São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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O PALCO DA RAZÃO

Divulgação
Paulo Autran em montagem de "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto



PAULO AUTRAN RELEMBRA COMO TROCOU A CARREIRA DE ADVOGADO PELA DE ATOR, FALA DA RELAÇÃO COM GLAUBER ROCHA EM "TERRA EM TRANSE" E DIZ QUE O GOLPE DE 64 MUDOU RADICALMENTE SEU MODO DE ENXERGAR O BRASIL


Mario Sergio Conti
da Sucursal do Rio

O que mais impressiona em Paulo Autran é que ele tenha 80 anos. O ator parece ter 20 anos a menos. A receita da sua longevidade e boa saúde é desconcertante: fumar desde a juventude, nunca fazer exercícios, comer de tudo e trabalhar todos os dias. "Minha vida não é exemplo para ninguém", diz Paulo Autran, tirando mais uma baforada do cigarro, sentado no sofá da sua ampla sala de visitas, nos Jardins, em São Paulo, sem encostar, perfeitamente ereto.
Nem sua carreira. Ele não fez curso de teatro, formou-se em direito nas arcadas do largo São Francisco, era advogado com escritório montado quando estreou profissionalmente no palco, aos 27 anos. Estréia já com o melhor salário no teatro da época, ganhando mais que as estrelas Tônia Carrero e Cacilda Becker. E já na estréia profissional recebe o prêmio de melhor ator do ano.
Também num outro sentido a carreira de Autran não é paradigma: ele fez poucos filmes e não gosta de televisão, na qual trabalhou apenas em três novelas.
Seu lugar é o palco. Foi nele que se encontrou, artística e existencialmente. No teatro, fez de tudo: tragédias e comédias, grandes autores e desconhecidos, obras de arte e peças acabadamente comerciais, shows e recitais, musicais e monólogos, espetáculos arriscados e acomodados, foi protagonista e ator secundário, além de diretor e produtor.
Autran fez sua vida no palco. Sem ele, o teatro nacional seria outro: menor. O cinema também. Sua interpretação de Porfírio Diaz no melhor filme brasileiro de todos os tempos, "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha, será enaltecida enquanto houver interesse na arte brasileira do século 20.
Fora do palco, o ator é um homem discreto, zeloso de sua privacidade e confessadamente vaidoso. Como figura pública, teve atitudes pontuais e firmes. A partir do golpe de 1964, lutou pela liberdade. Em 1981, recusou a Ordem do Ipiranga em protesto contra a política cultural do então governador Paulo Maluf. Só duas vezes declarou o voto: para Mário Covas e para Fernando Henrique Cardoso, quando de sua primeira eleição para o Planalto. Nos anos 60, Autran cogitou se filiar ao Partido Comunista Brasileiro. Desistiu por constatar que era por demais independente para se submeter à disciplina de militante.
Para surpresa dos amigos, em 1999 casou-se com a atriz Karin Rodrigues, sua amiga de mais de 20 anos. Eles vivem em casas separadas, mas passam o dia juntos.
A velhice e a perspectiva da morte não o angustiam. "Sou um homem racional", diz. "Não adianta ficar lamentando a perda da juventude nem a mortalidade, o que importa é viver bem o presente, trabalhando e criando."

Paulo Autran fala do primeiro sucesso e ressalta o papel decisivo do diretor Adolfo Celi para a sua formação -"ele me ensinou a importância literária, dramatúrgica, artística do teatro". O ator relembra também a importância que teve o TBC para o Rio nos anos 50. "O TBC foi em determinada época o que depois a Globo viria a ser no Rio de Janeiro." (MSC)
Qual foi o seu primeiro papel?
O de diabo. Minha irmã escrevia umas pecinhas, nós ensaiávamos e mostrávamos aquilo para os adultos da família. Botei um calção vermelho, calcei os chinelos de minha tia, me colocaram uns chifres de papelão e me pintaram um bigode. Eu tinha uns sete anos. Entrava mudo em cena e saia calado. Minha única participação era separar um casal que estava namorando. Adorei fazer o papel: fui aplaudidíssimo pela família. Depois, na Faculdade de Direito, participei de alguns espetáculos. Mas era tudo brincadeira.
