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+ cultura
Quadrinistas como
Joe Sacco
e Paul Karasik
tornam a
novela gráfica popular e respeitável
ao abordarem
temas polêmicos,
como a
questão palestina
Os gibis cult
LYDIA ADETUNJI
Faz bem mais de uma
década que Art Spiegelman ganhou um
Prêmio Pulitzer por
"Maus" [Companhia
das Letras], seu trabalho sobre
o Holocausto -o primeiro artista de quadrinhos a ser reconhecido pelo prêmio. O evento
marcou a chegada da "novela
gráfica" como forma literária
reconhecida. Os quadrinhos
não precisariam mais lutar para serem levados a sério -pelo
menos era o que parecia.
"Maus" não foi a primeira
novela gráfica, e os quadrinhos
adultos, inteligentes e subversivos, têm uma longa história.
Mas o Pulitzer inspirou outros
e provou que os quadrinhos
que atraíam um amplo público
leitor não precisavam ser só sobre super-heróis com malhas
colantes que livravam o planeta de gênios sinistros. Podiam
ser mais ambiciosos e adultos,
dignos da atenção da crítica.
As editoras literárias de peso
agora estão dando atenção às
novelas gráficas, e impressões
de especialistas surgem ao lado
de grupos independentes influentes, como Fantagraphics e
Drawn and Quarterly.
Ainda há muita bobagem por
aí -como em qualquer meio-,
mas a narrativa gráfica séria
atingiu um ponto decisivo. Pela
primeira vez, começa a cumprir sua antiga promessa. Essa
forma vívida está ampliando
seus limites; é tão vigorosa, experimental e arriscada quanto
qualquer tipo de literatura.
Hoje, publicam-se quadrinhos em "Granta" e "The Guardian", e augustas publicações
americanas como "The New
York Review of Books" e "The
New York Times" deram sua
atenção crítica à forma. "The
London Review of Books" foi
uma das primeiras publicações
a trazer tiras de "À Sombra das
Torres Ausentes" [Cia. das Letras], a reação de Spiegelman
aos eventos de 11 de setembro
de 2001 e sua visão da "guerra
ao terrorismo".
Foi um assunto corajoso para Spiegelman, um nativo de
Manhattan, abordar numa
época em que muitos autores
convencionais pareciam paralisados. A obra foi suficientemente provocativa para não
conseguir encontrar, de início,
um canal de distribuição nos
Estados Unidos.
Contra a banalização
A disposição de abordar
questões importantes pode ser
um dos motivos pelos quais a
hostilidade da crítica aos quadrinhos diminuiu. Spiegelman
e outros mostraram que um
meio popular pode examinar
assuntos sérios e fatos reais
sem banalizá-los.
"Novela gráfica" é uma maneira canhestra e imprecisa de
descrever algo que vai das memórias de não-ficção, da biografia ("Maus", por exemplo,
conta a vida do pai de Spiegelman) e da reportagem visual
até extensas narrativas ficcionais. Na década de 1980, as editoras adotaram "novela gráfica" como um termo de marketing adequado, enquanto o foco
da indústria de quadrinhos
norte-americana, estagnada,
voltava-se para o lucrativo
mercado adulto.
Assim como a estréia de
"Maus" -de menor interesse
no campo dos quadrinhos-, a
era viu novas abordagens mais
obscuras de mitos clássicos de
super-heróis destinados a adultos, notadamente o perturbador "Batman - O Cavaleiro das
Trevas", de Frank Miller, e
"Watchmen" [Via Lettera], do
autor britânico Alan Moore.
Parte da nova onda de material voltado para adultos era
original e boa, mas grande parte não era. Diversos quadrinhos
antes publicados em edições
mensais foram reunidos em pacotes e vendidos como novela
gráfica, mesmo que formassem
um todo incoerente.
Mas, sejam quais forem os
méritos do termo -e muitos
autores ainda preferem "comics" [quadrinhos]-, as mudanças dos anos 80 permitiram
o surgimento de um novo tipo
de quadrinhos: mais longos,
mais ambiciosos e criados por
escritores e artistas que eram
tratados como autores.
"Jimmy Corrigan - The
Smartest Kid on Earth"
[Jimmy Corrigan - O Menino
Mais Inteligente na Terra], de
Chris Ware, ganhou o prêmio
Primeiro Livro do jornal britânico "The Guardian" em 2001.
No mesmo ano, "Ghost World"
[Mundo Fantasma], de Daniel
Clowes, foi transformado em
filme ("Mundo Cão"). Todos
usam técnicas narrativas e visuais inteligentes para explorar
temas antes restritos à novela
literária tradicional.
Já Joe Sacco é um jornalista
que ganhou aplausos por sua
dura reportagem gráfica sobre
a Guerra da Bósnia (1992-95) e
o conflito palestino. Ele tem
um olhar afiado para o tipo de
personagem que converge nas
zonas de guerra -incluindo ele
próprio. Sacco se desenha como uma presença questionadora em seu trabalho, sendo honesto sobre alguns compromissos que os repórteres fazem.
Tradução visual
Levou tempo para que se
acumulasse uma massa crítica
desses trabalhos. Em uma tentativa de acelerar o processo,
Art Spiegelman iniciou o projeto em que o romance curto "Cidade de Vidro" [Via Lettera], de
Paul Auster, ganhou uma forma gráfica. Em sua introdução
a "Cidade de Vidro", Spiegelman diz que o objetivo não foi
criar uma versão "clássico ilustrado" emburrecida, mas uma
"tradução" visual digna da
atenção de adultos.
