São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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+(m)emória

A cara do mal


Morto há cem anos, o italiano Cesare Lombroso criou a teoria do criminoso nato


MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

O dia 19 de outubro passado assinalou o centenário de morte de uma das mais importantes figuras da modernidade, aquele que é considerado o pai da criminologia como ciência: o italiano Cesare Lombroso.
Nascido em 1835 em uma abastada família judaica de Verona, Lombroso formou-se em medicina na Universidade de Pavia.
À sua formação médica associou-se a influência do positivismo de Auguste Comte (1798-1857), então no auge, uma corrente de pensamento que valorizava a ciência em detrimento da religião ou da metafísica. Desde cedo, Lombroso interessou-se pelo problema da doença mental.
Apesar dos avanços científicos registrados no século 19, a psiquiatria estava ainda numa fase rudimentar, dominada pela obsessão classificatória e pelo alienismo que Machado de Assis retrata tão bem no conto "O Alienista".
Na ausência de medicamentos eficazes e de tratamentos como a psicanálise, a intervenção médica se resumia ao hospício, que não era muito diferente de uma prisão e que não melhorou muito mesmo depois de Philippe Pinel (1745-1826), na França revolucionária, ter determinado que os pacientes não podiam ser acorrentados.
Lombroso, que lecionou na Universidade de Turim, também dirigiu instituições psiquiátricas.
Na linha da frenologia do médico austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828) e da fisiognomia do pastor e filósofo suíço Johann Kaspar Lavater (1741-1801) -que procuravam deduzir características psicológicas a partir da conformação do crânio e dos traços faciais- e baseado nos seus próprios e exaustivos estudos de delinquentes vivos ou mortos, Lombroso formulou a famosa teoria do criminoso nato.
Neste, diz, reaparecem características atávicas, hereditárias -os estigmas, que permitiriam identificar uma disposição para o crime, por meio de características morfológicas: maxilar grande e prognata, testa pequena, zigomas salientes, prognatismo, nariz adunco, lábios grossos, barba escassa, calvície, braços longos, mãos grandes, anomalias dos órgãos sexuais, orelhas grandes e separadas, polidactia.
A isso se acrescentaria insensibilidade à dor, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo. A epilepsia também estaria associada ao crime.

Seguidores no Brasil
Essas ideias foram expostas em sua obra mais conhecida, "O Homem Delinquente" [1876; publicado no Brasil pela ed. Ícone], e tiveram enorme repercussão, tanto nos meios médicos e jurídicos, como entre a intelectualidade em geral.
Surgiu daí um campo de estudos que se tornou conhecido como antropologia criminal.
Lombroso teve seguidores no Brasil, entre eles o filósofo e jurista Tobias Barreto (1839-1889) e o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), catedrático de medicina legal na Faculdade de Medicina da Bahia.
Nina Rodrigues integrava uma corrente médico-antropológica fortemente influenciada pelas ideias de Joseph Arthur, conde de Gobineau (1816-1882), que veio para o Rio de Janeiro em 1869 como chefe da missão francesa. Gobineau interessou-se pela mestiçagem no Brasil.
Considerado hoje um dos precursores do racismo nazista, achava que a mistura de raças acabaria levando à pura e simples extinção da população brasileira.
Do ponto de vista médico, a miscigenação resultaria inevitavelmente em desequilíbrio mental e degenerescência (conceito do psiquiatra francês Bénédict Morel, 1809-1873), esta manifesta inclusive na doença mental, sobretudo naquilo que se conhecia então como "neurastenia", a "fraqueza dos nervos", conceito popularizado nos EUA pelo famoso médico George M. Beard. Em "Os Sertões", Euclydes da Cunha fala nos "mestiços neurastênicos", conceito ao menos em parte neutralizado pelo famoso trecho que começa com "o sertanejo é, antes de tudo, um forte".
A propósito, a Nina Rodrigues coube estudar o crânio decapitado de Antonio Conselheiro. Lombroso também influenciou intelectuais de peso, como [os escritores] Émile Zola e Anatole France.
Um dado curioso em sua trajetória é o de que, depois de ter atacado o espiritismo, passou a defendê-lo.
As ideias de Lombroso, que inevitavelmente podiam ser colocadas a serviço do preconceito, hoje são consideradas ultrapassadas. Isso não diminui o valor de seu trabalho. Ele procurou dar bases científicas à psiquiatria e à criminologia, e esse é um caminho inteiramente válido.
Compreender a mente, inclusive a mente do criminoso, é um objetivo que permanece como um desafio para o nosso mundo, no qual a violência é um fenômeno habitual.


MOACYR SCLIAR é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

moacyr.scliar@uol.com.br


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