São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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PARTE 2

As outras três pessoas de luto que seguiam o funeral do velho Barnet eram o irmão de quem o rapaz falara e seus dois filhos. Terminado o funeral, esse irmão, comerciante em Torquay e homem agarrado ao dinheiro, falou com Maurice nos seguintes termos: "Parece que você era mantido pelo meu irmão e vivia lá na cabana; bem, você sabe que, conforme a lei, e visto que meu irmão morreu sem deixar herdeiro, tudo o que ele possuía, cabana e mobília, barco e redes, passa para mim. Mesmo que não fossem, você é jovem demais para seguir o ofício, de modo que não há razão para que continue na cabana. Os vizinhos dizem que você é um garoto honesto e por isso não quero ser duro com você: fique na cabana por mais uma semana e trate de procurar algum outro lugar; depois disso, um amigo e seus três filhos mudam-se para lá: compraram o barco e vão continuar pescando. Não precisam de um criado, então você terá que se mudar. Você é honesto e por isso nem preciso dizer que nada na cabana pertence a você e que você não deve tirar nada de lá".
Maurice agradeceu ao irmão de seu velho amigo por permitir-lhe ficar mais uma semana na cabana; tinha a intenção de pedir seus conselhos sobre o que fazer, mas havia algo de tão seco e proibitivo em suas maneiras que ele não conseguiu se decidir a falar; voltou à cabana pela praia, caminhando tristemente. Quando chegou, ela lhe pareceu tão desolada e estranha que não teve ânimo de entrar; sentou-se ao lado do córrego de água doce e ficou observando as ondas do mar que vinham quebrar a seus pés. Pela primeira vez em muitos meses, não tinha nada para fazer: não adiantava costurar as redes, se o seu velho protetor não poderia mais usá-las, nem preparar o café, agora que sentia o coração oprimido demais para ter apetite. Chorou a perda do velho Barnet até que se cansou e então viu o pôr-do-sol no mar azul, imaginando que talvez Barnet não estivesse morto, mas sim pescando lá longe, e que dava para ver sua vela branca em meio do mar azul. Mas bastou se virar e dar com o barco vazio sob o abrigo e teve certeza de que seu único amigo estava morto, de que estava sozinho no mundo. Por fim, exausto de tristeza e sentindo frio com a brisa noturna que soprava e agitava o mar com espuma, levantou-se, abriu a porta da cabana e, sem preparar jantar ou acender uma vela, ajoelhou-se, fez suas orações e foi dormir.
Assim passaram vários dias, até que por fim ele percebeu que não poderia mais levar essa vida ociosa. A semana já ia quase acabando, ele teria que deixar a cabana e então o que faria para ganhar seu próprio pão? Pensou algumas vezes em voltar para seus pais, mas logo resolveu não o fazer; resolveu enfim procurar o fazendeiro Benson, pai do rapaz que contara a história ao viajante em Torquay. Uma vez decidido a tanto, sentou-se na pedra de costume, ao lado do regato, e ficou olhando para o oceano sem ondas e o céu crepuscular, onde a estrela vésper brilhava à luz dourada que o Sol deixara para trás: o vento estava calmo, e a maré vazante mal rompia o silêncio, enquanto algumas gaivotas voavam sobre sua cabeça para seus ninhos falésia acima. Maurice ouviu um passo às suas costas; virou-se e viu aproximar-se um homem bonito, de ar bondoso -o viajante que descrevi no começo desta história. O garoto ficou muito surpreso, pois nunca um forasteiro visitara a cabana, que ficava a duas milhas de qualquer estrada; levantou-se com a boa índole de sempre, perguntou-lhe se perdera o rumo e ofereceu-se para guiá-lo até a cidade mais próxima.
"Não perdi o rumo", disse o viajante, "vim até esta cabana de propósito. Tenho boas razões para querer vê-la e ficaria muito grato se você me pudesse abrigar por uma noite". "Seja bem-vindo; a cabana é pobre, mas a cama é limpa e talvez lhe agrade." "Viajei muito, meu bom garoto, para não me contentar com pouco. Mas não se levante; por enquanto podemos desfrutar da noitinha aqui à beira-mar, vendo as ondas que deixam tão lisa a areia da praia. A cabana foi construída num belo lugar." "Também acho; feitas as contas e, apesar de muito pobre e velha, não creio que haja outra tão bonita em toda a região. As árvores que a recobrem e abrigam, as flores que crescem ao longo do córrego que desce pela falésia avermelhada... E para mim nada é mais bonito que o líquen e o musgo amarelo, verde, branco e azul que cresce sobre o teto de colmo; nenhum telhado poderia ficar tão bonito. Na primavera, as trepadeiras amarelas crescem ali, e o gramado em frente à porta cobre-se de margaridas. Além disso, se o senhor der uma olhada do outro lado da cabana, vai ver uma bela treliça tomada de madressilvas e muitos gerânios na prateleira embaixo da janela. Os gerânios eram os favoritos da mulher do velho Barnet, e ele gostava deles por causa dela. Mas o "seu' Gregory Barnet disse que eu não posso levar nada da cabana, e eu sei bem disso; mas, se Benson me der emprego, vou gastar os dois "shillings' que tenho comprando os gerânios, quer dizer, se o novo morador quiser fazer a gentileza de vendê-lo para mim." "Então você está pensando em sair daqui?" "Tenho que sair. Não sou forte o bastante para manejar o barco e sair para o mar, por isso ela foi alugada para algum pescador; parto no próximo domingo; mas espero encontrar emprego aqui por perto e não acho que ficarei triste: poucas vezes chorei por meus infortúnios, mesmo quando fui muito maltratado. Eu gostava do velho Barnet e da minha vida aqui e chorei muito quando ele morreu, mas, se puder achar emprego em alguma fazenda, espero que em um mês ou dois estarei cantando com a mesma alegria, como quando reconhecia a vela branca do Barnet entre os outros barcos no mar."
