São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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Badalação zero

De apelo fácil, megaexposições e feiras internacionais de arte acabam atraindo mais recursos e deixam à míngua criação e preservação de acervos

EUCLIDES SANTOS MENDES
DA REDAÇÃO

Um incêndio no Rio de Janeiro destruiu grande parte do acervo deixado por Hélio Oiticica (1937-80), um dos nomes mais importantes da arte brasileira no século 20.
As obras estavam na casa de César Oiticica, irmão do artista. O fogo, que começou por volta das 23h do dia 16/10, consumiu parangolés, bólides e bilaterais -destaques da produção de Oiticica.
Na casa também havia pinturas, desenhos e toda a obra que concebeu nos anos 1960.
Para a professora e curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP Cristina Freire, a perda de acervo tão significativo revela a precariedade da política de preservação da arte no Brasil.
Em entrevista à Folha, ela critica o modo como os acervos de artistas estão relegados a segundo plano, muitas vezes em nome do espetáculo e da visibilidade das megaexposições e das badaladas feiras de arte.

 

FOLHA - Qual é o impacto, para a arte brasileira, da destruição de parte do acervo deixado por Oiticica?
CRISTINA FREIRE
- O impacto é imenso, uma verdadeira catástrofe, como avaliou Ferreira Gullar, pois a contribuição desse artista à arte brasileira e internacional é indiscutível. O incêndio torna visível a crise que embasa o sistema da arte no país. Revela a precariedade das relações entre interesses privados e públicos e a fragilidade das instituições em vários níveis.
O pensamento e trabalhos de Hélio Oiticica são paradigmáticos para uma mudança no que se convencionou entender como "obra de arte", assim como para o papel do espectador, que ele chamava de "participador".
O "Programa Ambiental" delineado a partir de sua experiência no morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, foi um eixo de suas proposições.
Seus parangolés, por exemplo, demarcaram um território poético-político ao articular arte, música, dança e arquitetura e colocar, no mesmo plano, o morro e o museu.
Com isso, desaba o conceito tradicional renascentista de arte dominante há quase cinco séculos. Essa, entre outras proposições, invoca como fundamento a experiência do "participador".
Mais do que um objeto a ser fetichizado como bem de consumo pelo mercado ou estagnado na assepsia das exposições de arte tradicionais, são projetos que exigem, entre outras coisas, uma reconfiguração das práticas museológicas tradicionais -como a documentação, a preservação e a exibição da arte contemporânea.

FOLHA - Como a sra. avalia a política de preservação de acervos de arte no país, hoje?
FREIRE
- Da ditadura ao neoliberalismo, a ideia de preservação com que se opera nas instâncias públicas me parece bastante complicada e contraditória, não apenas no Brasil, mas também em muitos países da América Latina.
Seduzidos pelos artifícios do espetáculo, os recursos escapam das necessidades "invisíveis" de preservação.
Afinal, manter um acervo não dá o "retorno" de uma visibilidade instantânea e glamourizada que as megaexposições e badaladas feiras de arte internacionais oferecem. Assim, em muitos museus públicos brasileiros, goteiras se resolvem com baldes...
É urgente e necessário que se desenhe uma política pública mais consistente para o acesso às obras, documentos e arquivos de artistas. Desaparecidos pelo fogo, privatizados ou vendidos para o exterior, o fato é que as obras de arte e arquivos de artistas são testemunhos materiais de uma memória coletiva na qual estamos todos implicados.
Boa parte da memória da arte contemporânea no Brasil está nas mãos dos próprios artistas e de seus familiares.

FOLHA - Por que a ideia de manter acervos de artistas é tão pouco valorizada pelos museus brasileiros?
FREIRE
- A preservação de obras é função do museu e a precariedade e a falta de recursos é uma constante...

FOLHA - Por que museus como o MAC (Museu de Arte Contemporânea da USP) mantêm parte significativa dos seus acervos na reserva técnica, longe dos olhos do público?
FREIRE
- De fato, falta espaço físico apropriado para que essa importantíssima coleção pública possa ser mais generosamente exibida. Creio que vivemos uma situação paradoxal no Brasil. Projetam-se edifícios novos e espetaculares para museus sem acervo e procura-se adaptar acervos importantes em edifícios construídos com outra finalidade.
Entendo que a visibilidade de um museu universitário e, por conseguinte, de seu acervo passa pela sua potência na produção de conhecimento. Esse é um sentido que amplia o alcance e significado de preservação .
Ou seja, preservar é dar inteligibilidade para que o acesso às obras seja a base de uma verdadeira compreensão de seu valor simbólico e cultural.
Penso que a apropriação social do patrimônio é um recurso indelével diante das intempéries políticas, sociais e econômicas.

FOLHA - A sra. acredita que a destruição pelo fogo de obras deixadas por Oiticica possa modificar a atual política brasileira de preservação dos acervos de arte?
FREIRE
- Não se deve desprezar impunemente esse episódio, mas, sim, buscar uma relação de efetiva colaboração entre os poderes públicos, instituições museológicas e sociedade civil para garantir, desde já, o acesso ao nosso patrimônio mais fecundo às futuras gerações.


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