São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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NOVOS AUTORES

A violência dos deuses

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Imagine uma conspiração de personagens bíblicos, deuses pagãos e figuras mitológicas, todos unidos para pôr abaixo, com impulso de vingança, uma cidade de comuns mortais. Imagine, depois, essa cidade já semi-arruinada, com poucos sobreviventes, em especial um menino míope, às voltas com o erguimento de uma outra cidade, só sua, dentro de um aquário de vidro.
Em tonalidade assumidamente intertextual, repleta de citações mais ou menos adaptadas de trechos bíblicos e outros, é esse o cenário construído por Marcelo Novaes em seu romance de estréia, "Cidade de Atys".
Como se sabe, Atys, ao menos numa das versões do mito, é um deus frígio que se castrou e que, morto, se tornou uma árvore frondosa. Simbolicamente, parece representar na obra de Novaes uma espécie de âncora dentro de um ambiente de completa desolação.
Alternam-se, no livro, discursos ameaçadores e violentos de deuses -textos esses que são, como explica o próprio autor, extratos ou adaptações das palavras do profeta Isaías- e narrativas em terceira pessoa que dão conta do esfacelamento que aqueles produzem.
São mais de 160 capítulos pequeninos, cada um com um título de conotação filosófica (exemplo: "Do Humor Que se Quebra Como um Vaso"), dentro de uma subdivisão maior em cinco partes, à moda sinfônica.
Nos trechos em que falam os deuses, o tom, como não poderia deixar de ser, é apocalíptico, predominantemente sóbrio. Veja este exemplo:
"...Como se tornou indigna a cidade? Outrora habitou nela a justiça, mas agora habitam os homicidas. Sua prata converteu-se em escória; o seu vinho misturou-se com água. Os seus príncipes são infiéis, companheiros de ladrões; todos eles amam as dádivas, andam atrás das dádivas".
Naqueles de autoria "direta" de Novaes, o narrador é seco, frio, às vezes cínico. Como no capítulo 143 ("Do Pardal Que Não Acha os Peixes Nem o Mundo"):
"A mãe do menino lhe arrumou um pardal, e ele o pôs em seu quarto, diante do aquário sem peixes. Ele contempla o mundo de vidro e canta. Mas dias se passam, dias sem sair de seu novo domínio, e ele parece enfadar-se, sem voz. A mãe, ao ver o filho e o pássaro imobilizados diante do vidro, deixa de suspirar e morre com as mãos junto ao colo".
Novaes encerra o livro com um curioso capítulo-glossário intitulado "Relicário e Presépio: Uma Súmula dos Deuses, Animais, Cores e Ofícios Sagrados", no qual explica à sua maneira quem são os protagonistas da obra.
Temos, em suma, um trabalho bem-feito de colagem, em que criação, recriação e citação surgem como categorias absolutamente complementares e interdependentes. Impossível não destacar, porém, que, abstraídas as duas últimas categorias, a que resta é quase apenas um farelo, para não dizer um gemido eliotiano. Enfim, algo tipicamente "pós-moderno".

A OBRA

Cidade de Atys - Marcelo Novaes. Ateliê Editorial (al. Cassaquera, 982, CEP 09560-110, São Caetano do Sul, SP, tel. 011/4220-4896). 192 págs. R$ 15,00.



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