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Badalação zero
De apelo fácil, megaexposições e feiras internacionais de arte acabam atraindo mais recursos e deixam à míngua criação e preservação de acervos
EUCLIDES SANTOS MENDES
DA REDAÇÃO
Um incêndio no Rio
de Janeiro destruiu grande parte
do acervo deixado
por Hélio Oiticica
(1937-80), um dos nomes mais
importantes da arte brasileira
no século 20.
As obras estavam na casa de
César Oiticica, irmão do artista. O fogo, que começou por
volta das 23h do dia 16/10, consumiu parangolés, bólides e bilaterais -destaques da produção de Oiticica.
Na casa também havia pinturas, desenhos e toda a obra que
concebeu nos anos 1960.
Para a professora e curadora
do Museu de Arte Contemporânea da USP Cristina Freire, a
perda de acervo tão significativo revela a precariedade da política de preservação da arte no
Brasil.
Em entrevista à Folha, ela
critica o modo como os acervos
de artistas estão relegados a segundo plano, muitas vezes em
nome do espetáculo e da visibilidade das megaexposições e
das badaladas feiras de arte.
FOLHA - Qual é o impacto, para a
arte brasileira, da destruição de parte do acervo deixado por Oiticica?
CRISTINA FREIRE - O impacto é
imenso, uma verdadeira catástrofe, como avaliou Ferreira
Gullar, pois a contribuição desse artista à arte brasileira e internacional é indiscutível.
O incêndio torna visível a crise que embasa o sistema da arte
no país. Revela a precariedade
das relações entre interesses
privados e públicos e a fragilidade das instituições em vários
níveis.
O pensamento e trabalhos de
Hélio Oiticica são paradigmáticos para uma mudança no que
se convencionou entender como "obra de arte", assim como
para o papel do espectador, que
ele chamava de "participador".
O "Programa Ambiental" delineado a partir de sua experiência no morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, foi um eixo de suas proposições.
Seus parangolés, por exemplo, demarcaram um território
poético-político ao articular arte, música, dança e arquitetura
e colocar, no mesmo plano, o
morro e o museu.
Com isso, desaba o conceito
tradicional renascentista de arte dominante há quase cinco
séculos. Essa, entre outras proposições, invoca como fundamento a experiência do "participador".
Mais do que um objeto a ser
fetichizado como bem de consumo pelo mercado ou estagnado na assepsia das exposições de arte tradicionais, são
projetos que exigem, entre outras coisas, uma reconfiguração
das práticas museológicas tradicionais -como a documentação, a preservação e a exibição
da arte contemporânea.
FOLHA - Como a sra. avalia a política de preservação de acervos de arte
no país, hoje?
FREIRE - Da ditadura ao neoliberalismo, a ideia de preservação com que se opera nas instâncias públicas me parece bastante complicada e contraditória, não apenas no Brasil, mas
também em muitos países da
América Latina.
Seduzidos pelos artifícios do
espetáculo, os recursos escapam das necessidades "invisíveis" de preservação.
Afinal, manter um acervo
não dá o "retorno" de uma visibilidade instantânea e glamourizada que as megaexposições e
badaladas feiras de arte internacionais oferecem. Assim, em
muitos museus públicos brasileiros, goteiras se resolvem
com baldes...
É urgente e necessário que se
desenhe uma política pública
mais consistente para o acesso
às obras, documentos e arquivos de artistas.
Desaparecidos pelo fogo, privatizados ou vendidos para o
exterior, o fato é que as obras de
arte e arquivos de artistas são
testemunhos materiais de uma
memória coletiva na qual estamos todos implicados.
Boa parte da memória da arte
contemporânea no Brasil está
nas mãos dos próprios artistas
e de seus familiares.
FOLHA - Por que a ideia de manter
acervos de artistas é tão pouco valorizada pelos museus brasileiros?
FREIRE - A preservação de obras
é função do museu e a precariedade e a falta de recursos é uma
constante...
FOLHA - Por que museus como o
MAC (Museu de Arte Contemporânea da USP) mantêm parte significativa dos seus acervos na reserva
técnica, longe dos olhos do público?
FREIRE - De fato, falta espaço físico apropriado para que essa
importantíssima coleção pública possa ser mais generosamente exibida.
Creio que vivemos uma situação paradoxal no Brasil.
Projetam-se edifícios novos e
espetaculares para museus
sem acervo e procura-se adaptar acervos importantes em
edifícios construídos com outra finalidade.
Entendo que a visibilidade de
um museu universitário e, por
conseguinte, de seu acervo passa pela sua potência na produção de conhecimento. Esse é
um sentido que amplia o alcance e significado de preservação .
Ou seja, preservar é dar inteligibilidade para que o acesso às
obras seja a base de uma verdadeira compreensão de seu valor
simbólico e cultural.
Penso que a apropriação social do patrimônio é um recurso indelével diante das intempéries políticas, sociais e econômicas.
FOLHA - A sra. acredita que a destruição pelo fogo de obras deixadas
por Oiticica possa modificar a atual
política brasileira de preservação
dos acervos de arte?
FREIRE - Não se deve desprezar
impunemente esse episódio,
mas, sim, buscar uma relação
de efetiva colaboração entre os
poderes públicos, instituições
museológicas e sociedade civil
para garantir, desde já, o acesso
ao nosso patrimônio mais fecundo às futuras gerações.
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