Por que estudou direito?
Porque, como gostava de viajar, queria ser diplomata. Mas comecei a advogar no terceiro ano da faculdade e não fui diplomata. Trabalhei como advogado durante sete anos.
Qual era a sua especialidade?
Nenhuma. O que caísse na rede era peixe. Quando aparecia um cliente novo, em vez de ficar contente, eu pensava: "Ai, meu Deus, mais uma chateação...". Vivia muito bem com meu escritório, no aspecto material, mas achava a advocacia uma chateação. Correr os cartórios, ir ao fórum, averiguar o que o juiz disse ou não disse: era tudo muito chato. Advogava porque não via alternativa.
Como se tornou ator?
[A escritora] Tatiana Belinky me chamou para assistirmos a umas aulas no Instituto Cultural Brasil-Rússia, que estava criando um curso de teatro. Como as aulas eram no final da tarde, acabei indo com a Tatiana. A professora era uma atriz húngara, que deu duas aulas e desapareceu. Quem entrou no lugar dela foi uma atriz portuguesa, Maria de Lourdes Prestes Maia, que depois se casaria com o futuro prefeito de São Paulo, Prestes Maia. Ela veio para o Brasil com uma companhia portuguesa de revistas. Era uma mulher muito interessante, brilhante. Mas como professora era uma negação. Ela repetia o que aprendeu no início do século passado, em Portugal. Eram aulas técnicas, com uma terminologia de teatro ultrapassada.
Também frequentava as aulas a Madalena Nicol, que não gostou do curso e nos chamou para formar um grupo nosso, amador. Foi nesse grupo que atuei na minha primeira peça, "A Esquina Perigosa", de J.B. Priestley, em 1947, no Teatro Municipal.
Qual foi a repercussão de "A Esquina Perigosa"?
Foi um sucesso. [O diretor] Abílio Pereira de Almeida, que fazia parte do Grupo de Teatro Experimental junto com o Alfredo Mesquita [diretor-fundador da Escola de Arte Dramática, em SP", viu o espetáculo e foi ao camarim perguntar: "Onde vocês descobriram essa peça maravilhosa? Vocês estão ótimos!". Ele nos entusiasmou muito. Lembro que uma prima minha disse: "Paulo, você tem uma naturalidade impressionante, mas nunca será ator: você tem uma voz fraca, era o que menos se ouvia da platéia". Foi uma observação ótima, pois ajudou a me preocupar com a voz.
Do que você gostava mais, como ator amador: de aparecer, de ser o centro das atenções, de interpretar?
A atividade era completamente lúdica, exibicionista. O que eu gostava mais era de me exibir. Queria representar os melhores papéis, os personagens mais simpáticos. Era uma brincadeira, um hobby. Mas a coisa seguiu adiante. O nosso grupo se desfez e montei outro grupo, no qual representei a minha segunda peça, no TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], que havia acabado de ser inaugurado. Abílio Pereira de Almeida recebeu então um convite do Otavio Guinle [empresário, construtor do Copacabana Palace] para inaugurar o teatro do Copacabana Palace, no Rio, que havia passado por uma das suas muitas reformas, e me convidou para os espetáculos de estréia, "A Mulher do Próximo" e "Pif-Paf", do próprio Abílio. Fiz então a minha primeira exigência; disse que só iria se fosse montada também "À Margem da Vida", de Tennessee Williams [1911-83]. A peça foi montada e fez um enorme sucesso.
Como se profissionalizou?
Tonia Carrero, que chegara da Europa, onde fizera um curso de teatro, encasquetou que queria contracenar comigo. Eu dizia que não podia, que tinha o escritório de advocacia. Aí me fizeram uma ótima proposta, em termos de remuneração, e aceitei. Falei para meu pai, cujo sonho era se aposentar como delegado e advogar comigo, que iria fechar o escritório e ser ator. Ele disse: "Isso é algum rabo-de-saia. Daqui a dois meses você estará de volta". Só que a peça estreou, era "Um Deus Dormiu Lá em Casa", do Guilherme Figueiredo, em dezembro de 1949, e uma semana depois os críticos se reuniram e nosso espetáculo ganhou os prêmios de melhor peça, direção, cenário e ator, eu. Meu pai ficou orgulhoso e passou a me aceitar como ator. Virei ator porque tive sorte: estreei, ganhei prêmios e tive um ótimo salário. Minha carreira não é paradigma para ninguém.
