São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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+ literatura

O autor de "Independência" analisa a tradição do conto, diz que o escritor nos EUA não é intelectual e que apenas busca "entender a vida em particular"

A nobre arte de ferir e curar

Enric González
especial para "El País"

Richard Ford, 58, é um escritor lento, exato, reflexivo e imensamente prestigioso. Vive para ler e escrever. Escreve entre 10 e 12 horas por dia e pode levar três, quatro ou cinco anos para redigir um romance.
Antes de começar, relê dezenas de cadernos de anotações, seleciona os fragmentos que lhe parecem aproveitáveis, os reescreve e só então encara a primeira frase, que pode demorar dias a aparecer.
Graças ao sucesso profissional de Kristina, sua mulher de sempre, Ford pôde se concentrar na literatura muito antes que "O Cronista Esportivo" (ed. Best Seller) e "Independência" (ed. Record) o consagrassem como uma das vozes mais interessantes das letras contemporâneas. O casal, que mora no bairro francês de Nova Orleans, já viveu em dezenas de cidades, e Ford se orgulha de conhecer todas as melodias, sotaques e inflexões do inglês do seu país.

Há algum elemento comum aos escritores americanos?
Não. Quer dizer, há a língua, se bem que o inglês é apenas uma das línguas dos EUA. O inglês é a língua política e a língua pública, mas não a literária. A língua literária se construiu a partir de diferentes idiomas, dos quais o inglês é apenas o principal. Há nativos americanos, indígenas, que não falam nem escrevem em inglês. De resto, essa coisa de literatura norte-americana ou de onde quer que seja é arbitrária, não tem a ver com a arte e sim com o conceito de Estado-nação e outras convenções políticas.
O sr. chega a negar a existência de uma literatura especificamente sulista nos EUA.
Eu a nego em relação ao meu próprio trabalho. Reconheço que há escritores do Sul que falam sobre o Sul e contam com leitores sulistas, e eles estão muito felizes com isso. Mas, no meu caso, não me interessa. Sou do Sul, mas não escrevo sobre isso. Tento escrever coisas que possam ser lidas por gente que não saiba nada sobre minha origem ou sobre o lugar onde nasceram meus pais ou onde cresci ou onde moro. A literatura sulista não me interessa.
O sr. já disse que, descascando um pouco o verniz da cultura do Sul dos EUA, aparecem coisas desagradáveis.
Não vamos falar disso. Por quê?
Porque não quero. Então falemos da bomba atômica, da guerra do Vietnã ou do 11 de setembro, que devem ter deixado, ou deixarão, uma marca na criação literária americana.
Acho que a literatura segue uma trajetória mais ou menos paralela à história. Em algum momento, talvez dentro de um século, os estudiosos da literatura produzida em 1965, 1985 ou 2002 encontrarão relações claras com os acontecimentos históricos da época. Mas um escritor pode escrever em 65 sem fazer menção ao Vietnã ou pode escrever agora ignorando por completo os atentados de setembro. Os escritores não têm responsabilidade histórica.
Mas o fato de ignorar certos acontecimentos é significativo. Por exemplo, quando o sr. deixou o Mississippi, em 1962, foi porque não queria presenciar o que estava ocorrendo ali: a tensão racial, a luta pelos direitos civis.
É verdade. Quando Marcel Duchamp chegou aos EUA, em 1924, disse: "Não vim para a América, saí de Paris". Isso é interessante, pois sabemos o que estava acontecendo em Paris -e o que aconteceu depois- e entendemos por que aquilo era insuportável para Duchamp. Agora vemos os anos 20 parisienses de um modo muito diferente dos seus contemporâneos, porque temos um distanciamento e sabemos do reacionarismo, da Frente Popular e da violência dos anos 30. Minha decisão de abandonar o Sul... Ou melhor, não falemos da minha pessoa em particular, imaginemos um escritor que na época do Vietnã tivesse decidido escrever sobre alguma coisa, mas não sobre o Vietnã: os historiadores poderão entender que, por omissão, ele emitiu uma opinião negativa sobre a guerra. E daí? Isso não tem nada a ver com a literatura.
O sr. pode ler, por exemplo, Isaac Babel sem levar em conta que ele era russo e judeu?
Quando li seus contos, eu tinha 19 anos e não sabia nada sobre ele. Não sabia onde ficava Odessa nem que ele era judeu, não sabia que tinha sido exterminado em 1941 e ignorava tudo sobre Stálin. Limitei-me a ler os contos e, creia, eram melhores assim.
E Deus? Algo que costuma chamar a atenção dos europeus é a religiosidade da sociedade americana. Essa religiosidade se reflete na criação literária?
Eu não acredito em Deus. Se tenho uma religião, é a literatura. Deus, a religião, a vida após a morte, a épica bíblica, tudo isso se reflete na ficção norte-americana, mas não me interessa em nada. No seu caso, pode interessar-lhe porque o sr. é europeu e, como tal, tende a pensar nos escritores como intelectuais. Mas nos EUA é diferente. Os escritores americanos não costumam ser intelectuais, porque não nos interessa entender a vida em geral; nós nos conformamos em entender a vida em particular. Há exceções, como William Gass, que é um filósofo. Ou Susan Sontag, de cujo trabalho eu não gosto. Mas, se fizermos uma lista dos cem intelectuais norte-americanos mais influentes, veremos que pouquíssimos se dedicam a escrever ficção.
O sr. é um escritor meticuloso, muito trabalhador, e parece que receoso diante da palavra "gênio". Quais são os gênios da literatura norte-americana?
Não posso falar sobre a genialidade, mas posso, sim, falar sobre os autores que admiro e considero extraordinariamente dotados. Estou pensando em escrever um ensaio sobre eles. São os que produzem literatura inteligente, os que escrevem com total confiança, os que utilizam a linguagem de forma surpreendente e incomum, os que me ajudam a entender a mim e ao mundo, os que conseguem aquilo que, segundo Henry James, deve conseguir a literatura: ligar o que cura com o que fere.
Cite nomes. Sabemos, por exemplo, que o sr. aprecia muito Scott Fitzgerald e pouco Hemingway.
De fato. Fitzgerald. E William Gass. E John Updike. E Joyce Carol Oates. E esse rapaz, Jonathan Franzen, que escreveu um livro maravilhoso, "The Corrections". Há muita gente.
Dizem que o conto é a forma de expressão literária mais tipicamente norte-americana.
Não. Para isso teríamos que ser os melhores no gênero, e às vezes não somos tão bons quanto os russos, os ingleses ou os franceses.
Reconheça que, nos últimos tempos, os escritores dos EUA têm se mostrado muito bons na narrativa breve.
Não sei se isso é verdade, por mais que, de modo geral, seja tido como verdade. As razões, em todo o caso, são extraliterárias. Acontece que nos EUA há revistas importantes que publicam histórias curtas ("The New Yorker", "Esquire"), o que não ocorre na Europa. E essas revistas americanas, além do mais, são lidas na Europa, coisa que antes não acontecia.


Tradução de Sergio Molina.

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