu trabalho artístico, existe uma tensão, em "A Trama", entre as exigências factuais do jornalismo investigativo -nomes, datas, lugares, fontes- e contar uma história que mantenha o público preso. Ele teve de deixar de fora parte do contexto histórico e se concentrar no grande elenco de indivíduos envolvidos, mas o volume de informação ainda torna o livro uma leitura exigente.

Infância no Irã
Marjane Satrapi, uma iraniana que vive na França, é uma das poucas mulheres que são conhecidas por trabalhar no meio de quadrinhos e apresentar um modo diferente de jornalismo visual.
"Embroideries" (Bordados) é sua seqüência de "Persépolis" (Companhia das Letras), a surpreendente e original memória em dois volumes que contou sua infância no Irã e a experiência da revolução islâmica de 1979 ("Persépolis" já vendeu quase meio milhão de exemplares em todo o mundo, uma conquista notável para uma novela gráfica).
Os desenhos de Satrapi são contidos e altamente estilizados; ela consegue nuanças de expressão com traços simples e rápidos. Em "Bordados", abandona os painéis convencionais de um livro de quadrinhos por uma disposição mais livre das ilustrações nas páginas. As histórias são contadas com humor e mostram um lado da vida no Irã praticamente desconhecido pelos estrangeiros.
Talvez hoje artistas de quadrinhos inteligentes estejam a caminho de uma aclamação maior em outros lugares. Com um pouco de sorte, a melhor safra de novelas gráficas finalmente passará das prateleiras mal-iluminadas entre ficção científica e terror para as prateleiras da frente das livrarias.


Este texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

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