São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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PARTE 3

"Sou filho de um professor de matemática na Universidade de Oxford; meu pai não era rico, mas deu-me excelente educação, e eu era extremamente dedicado e estudioso. Tanto quanto me lembro, nunca saía sem um livro no bolso e adorava fazer longos passeios solitários, para então sentar-me e ler por horas a fio à sombra das árvores ou à beira do rio, mas não caía no sono, embalado pelo murmúrio da água, como um desocupado qualquer: estudava e refletia com afinco e curiosidade. Tudo ao redor parecia maravilhoso aos meus olhos, e eu queria saber por que o rio sempre corria e nunca secava, o que regia o Sol em seu curso pelos céus e por que a lua passava de um disco cheio e amarelo a um mero crescente prateado. Havia ainda outra coisa que me deliciava ao extremo: examinar três grossos volumes com gravuras de templos antigos na biblioteca de meu pai. Passava dias inteiros olhando essas gravuras, lendo a respeito de suas dimensões e sua construção; pois eu julgava que seria a criatura mais feliz do mundo se algum dia pudesse construir edifícios tão belos como os que via representados naqueles livros. Conforme crescia, passei a gostar mais e mais de arquitetura e, como não se conquista o conhecimento sem aplicação, eu passava todo meu tempo estudando matemática e outras ciências que nos ensinam como erigir edifícios semelhantes aos dos antigos. Quando completei 25 anos, meu pai mandou-me numa viagem pela Ásia, Grécia e Itália, a fim de visitar os resquícios dos templos antigos, e passei cinco anos nessa vida feliz, vivendo entre nações estrangeiras, muitas vezes em lugares desertos, onde as pessoas não vivem de semear e colher grãos e cuidar do gado, como aqui, mas dependem da caça para viver, abandonando suas aldeias nativas por meses seguidos em busca de presas, vivendo de modo silvestre entre florestas e montanhas, enquanto suas mulheres e filhas ficam em casa fiando suas próprias roupas, sentadas ao ar livre, lá onde o inverno é tão suave que não há geada ou neve.
Quando retornei à Inglaterra, dediquei-me ao trabalho; como era bom arquiteto, logo enriqueci. Quando julguei que tinha dinheiro suficiente, larguei os negócios e me dediquei aos afazeres campestres e a todo tipo de estudo, o que me parecia melhor que construir igrejas e pontes para gente com pouco dinheiro ou gosto, que não me permitiam construir à maneira que eu desejava.
Por essa época, casei-me com uma mulher que você logo conhecerá, meu caro Maurice, e então você verá como ela é sábia e bondosa. Pouco depois do casamento, tivemos um garotinho por quem éramos cegamente apaixonados. Toda nossa alegria estava em ver essa criaturinha, tão bonita e boazinha quanto se possa imaginar. Quando completou dois anos de idade, fizemos uma viagem de verão e ficamos por um mês em Ilfracombe, um porto a mais de 50 milhas daqui, onde aconteceu uma tragédia que até hoje nos tira a alegria. Isso tudo foi há 11 anos, mas não consigo pensar nesse tempo sem me entristecer.
Costumávamos sair para passear, minha mulher, eu, e uma criada com a criança; quando chegávamos a um lugar bonito, costumávamos deixar a babá e a criança na carruagem enquanto fazíamos longas caminhadas pelo campo. Certo dia, fomos todos até as margens de um belo riacho; dizendo à babá que nos esperasse ali, caminhamos por várias milhas, desfrutando do tempo agradável, ouvindo o canto dos passarinhos nos olmos que beiravam o riacho e observando os pequenos insetos de asas púrpuras, verdes e douradas que voavam sobre as águas.
Quando retornamos, fomos tomados de pavor ao encontrar a babá adormecida sobre um monte de palha, sem nenhuma criança à vista. Despertamos a mulher, que empalideceu e começou a tremer de medo quando percebeu que o bebê sumira; ele adormecera em seus braços, e ela, sem cogitar no perigo e embalada pelo sol, acabara por cair no sono também. A primeira coisa que fizemos foi correr ao longo do riacho, mas não tentarei descrever a angústia que sentimos durante essa busca. Não encontramos nosso filho, nem vimos rastro algum próximo à água; mas encontramos um de seus sapatinhos num campo a cerca de uma milha do riacho, o que nos fez pensar que o haviam raptado. Passamos vários meses em buscas por toda a região, mas em vão, não descobrimos nada sobre o paradeiro do nosso bebê querido.