Mudar de profissão alterou sua maneira de ser?
Fiquei completamente idiotizado. Fiquei orgulhosíssimo com o prêmio, vaidosíssimo, achando que um grande gênio havia nascido no Brasil: eu. Fiquei uns meses bobo, insuportável. Só depois, quando entrei no TBC e tive contato com os grandes diretores, aprendi o que era teatro. Que o teatro não era um lugar onde as pessoas se exibem, que era muito mais que isso.
Quem te ensinou teatro?
Adolfo Celi [ator e diretor italiano (1922-1986), foi chamado para a função de encenador do TBC logo após a profissionalização do grupo, em 1949]. Ele me ensinou a importância literária, dramatúrgica, artística do teatro. Ensinou que uma peça é oferecida à platéia, que tem de ter um nível de inteligência, que é arte. Comecei a estudar, a ler peças e livros sobre teatro. Celi também ensinou o método de Stanislávski [diretor e teatrólogo russo (1863-1938) e um dos principais teóricos da interpretação, autor de "A Construção da Personagem" (ed. Civ. Brasileira), entre outros], o que era interpretação. Fiz exercícios de voz, exercícios físicos e principalmente me apliquei na compreensão do personagem. Celi era um homem de uma cultura teatral extraordinária, que tinha feito um curso superior de teatro na Itália. Ele foi o melhor diretor que trabalhou no teatro brasileiro. Lidava com cada ator e atriz de um modo diferente e conseguia de todos um resultado excepcional. Com ele aprendi a minha profissão. Até então, eu usava um talento natural, era um exibicionista.
Foi Adolfo Celi quem iniciou o teatro moderno no Brasil?
O marco do teatro moderno foi a montagem de "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, que Ziembinski encenou logo que chegou ao Brasil em meados dos anos 40. Mas foi um caso isolado. O grupo do Ziembinski logo foi à falência, não houve consequências da montagem. Com Celi foi o contrário. Ele mostrou que era possível fazer um excelente teatro, que era possível contratar um elenco por ano, formar atores e progredir. Mesmo quando encenávamos peças mais comerciais, comédias, o nível dos espetáculos era sempre alto. O TBC foi a maior revolução no teatro brasileiro do século 20.
Por quê?
Quando o TBC foi para o Rio, lembro que fui a várias livrarias procurar material sobre teatro. Não havia nada. Seis meses depois, com a chegada do TBC, havia em todas as livrarias livros e mais livros sobre teatro, estrangeiros e nacionais. Em contrapartida, os teatros que levavam peças tradicionais se esvaziaram. Acabou aquele teatro que não respeitava o texto dos autores, que era feito só para o ator ou a atriz brilharem. O TBC foi em determinada época o que depois a Globo viria a ser no Rio de Janeiro. A porta do TBC em São Paulo vivia cheia de atores de todo o Brasil, de gente tentando obter papéis. Era gente que queria aprender, participar.
Com o TBC, o nível da crítica teatral melhorou bastante. Pessoas que tinham interesse em teatro passaram a contar com uma base intelectual para se desenvolver, pois havia o que criticar. Com o TBC surgiram críticos do nível de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi. Gente que só ia a teatro na Europa e nos Estados Unidos passou a ver teatro no Brasil. A atuação do TBC mudou tudo: a maneira de encenar, os atores, o público, os críticos.
O TBC tinha de expressar ou confrontar o Brasil?
Não, não havia essa preocupação. Nem poderia haver, já que os diretores eram estrangeiros, conheciam pouco o Brasil. Encenamos autores nacionais, como Millôr Fernandes e Gonçalves Dias, mas não se pretendia investigar a realidade brasileira, tratar de problemas nacionais. Isso só vai acontecer no Arena, que surgiu por causa do TBC. Houve uma acumulação. Ou você acha que o Arena existiria sem que houvesse a experiência prévia do TBC?
É possível comparar as trajetórias do TBC, do Arena e do Oficina?