O romance de Auster, parte
da "Trilogia de Nova York", é
uma obra capciosa. Ela conta a
história de Daniel Quinn, um
escritor cuja rotina é interrompida certa noite por um telefonema de um homem nervoso,
perguntando por um detetive
particular chamado Paul Auster. O que se segue é em parte
uma trama detetivesca à Raymond Chandler [1888-1959],
em parte uma reflexão sobre a
identidade e a linguagem.
Fingindo ser Auster, Quinn
encontra seu interlocutor, Peter Stillman. Esse homem perturbado passou a infância trancado em isolamento por seu
pai, um acadêmico desequilibrado, como parte de um experimento para redescobrir a linguagem original da inocência,
falada antes da expulsão do homem do Éden, quando "uma
coisa e seu nome eram intercambiáveis". Depois de vários
anos em uma instituição, o pai
teria alta e Quinn concorda em
segui-lo por Nova York para
proteger o filho.
Os artistas Paul Karasik e David Mazzucchelli traduzem lindamente a imagem "noir" do livro original mas também brincam inventivamente com o
meio quadrinhos. O resultado
vai além da ilustração literal do
texto original de Auster.
Arte seqüencial
Os quadrinhos têm diversas
maneiras de mostrar a passagem do tempo. Os painéis regulares e rígidos de "Cidade de Vidro" dão um ritmo constante à
história, rompendo-se perto do
fim, quando Quinn começa a
mergulhar na loucura e perde o
rastro dos dias e meses.
É uma experiência muito diferente da leitura do romance
e, de certa maneira, mais emocionante; os desenhos ousados
em preto-e-branco esclarecem,
assim como ilustram, o texto.
A narrativa gráfica é usada de
maneira diferente e didática
em "The Plot - The Secret History of the Protocols of the Elders of Zion" (A Trama - A História Secreta dos Protocolos
dos Sábios de Sião), o último livro escrito por Will Eisner,
uma das lendas dos quadrinhos
americanos, antes de sua morte, em janeiro de 2005.
Em 1978, Eisner produziu a
que é freqüentemente considerada a primeira novela gráfica,
"Contrato com Deus" (ed. Brasiliense), mas se tornou famoso
por sua tira "The Spirit", na década de 1930.
Eisner foi quem popularizou
o termo "arte seqüencial", buscando reconhecimento para a
forma em que trabalhava. Em
seus livros influentes sobre essa arte, ele salientou o surgimento de narrativas mais longas e complexas e de temas
mais sofisticados.
"A Trama", concluído pouco
antes de sua morte, desvenda
as origens duvidosas dos "Protocolos dos Sábios de Sião",
uma fraude que ainda circula
amplamente e que pretende ser
um plano judeu para dominar o
mundo. Os "Protocolos" foram
plagiados no final do século 19
do "Diálogo no Inferno entre
Maquiavel e Montesquieu", um
panfleto político mais antigo
escrito pelo satirista francês
Maurice Joly, que não se refere
aos judeus.
Eisner traça a história dos
"Protocolos" da Rússia sob o
reinado de Nicolau 2º, o último
czar, até a atualidade. Para Eisner, filho de imigrantes judeus
nos EUA, foi uma obra muito
pessoal. Enquanto muitos acadêmicos denunciaram a falsidade dos "Protocolos", Eisner
escreveu que a aceitação da
narrativa gráfica como veículo
de literatura popular era uma
oportunidade para tratar do tema em linguagem acessível.
Enquanto o gênio de Eisner
está na interação entre suas palavras e seu trabalho artístico,
existe uma tensão, em "A Trama", entre as exigências factuais do jornalismo investigativo -nomes, datas, lugares, fontes- e contar uma história que
mantenha o público preso. Ele
teve de deixar de fora parte do
contexto histórico e se concentrar no grande elenco de indivíduos envolvidos, mas o volume
de informação ainda torna o livro uma leitura exigente.
Infância no Irã
Marjane Satrapi, uma iraniana que vive na França, é uma
das poucas mulheres que são
conhecidas por trabalhar no
meio de quadrinhos e apresentar um modo diferente de jornalismo visual.
"Embroideries" (Bordados) é
sua seqüência de "Persépolis"
(Companhia das Letras), a surpreendente e original memória
em dois volumes que contou
sua infância no Irã e a experiência da revolução islâmica
de 1979 ("Persépolis" já vendeu
quase meio milhão de exemplares em todo o mundo, uma conquista notável para uma novela
gráfica).
Os desenhos de Satrapi são
contidos e altamente estilizados; ela consegue nuanças de
expressão com traços simples e
rápidos. Em "Bordados", abandona os painéis convencionais
de um livro de quadrinhos por
uma disposição mais livre das
ilustrações nas páginas. As histórias são contadas com humor
e mostram um lado da vida no
Irã praticamente desconhecido
pelos estrangeiros.
Talvez hoje artistas de quadrinhos inteligentes estejam a
caminho de uma aclamação
maior em outros lugares. Com
um pouco de sorte, a melhor safra de novelas gráficas finalmente passará das prateleiras
mal-iluminadas entre ficção
científica e terror para as prateleiras da frente das livrarias.
Este texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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