Da minha parte, jamais abandonei a esperança de reencontrá-lo algum dia, pois sempre tive certeza de que não se afogara. Assim, passo dois meses por ano em Devonshire, percorrendo todo o condado à sua procura. Visto-me de modo humilde para poder entrar nas cabanas com maior liberdade e interrogar a gente do campo de modo mais discreto; caminho de aldeia em aldeia e jamais passo por uma cabana solitária sem observar as crianças e fazer perguntas a respeito delas.
Há uns 15 dias, passei por uma cabana a cerca de cinco milhas de Ilfracombe, à porta da qual estava uma mulher que chorava e retorcia as mãos. Parei e perguntei o que havia, e ela me disse que o marido morrera dois dias antes e que seu único filho estava fora de casa havia um ano e meio e que ela não sabia o que era feito dele. Tentei consolá-la e contei-lhe que também eu era infeliz e que perdera meu filho quando ainda era bebê e que não o encontrara nunca mais. Então contei-lhe minha tragédia e fiquei muito surpreso ao notá-la ainda mais triste que antes; e, quando descrevi para ela toda a angústia de minha mulher, ela exclamou: "Sou eu a causa de tudo isso! Sou eu a mulher malvada que roubou seu filho!'. Espantei-me ao ouvir isso e, assim que recobrei a fala, perguntei-lhe o que era feito do meu pobre filhinho. Ela começou a chorar de novo e disse que era por ele que ela se lamentava quando me contou que não via o filho havia quase dois anos. Chorou tanto e pareceu tão triste que fui obrigado a gastar quase uma hora para acalmá-la, e só então ela me contou tudo o que acontecera.
Seu marido era marinheiro; haviam vivido muitos anos juntos, mas não tinham filhos. Ele era um homem mau, batia nela e culpava-a por não terem filhos, o que a deixava muito infeliz; achava que seria perfeitamente feliz se os céus a abençoassem com um filho. Por fim, quando o marido partiu para uma longa viagem, ela escreveu-lhe um mês depois da partida para contar-lhe que esperava uma criança. Ele ficou fora por muito tempo, e ela continuou a escrever e a contar mentiras, sobre como a criança nascera e como crescia; tola que era, fazia tudo isso sem pensar nas consequências ou no que diria o marido quando voltasse e não encontrasse criança alguma. Ele estava a bordo de um navio militar e, ao ser ferido durante uma batalha e ficar fora de ação por muito tempo, escreveu à mulher (que nessa época vivia em Londres), para dizer-lhe que voltasse para Ilfracombe, pois estava abandonando a marinha para viver ali o resto de seus dias.
Ela retornou com dor no coração, sem saber o que diria sobre a suposta criança; sem querer se alojar com os parentes dele, que esperavam ver um belo e robusto garoto de uns dois anos de idade, ela arranjou um cômodo numa vila a algumas milhas de distância, onde vivia com nome falso. Passou dois meses nesse estado de aflição, andando pelos campos e incapaz de decidir o que fazer, quando, certo dia, para nossa infelicidade, ela resolveu caminhar para os lados de Ilfracombe para descobrir se o marido já chegara; no meio do caminho, deu com nosso pobre filhinho adormecido nos braços da babá descuidada.
Uma maldade puxa outra; e ela, que enganara o marido, mentira por dois anos e se acostumara ao sentimento de erro e culpa, agora decidiu-se a raptar a criança, sem pensar na infelicidade que causaria aos pais. Tirou-a gentilmente dos braços da babá e correu com ela pelos campos na direção da vila em que vivera nos dois últimos meses. Quando estava se aproximando, escondeu a criança em meio à palha de um celeiro e correu tão rápido quanto pôde. Pagou pelo cômodo, juntou sua trouxa de roupas, voltou para junto da criança e escondeu-se no celeiro pelo resto do dia. Partiu naquela noite. Resolveu ir a Plymouth esperar o marido, cujo navio devia aportar ali, e assim abandonar a região em torno a Ilfracombe até que o furto fosse esquecido. Caminhava de dia e escondia-se de noite com medo de ser descoberta. Queimou as belas roupinhas da criança e fez-lhe outra com seus próprios trapos, guardando apenas uma gargantilha de coral, em cuja fivela estava gravado o nome de batismo da criança, além do sapatinho que sobrara, aquele cujo par nós encontramos nos campos vizinhos e que conservamos desde então com grande carinho. Viveu seis meses em Plymouth até que seu marido chegasse, e então foram instalar-se na cabana onde a conheci. A mulher logo amou a criança como se fosse um filho seu e prestou-lhe todo tipo de cuidados, acolhendo-o e criando-o com a ternura de uma mãe.