Esses grupos surgiram porque se tinha fé em uma proposta ou em alguma pessoa. Se isso não ocorre, os grupos acabam logo. No TBC, nós tínhamos fé em fazer um bom teatro. No Arena, havia a fé em fazer teatro político, em enfrentar a realidade nacional, em chamar os estudantes para o teatro. Já o Oficina se formou em torno da personalidade extraordinária de José Celso Martinez Corrêa, que é um dos maiores diretores que o teatro brasileiro já teve.
Por que, em 1955, Adolfo Celi, Tônia Carrero e você saíram do TBC?
Digamos que houve divergências estéticas. Franco Zampari [engenheiro italiano (1898-1966) que fundou o TBC, em 1948] tinha uma visão fantástica do teatro, mas não representava certos autores. Para fazer uma tragédia grega como "Antígona" [de Sófocles], por exemplo, foi uma luta do Celi para convencer o Zampari. Ele também não queria encenar Shakespeare. Achava que era caro, era perigoso, o público não ia gostar. E o Celi queria fazer Shakespeare. Aí saímos do TBC, formamos a companhia Tônia-Celi-Autran e montamos "Otelo". Depois fizemos "A Viúva Astuciosa", de Volponi, e "Entre Quatro Paredes", de Sartre.
Como a política entrou na sua arte?
Com o golpe de 1964. O golpe me abriu os olhos para muita coisa. Eu me considerava apolítico. Não sabia que o apolítico é uma categoria política: a da pessoa que adota o status quo. Eu era um alienado total. Só com o golpe passei a pensar na nação, como entidade política, e na dimensão política da minha profissão. Foi quando atuei em "Liberdade, Liberdade" [(1965), peça contra o regime militar que se tornaria um clássico], de Flávio Rangel e Millôr Fernandes.
Com "Liberdade, Liberdade", a sua intenção era fazer agitação contra a ditadura ou comunicar uma visão de esquerda?
Era lutar pela democracia. A peça era de protesto, se insurgia contra o cerceamento da liberdade. O texto mostrava como em vários momentos da história da humanidade foi conquistada a liberdade. Não era de esquerda.
Foi nessa época que encenou e teve contato com o teatro épico de Brecht?
Foi depois, quando atuei em "Galileu". Com o tempo, passei a achar que o teatro é maior quando não tem nenhum adjetivo. O teatro lírico ou o poético são maravilhosos, mas restringem. O mesmo vale para o teatro realista ou o político. Eles são absolutamente necessários em alguns momentos. Tomados como uma bandeira, ficam restritivos. O próprio Brecht sabia disso. Em "O Círculo de Giz Caucasiano", o prólogo é político. Mas, sem ele, a peça continua ótima: ela analisa comportamentos humanos, num certo sentido faz chorar. Em "A Alma Boa de Se-Tsuan", muitas vezes o público nem percebe o aspecto político, pois ela não é nem um pouco panfletária. E outras peças dele são absolutamente didáticas -e são as de que gosto menos.
Qual foi a sua reação, por volta de 1968, quando uma parte do teatro brasileiro foi para o irracionalismo?
Fiquei perplexo. Eu era amigo do Vianinha, o Oduvaldo Viana Filho. E me lembro de perguntar a ele como é que aquilo podia estar acontecendo. Ele, como eu, achava que, com aquela repressão, o golpe dentro do golpe, tínhamos de fazer um teatro ainda mais racional. O desbunde foi uma grande surpresa. Vimos cabeças de grande talento e inteligência, como Luiz Carlos Maciel [escritor, roteirista e diretor, foi um dos fundadores de "O Pasquim"], montando espetáculos de uma obscenidade gratuita, que não significavam absolutamente nada. Uma peça dele foi proibida, e fomos todos fazer manifestações contra a censura, mesmo odiando o espetáculo.
Você nunca teve vontade de se expressar nessa tendência irracionalista?
Acho que a gente deve ter um determinado nível de autenticidade. Se se faz uma coisa apenas porque está na moda, e não é sua forma de pensar, você não está sendo verdadeiro. Sempre procuro ver tudo, as novas experiências, as tentativas. Muitas vezes gosto e muitas vezes aproveito um ou outro aspecto. Agora, aderir completamente, nunca fiz isso.
Trabalharia com José Celso Martinez Corrêa ou Gerald Thomas?
