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+(m)emória
A cara do mal
Morto há cem anos, o italiano Cesare Lombroso criou a teoria do criminoso nato
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MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
O dia 19 de outubro
passado assinalou
o centenário de
morte de uma das
mais importantes
figuras da modernidade, aquele
que é considerado o pai da criminologia como ciência: o italiano Cesare Lombroso.
Nascido em 1835 em uma
abastada família judaica de Verona, Lombroso formou-se em
medicina na Universidade de
Pavia.
À sua formação médica associou-se a influência do positivismo de Auguste Comte
(1798-1857), então no auge,
uma corrente de pensamento
que valorizava a ciência em detrimento da religião ou da metafísica.
Desde cedo, Lombroso interessou-se pelo problema da
doença mental.
Apesar dos avanços científicos registrados no século 19, a
psiquiatria estava ainda numa
fase rudimentar, dominada pela obsessão classificatória e pelo alienismo que Machado de
Assis retrata tão bem no conto
"O Alienista".
Na ausência de medicamentos eficazes e de tratamentos
como a psicanálise, a intervenção médica se resumia ao hospício, que não era muito diferente de uma prisão e que não
melhorou muito mesmo depois de Philippe Pinel (1745-1826), na França revolucionária, ter determinado que os pacientes não podiam ser acorrentados.
Lombroso, que lecionou na
Universidade de Turim, também dirigiu instituições psiquiátricas.
Na linha da frenologia do
médico austríaco Franz Joseph
Gall (1758-1828) e da fisiognomia do pastor e filósofo suíço
Johann Kaspar Lavater (1741-1801) -que procuravam deduzir características psicológicas
a partir da conformação do crânio e dos traços faciais- e baseado nos seus próprios e
exaustivos estudos de delinquentes vivos ou mortos, Lombroso formulou a famosa teoria
do criminoso nato.
Neste, diz, reaparecem características atávicas, hereditárias -os estigmas, que permitiriam identificar uma disposição para o crime, por meio de
características morfológicas:
maxilar grande e prognata, testa pequena, zigomas salientes,
prognatismo, nariz adunco, lábios grossos, barba escassa, calvície, braços longos, mãos
grandes, anomalias dos órgãos
sexuais, orelhas grandes e separadas, polidactia.
A isso se acrescentaria insensibilidade à dor, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso
moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo. A epilepsia
também estaria associada ao
crime.
Seguidores no Brasil
Essas ideias foram expostas
em sua obra mais conhecida,
"O Homem Delinquente"
[1876; publicado no Brasil pela
ed. Ícone], e tiveram enorme
repercussão, tanto nos meios
médicos e jurídicos, como entre a intelectualidade em geral.
Surgiu daí um campo de estudos que se tornou conhecido
como antropologia criminal.
Lombroso teve seguidores
no Brasil, entre eles o filósofo e
jurista Tobias Barreto (1839-1889) e o médico baiano Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), catedrático de medicina
legal na Faculdade de Medicina
da Bahia.
Nina Rodrigues integrava
uma corrente médico-antropológica fortemente influenciada
pelas ideias de Joseph Arthur,
conde de Gobineau (1816-1882), que veio para o Rio de Janeiro em 1869 como chefe da
missão francesa. Gobineau interessou-se pela mestiçagem
no Brasil.
Considerado hoje um dos
precursores do racismo nazista, achava que a mistura de raças acabaria levando à pura e
simples extinção da população
brasileira.
Do ponto de vista médico, a
miscigenação resultaria inevitavelmente em desequilíbrio
mental e degenerescência
(conceito do psiquiatra francês
Bénédict Morel, 1809-1873),
esta manifesta inclusive na
doença mental, sobretudo naquilo que se conhecia então como "neurastenia", a "fraqueza
dos nervos", conceito popularizado nos EUA pelo famoso médico George M. Beard.
Em "Os Sertões", Euclydes
da Cunha fala nos "mestiços
neurastênicos", conceito ao
menos em parte neutralizado
pelo famoso trecho que começa
com "o sertanejo é, antes de tudo, um forte".
A propósito, a Nina Rodrigues coube estudar o crânio decapitado de Antonio Conselheiro. Lombroso também influenciou intelectuais de peso,
como [os escritores] Émile Zola
e Anatole France.
Um dado curioso em sua trajetória é o de que, depois de ter
atacado o espiritismo, passou a
defendê-lo.
As ideias de Lombroso, que
inevitavelmente podiam ser
colocadas a serviço do preconceito, hoje são consideradas ultrapassadas. Isso não diminui o
valor de seu trabalho. Ele procurou dar bases científicas à
psiquiatria e à criminologia, e
esse é um caminho inteiramente válido.
Compreender a mente, inclusive a mente do criminoso, é
um objetivo que permanece como um desafio para o nosso
mundo, no qual a violência é
um fenômeno habitual.
MOACYR SCLIAR é médico, escritor e membro
da Academia Brasileira de Letras.
moacyr.scliar@uol.com.br
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