Maurice não disse tudo isso de um fôlego só; mas o forasteiro sorria tão gentilmente e fazia tantas perguntas de modo tão amável que o garoto foi facilmente induzido a abrir seu coração e falar de todos seus problemas como a um velho amigo. "Não voltarei para os meus pais", disse, "pois saí de casa determinado a só revê-los quando pudesse ganhar meu próprio pão. Meu pai trabalha duro, os salários andam baixos; como ele mal conseguia ganhar para comer, ficava furioso de ter que sustentar um garoto desocupado; e minha mãe já tem problemas de sobra com ele para se ocupar dos meus infortúnios. Infelizmente, minha saúde é delicada e eu não conseguia trabalhar como ele queria; minhas febres já me deixaram de cama várias vezes. Meu pai não acreditava que eu estivesse doente mesmo, batia em mim e me mandava dormir sem jantar, mesmo quando eu mal me aguentava em pé. Não quero me queixar dele, apesar de ter contado tudo isso ao senhor, que é tão gentil; mas, por favor, não conte nada a ninguém".
Conversaram assim até que a estrela vésper sumiu e o mar desapareceu na escuridão, exceto pelas cristas brancas das ondas que vinham quebrar ali perto: pois a maré vinha subindo e a rocha onde os dois estavam sentados começou a ser borrifada pela espuma. Foram para a cabana e, depois de jantar pão e salada, foram logo dormir, o viajante dizendo ao garoto que ficaria para o café e o almoço no dia seguinte.
Maurice acordou antes de o Sol nascer e, deixando seu hóspede dormir profundamente, correu tão rápido quanto pode até Torquay para comprar um pouco de pão branco, batatas e carne para o café e o almoço. Foi obrigado a gastar com os mantimentos os dois "shillings" que usaria para comprar seus queridos gerânios e isso o deixou um pouco triste. Mas era um garoto alegre e vivaz e consolou-se pensando que trabalharia em dobro para juntar o dinheiro antes da primavera e pediria ao novo habitante da cabana que tomasse contas das plantinhas nesse meio tempo.
Quando voltou à cabana, encontrou o viajante sentado na rocha da praia; cumprimentaram-se gentilmente, e Maurice, a um pedido de seu hóspede, trouxe a mesa até a areia e serviu o café ao ar livre, pois era uma bela manhã, morna e sem uma nuvem no céu. O café foi simples e rústico, consistindo de pão, um pedaço de queijo e uma tigela daquela coalhada que se prepara em Devonshire; e nossos dois amigos comeram com tanto gosto do que havia que muito pouco restou. Sentaram-se sobre a rocha, falando do prazer de viver no campo, de ver as flores crescendo nas sebes e nos relvados; da beleza dos passarinhos e da crueldade de quem os mata; de como seria doce viver cuidando de uma pequena fazenda, sem trabalhar muito, apenas o suficiente para ter saúde e vigor; e do prazer de passar as noites lendo livros interessantes, que falam sobre o cultivo da terra e seus vários frutos, sobre o mar e as viagens e descobertas que se fizeram, sobre os céus e o movimento das belas estrelas, marcando o verão e o inverno. O viajante contou a Maurice que havia livros ainda mais agradáveis do que esses, que contavam dos feitos de homens bons e sábios havia muitos anos: como alguns deles haviam morrido para salvar seus semelhantes e como, pelos esforços desses homens, todos haviam-se tornado melhores, mais sábios e mais felizes. Maurice contou então que nunca lera outro livro desse tipo além da Bíblia e que muitas vezes chorara com o sofrimento de José ao ser vendido como escravo ou com a tristeza de Davi quando seu filho Absalom revolta-se contra ele.
Por fim, depois de uma pausa, o viajante disse: "Você fala, meu caro Maurice, de procurar emprego com esse Benson; mas o que você diz de vir morar comigo? Não te daria tarefas pesadas e te daria livros assim para ler e faria tudo para torná-lo feliz". Maurice viu que o forasteiro sorria com benevolência. "Como o senhor é bondoso!", respondeu. "Serei bondoso com você", disse o hóspede, "mas sou um forasteiro, e você deve estar com medo de partir com alguém que nunca viu antes. Já é tarde agora, conversamos muito, então vamos entrar e preparar nosso almoço; mais tarde voltamos para cá e eu lhe contarei quem sou, por que estou viajando a pé pela região, quais foram as minhas decepções, e quais são minhas esperanças".
Foi o que fizeram. Acenderam um bom fogo e puseram a carne e as batatas para cozinhar. Maurice encheu uma jarra com água do córrego e o viajante tirou uma garrafinha de bom vinho do seu embornal. Pelo meio-dia, o almoço estava pronto; quando terminaram, voltaram à rocha e o viajante começou seu relato.



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