Fui convidado pelo José Celso para fazer o "Galileu" dele e topei. Só não fiz por problemas de datas, pois eu estava fazendo "Édipo Rei". Ele fez com o Claudio Corrêa e Castro, que representou o papel muito bem. José Celso fez um grande trabalho com "O Rei da Vela" (1967), de Oswald de Andrade, que como autor de teatro era uma negação. O texto, lido, é insuportável, e José Celso fez com ele um espetáculo sensacional. Gerald Thomas me convidou várias vezes para trabalhar com ele. Aceitei sempre, mas nunca foi possível, devido a problemas de agenda. Ele é um grande diretor, mas que gosta também de ser autor. Gosto mais dele como diretor que como autor.
Você faz televisão com o propósito de propagandear o seu nome, de levar público às suas peças?
Não faço mais isso. Só fiz três novelas na Globo ["Pai Herói] (1979), "Guerra dos Sexos" (1983) e "Sassaricando" (1987)". Jamais quis ter um contrato com a Globo. Gostaria de trabalhar nuns três capítulos numa novela, uma participação curta, num bom papel. Acho chato trabalhar na televisão.
Já vi colegas fazerem bons papéis em novelas, em cenas bem interpretadas e bem dirigidas. Mas no geral não há tempo na televisão para aprofundar o trabalho. As novelas se propõem basicamente a responder a duas perguntas: quem casa com quem, e quem mata quem? É muito pouco. Os profissionais de televisão são capazes e, no geral, têm boas intenções, mas no mais das vezes o gosto médio da audiência acaba se impondo. E o gosto se restringe àquelas duas perguntas: quem matou e com quem casou. Por isso é que sempre digo: o teatro é a arte do ator; o cinema, a arte do diretor; a televisão, a arte do anunciante.
O teatro não está se transformando em uma arte de elite, por um lado, com o estatuto de música clássica, e, por outro lado, num ramo da indústria cultural, que só faz peças comerciais?
Existe aí a questão da televisão, que atinge um número infinitamente maior de pessoas que o teatro. Por isso a mídia se interessa muito mais pelos fatos televisivos. Da mesma forma, a mídia se interessa mais por jogadores de futebol do que por grandes escritores. As caras do Rivaldo ou do Pelé ou do Romário são mais conhecidas que a do Raduan Nassar. A crítica de teatro também ficou com menos espaço. Décio de Almeida Prado escrevia meia dúzia de ensaios sobre uma peça, que eram publicados em dias diferentes: sobre o autor, a peça, a encenação, depois sobre a interpretação etc. Ele acompanhava a carreira de cada ator. Apesar disso, o público de teatro só fez crescer. Quando comecei, uma peça de grande sucesso ficava no máximo dois meses em cartaz. Hoje, ficam anos e anos. Estou há 12 anos fazendo "Quadrante" [monólogo em que interpreta poemas e trechos em prosa de textos de escritores brasileiros, como Drummond e Bandeira]. Há público para peças comerciais, mas também para Beckett. Se o espetáculo é bom, é verdadeiro, ele encontra o seu público.
Como foi o convite de Glauber Rocha para trabalhar em "Terra em Transe"?
Estava fazendo "Liberdade, Liberdade" e alguém disse: "O Glauber está aí". Não o vi. Acabou o espetáculo e ele não foi ao camarim. Achei que ele não tivesse gostado da peça. No dia seguinte, lá estava o Glauber de novo. Dessa vez, o vi. Era um teatro de arena, e ele circulou por todos os lugares. E não foi às coxias no fim. Fiquei intrigado. No terceiro dia, lá estava ele de novo. Deitava no chão, fazia óculos com as duas mãos e ficava me olhando. Aí ele foi ao camarim. Disse que estava observando minha interpretação há três dias e me convidou para trabalhar no próximo filme, cujo título já era "Terra em Transe". Aceitei o convite. Li o roteiro, que achei genial. Demorou para ele levantar a produção. Quando as filmagens iam começar, eu estava com uma peça em cartaz, viajando pelo interior de São Paulo. Ele disse que filmaria as minhas cenas nas segundas, terças e quartas-feiras. Assim foi feito. No domingo à noite, depois do espetáculo, onde quer que eu estivesse, pegava meu fusquinha e ia para São Paulo. Na manhã de segunda, tomava o primeiro avião para o Rio, de onde voltava para São Paulo na quarta-feira à tarde.