Mas quem faz o que não deve logo vê que nada de bom lhes vem dos crimes que cometem. Nosso pobre filhinho fora acostumado a uma alimentação delicada e a muitos cuidados; e, fosse porque agora não o alimentavam bem, fosse porque não lhe davam atenção (não por rudeza, mas porque ela não tinha tempo para prestar à criança os cuidados a que estava acostumada), o fato é que nosso pequeno Henry logo se tornou enfermiço e delicado e perdeu as belas cores que a haviam tentado ao rapto. O marido, que era um homem mau e antes reclamava por não ter um filho, agora enfezara-se de vez, dizendo que o moleque enfermiço não daria para nada e que não via para quê mantê-lo com o suor de seu rosto quando o outro não seria capaz de fazer o mesmo quando ele envelhecesse.
A mulher então me disse: "Tenho sido tão infeliz quanto malvada: pois não apenas me arrependo de ter arrancado o bebê a seus pais, como também percebia que meu marido, mais grosseiro a cada dia, não só não amava, mas simplesmente não suportava a pobre criança. Além disso, o pobrezinho perdera a saúde e, por mais que fosse a melhor criatura do mundo, a mais vivaz e inteligente, não era capaz de trabalho pesado, sempre tinha febres e outras doenças, que faziam meu marido resmungar contra o médico. Então, eu me sentava à sua cabeceira, pensando que, se seus pais ricos ainda o tivessem, ele não ficaria assim abandonado numa cama.
"Conforme ele crescia, meu marido ficava mais e mais grosseiro e às vezes espancava-o por não poder trabalhar e tratava-o tão mal que não ouso nem contar ao senhor; certo dia, Henry (eu o chamava assim, porque adivinhara por suas poucas palavras que era assim que o chamavam os pais) veio ter comigo e contou-me que Jackson prometera-lhe emprego na fazenda, e que ele estava decidido a tentar ganhar a vida sozinho. Chorei amargamente, mas não pude demovê-lo, muito embora fosse capaz de dar tudo o que tinha para saber quem eram os pais, para assim devolver-lhes o filho. Dei-lhe minha benção, ele partiu e nunca mais ouvi falar dele!'
Não vou cansá-lo, meu amiguinho, com o relato de minhas caminhadas e angústias nestes últimos 15 dias: andei por todo Devonshire tentando rastrear meu filho perdido; meus esforços foram em vão. Agora quero ver de novo a senhora Smithson para saber se ele voltou para ela. Esta é minha história; você consente em vir morar comigo? Se eu nunca mais encontrar meu garotinho, você será como um filho para mim e, se eu encontrá-lo...".
Maurice escutara o relato com muita atenção; no final, seus olhos estavam marejados de lágrimas e ele dava mostras de interesse e impaciência; mas, quando o viajante pronunciou estas últimas palavras, Maurice lançou-se em seus braços e soluçou: "Sou eu o seu filho! Daddy Smithson não é meu pai! Eu sou o seu filho perdido!". E ele então contou como ele sempre considerara a senhora Smithson como sua mãe, como ela sempre fora amável e gentil com ele; e como era maltratado pelo marido, até que se decidira a não voltar para casa enquanto não pudesse ganhar seu próprio pão. Disse que assumira o nome de Maurice porque tinha medo que aquele homem cruel, que ele julgava ser seu pai, viesse por aqueles lados e acabasse por encontrá-lo, maltratá-lo e espancá-lo, como fazia antes.
Ninguém podia estar mais feliz que o viajante e seu filho querido, sentados juntos à beira-mar, conversando sobre o que fariam e sobre a alegria de sua mãe quando o encontrasse de novo. Henry chorava de alegria quando pensava na vida feliz que levaria, lendo livros encantadores, vivendo com um pai e uma mãe gentis, sem outra preocupação além de obedecer-lhes e fazê-los felizes. Foram naquela noite mesma para Torquay, onde alugaram uma carruagem e partiram para o lar do viajante, sem fazer uma só parada até que Henry estivesse nos braços de sua mãe.