Como compôs o personagem de d. Porfírio Diaz?
O roteiro trabalhava com três planos, o do real, o da lembrança e o do delírio. O plano real ia até o personagem do jornalista, feito pelo Jardel Filho, que levava o tiro. Entravam então as suas lembranças. E, n4o terceiro plano, o jornalista delirava. Perguntei ao Glauber como ele faria, formalmente, para distinguir o plano do real do da lembrança e do delírio. Ele explicou que isso seria feito pela colocação da câmera e por seus movimentos. Só que o Glauber escreveu um script, filmou outro e montou um terceiro. E os três eram geniais. Glauber estava no auge da sua criatividade e inteligência, foi a sua época mais maravilhosa. Na hora das filmagens, eu não sabia que a divisão dos três planos não seria feita, de modo que graduei a minha interpretação nos códigos realistas, de memória e do delírio.
Foi fácil filmar com Glauber Rocha?
Ele dava indicações precisas de como eu deveria me colocar em cena. Não permitia que movimentasse um braço sem a sua autorização. Na sequência final, quando desço as escadas e faço um discurso, eu estava no plano do delírio e exagerei ao máximo. E ele, atrás da câmera, dizia: "Mais! Mais!". O engraçado é que depois ele deu uma entrevista explicando como trabalhava com os atores. Disse que irritava, irritava e irritava os atores e, quando eles estavam a ponto de explodir, ligava a câmera e filmava. Comigo não teve nada disso. Foi gentil, maravilhoso. Ficamos amigos.
O que achou do filme?
Da primeira vez em que o vi, achei um grande filme. Mas não gostei, achei chato. Na segunda vez, gostei mais. Na terceira, adorei. Cada vez que o vejo gosto mais. Foi um dos bons trabalhos que fiz na minha carreira.
Por que fez tão pouco cinema?
Adoro fazer cinema. Mas tive pouca oportunidade, poucos convites. Fiz "Terra em Transe", "O País dos Tenentes" (1987), do João Batista de Andrade, e poucos outros ["Veneno] (1952), "Mar Corrente" (1967), "Vertigens" (1985), "Tiradentes" (1998), "Oriundi" (1999) e alguns outros". Corrigindo: até tive alguns convites, mas não gostei dos roteiros e não filmei.
Qual o seu diretor predileto?
O Adolfo Celi, a quem devo muito. Mas sempre tive boas relações com diretores. Gostei de trabalhar com Flávio Rangel, Celso Nunes, Benedito Corsi, José Possi Neto.
Já brigou com algum diretor?
Tive uma discussão forte com Ademar Guerra. Eu o convidei para dirigir "O Burguês Fidalgo", de Molière. No dia da estréia, em Curitiba, ele reuniu o elenco e disse duas coisas: que o texto era um Molière "menor"; que fizera o que eu mandara; e que todos no elenco apenas serviam de "escada" para mim. Durante os ensaios, eu não gostara do cenário que ele imaginara. O cenário foi mudado. Achei que não era nada demais, mas naquele momento percebi que o Ademar estava trabalhando o tempo todo contra mim. O elenco saiu para lanchar. Chamei o Ademar e lhe disse para reunir o elenco de novo. E pedi que explicasse que tanto a "Britannica" quanto a "Larousse" consideravam "O Burguês Fidalgo" uma das melhores peças de Molière. Pedi também que dissesse que eu, de fato, era o protagonista, mas que cada ator no elenco tinha uma cena só para ele. O Ademar respondeu que a peça era minha e que não queria receber nenhum tostão. Eu disse que ninguém trabalhava de graça para mim. Mandei depositar na conta dele tudo o que fora combinado. Com esse dinheiro ele foi pela primeira vez ao exterior.
Que autor prefere representar?
Shakespeare. Hoje se costuma falar das limitações e defeitos de Shakespeare. Acho isso de um ridículo total. Shakespeare é um mundo. As qualidades de Shakespeare são altas, são excepcionais. Ele tratou de todas as paixões humanas, da natureza humana, de todas as qualidades e defeitos dos seres humanos. Depois dele, há as tragédias gregas. Fazer tragédia é complicado. No Brasil temos excelentes atrizes, que se saem bem em dramas e comédias, mas pouquíssimas conseguem fazer tragédias. Fernanda Montenegro não tem o dom da tragédia, Cacilda Becker não tinha, mas Glauce Rocha tinha, assim como Tereza Raquel tem. Com os atores, a mesma coisa: temos poucos atores capazes de fazer tragédias. Depois de Shakespeare e dos gregos, não tenho um autor preferido.
E entre os autores nacionais?
"Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, é a obra prima do teatro nacional. Não há peça brasileira do nível dela. Nosso maior autor é Nelson Rodrigues, mas ele não escreveu nada à altura de "Morte e Vida Severina". Hoje temos bons autores, Flávio de Sousa, Naum Alves de Souza, Maria Adelaide Amaral, mas nenhum grande.
Quem são a melhor atriz e o melhor ator do Brasil?
Temos grandes atrizes: Fernanda Montenegro, Tônia Carrero, Irene Ravache, Tereza Raquel. Essa menina, Cecilia Borges, que vi em Uberlândia, vai ser uma grande atriz. Atores: Gianfrancesco Guarnieri, Marco Nanini, Juca de Oliveira, Antonio Fagundes; e os novos, Matheus Nachtergaele e Rodrigo Santoro. Tem muita gente, estou esquecendo alguns.
No mundo, quem são os grandes atores e atrizes?
Laurence Olivier (1907-89) é a grande figura do teatro mundial do século 20. Há centenas de grandes atrizes, mas só um Laurence Olivier. Ele não só era um ator de um nível raríssimo. Ele dominou o teatro, o cinema, a televisão -e dominou magistralmente.
Você tentou imitá-lo?
Não, jamais tive essa pretensão. Ou melhor, quando estreei e ganhei o prêmio, achei que havia nascido um novo Laurence Olivier no Brasil: eu.
Qual a melhor coisa para um ator: controlar as emoções da platéia, receber a salva de palmas ou ter a satisfação, no camarim, de que o espetáculo daquela noite foi bom?
Para mim, a melhor coisa é aquele dia, no ensaio, em que de repente você percebe que encontrou o caminho do personagem. Nesse instante, se cristaliza tudo o que você estudou sobre o autor e a personagem, tudo o que o diretor quis mostrar. Isso me dá uma grande alegria.
Não o incomoda o fato de ter feito dezenas de peças que, por melhores que tenham sido, não serão vistas? E que as futuras gerações só saberão pouco do que você fez, graças principalmente a "Terra em Transe"?
Uma das coisas que me apaixonam em teatro é justamente a de ser uma arte efêmera, que dura só o tempo daquele espetáculo, porque cada espetáculo é diferente do outro. E não adianta gravar ou filmar uma peça. São coisas diferentes. No teatro, o olhar do espectador é livre. Na gravação, o espectador olha aquilo que a câmera está mostrando. Vi alguns filmetes da Sarah Bernhardt fazendo a "Dama das Camélias". É uma coisa lamentável, datada. Não vale a pena fixar o teatro para a eternidade.
Você não tem aspiração à permanência?
Vivo no meu tempo. É só este tempo. E acabou. Sou ateu. Acreditar em Deus é a mesma coisa que acreditar em Papai Noel. Essa história da glória, de ser chamado de monstro sagrado, de mito, isso tudo existe na cabeça das pessoas, não em mim. Isso não me dá de comer. É lógico que é agradável ouvir um elogio, receber o afeto de uma pessoa que você nem conhece. Gosto de que gostem de mim. Mas estou sempre pensando na próxima peça.
Freud escreveu que uma pessoa só é feliz ao se realizar no trabalho e no amor: você é feliz?
Cresci ouvindo a ladainha de que um homem precisa plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Plantei algumas árvores. Para o bem da literatura brasileira, jamais escrevi um livro. Não tive filhos e, como bem diz Machado de Assis, não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria. Vejo meus amigos e conhecidos e constato que muitos deles não têm filhos: eles têm problemas. Mas seria um despropósito dizer que sou infeliz. Tive sorte no trabalho e vivi o amor. Sou feliz.


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