E que fim levou a cabana coberta de musgo à beira-mar? A pedido de Henry, seu pai comprou-a, mais o barco, os gerânios e tudo o mais ao senhor Gregory Barnet. Não podiam viver ali, porque Henry foi obrigado a ir estudar em Eton; seu pai morava perto de Windsor Park, próximo à escola, de modo que ele sempre estava com seus queridos pais. Mas, nos feriados de junho e agosto, iam todos para Devonshire, para visitar a bela cabana e viver nela por dois meses ao ano. Era muito pequena para abrigar criados, e assim Henry vestia roupas de campo surradas, enquanto seu pai vestia-se como nos tempos em que viajava atrás de seu filho. Cuidavam do jardim, compravam eles mesmos os mantimentos, preparavam seu próprio jantar; e, quando o tempo estava bom e o sol brilhava, sentavam-se sobre a rocha ao lado do córrego e falavam das coisas bonitas que haviam visto ou algum dia veriam, ou então liam livros encantadores cujos exemplos e lições tornavam-nos mais sábios e felizes. Quando estavam na cabana, Henry sempre fazia passar-se por Maurice, e assim podia andar com os amigos que fizera quando vivia com o velho Barnet, ajudando e consolando os que estavam doentes ou angustiados e fazendo todo o bem de que é capaz um garoto ou, então, com ajuda do pai, aliviando a sorte dos que sofriam com a miséria ou a tristeza.
Nas tardes bonitas, saíam com o velho barco de pesca, mas não para pescar: não gostavam de machucar ou matar animais, apenas observavam o jogo das ondas e a costa rochosa. E, se ficavam na água depois do pôr-do-sol, podiam ver como as estrelas surgiam uma depois da outra, até que todo o céu estivesse coberto delas.
No resto do ano, a senhora Smithson morava na velha cabana. Arrependia-se muito do que fizera e amava muito a Henry que jamais esqueceu como a amara como a uma boa e doce mãe.
Com o passar dos anos, Henry foi crescendo e viajou por outros países, vendo belos cenários de rochas, montanhas, árvores e rios; mas, em seu coração, nunca deixou de amar sua bela cabana, e sempre a considerou como o lugar mais aprazível que conhecera. Como eu já disse, era muito velha; e, algum tempo depois que a senhora Smithson morreu, parte do teto coberto de musgo cedeu e deixou entrar água durante a estação chuvosa; era muito velha para ser consertada e aos poucos foi caindo aos pedaços, sendo levada pelo mar, até que desapareceu por completo.
Quando Henry retornou de suas viagens, não encontrou mais a cabana, os gerânios ou sequer uma parede para sustentar as trepadeiras amarelas de odor suave; ficou muito triste, mas gostou de ver que a falésia avermelhada, as árvores balouçantes, o córrego de água doce e a rocha sobre a qual ele e seu pai costumavam sentar-se continuavam os mesmos, ainda que o barco tivesse apodrecido sob o abrigo e o jardim estivesse coberto de mato. Não quis construir outra cabana, que seria muito diferente da do velho Barnet, que ele amara tanto. Mas construiu uma casa ali por perto, que cedeu a um pescador e seus dois filhos. Ele havia perdido o barco numa tempestade, por pouco não se afogara e agora vivia com as crianças em grande miséria. Henry mandou construir outro barco para o pequeno abrigo e várias vezes ao longo da vida voltou ali para visitar a falésia, as árvores e a rocha, sobre a qual se sentava para pensar na vida que levara ali quando garoto, junto com o velho Barnet, na velha choupana de pescador; em como seu pai viera visitá-lo e ajudá-lo quando ele era um pobre garoto abandonado, sem saber que falava com o próprio filho; em como, sobre aquela mesma rocha, descobrira que tinha pais bondosos e gentis, com quem agora vivia contente e feliz.

Nota:
"Goody Two-shoes" é uma história infantil de fundo moralizante, atribuída a Oliver Goldsmith (1730-1774); a balada "The Babes in the Wood" conta a história de dois irmãos órfãos perseguidos pelo tio; acabam morrendo num bosque, onde os pássaros vêm cobrir seus corpos de folhas; "Chevy Chase" é uma velha balada sobre uma caçada que acaba em tragédia.


Tradução de Samuel Titan Jr.



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