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Um novo personagem da colônia
CARLOS ALBERTO DÓRIA
especial para a Folha
São poucos os momentos importantes em nossa história interpretativa, e Capistrano de Abreu,
Roberto Simonsen, Celso Furtado, Caio Prado Jr. são seus pontos
altos. Quando o assunto é o período colonial, o diálogo com eles se
faz obrigatório e o prazer intelectual das inovações é muito raro.
Fernando Novais é um desses momentos raros com seu "Portugal e
Brasil na Crise do Antigo Sistema
Colonial"; Maria Sylvia de Carvalho Franco, com "Homens Livres
na Ordem Escravocrata", outro.
Maria Sylvia, por exemplo, desentranhou da massa dos fatos históricos um personagem novo e estruturado que se tornou vivo ao
lado da díade senhor-escravo. O
livro de João Luís Fragoso também nos promete um personagem
novo: o comerciante "em grosso", promovendo uma acumulação de capitais que fica retida aqui,
tecendo o "mercado interno".
A tese da existência de um
"mercado interno" antes da vinda da Corte e da "interiorização
da Metrópole" é sedutora e subversiva, a ponto de merecer a
atenção de quantos se ocupem do
estudo do sistema colonial brasileiro; e a hipótese da existência de
atividades autônomas expressivas
é tentadora num quadro analítico
que sempre frisou a dependência.
Grosso modo, nossa historiografia se baseou na análise do latifúndio agrário-exportador e das linhas de articulação deste com o
mundo exterior, sem integrar à
análise o mundo "amorfo" da
agricultura de subsistência e de
seus fluxos internos. Esta percepção da economia deu origem às interpretações dualistas, contrapondo um Brasil dinâmico a um Brasil
estático e plasmado no interior,
distante do litoral e das grandes linhas de acumulação de capital.
A revisão dessa tese vem se fazendo há pelo menos 30 anos e a
ela se filia o trabalho de João Luís
Fragoso, para quem os dados coletados permitem a afirmação de
que há uma acumulação endógena
e um "mercado interno", ainda
que restrito e imperfeito, baseado
na produção de alimentos, o que
"já ajuda a repensar a dependência econômica da Colônia em relação à Metrópole".
Seu trabalho pretende se situar
no confronto entre o que chama
de "escola paulista" -autores
para os quais não existe um "modo de produção colonial", já que
os pressupostos de sua reprodução não estão dados endogenamente- e, digamos, a "escola carioca" (Antônio Barros de Castro,
Maria Yedda Linhares), que frisa
uma certa dinâmica interna da
economia ligada à subsistência,
com flutuações de preços que independem das grandes linhas de
comércio internacional. A consequência seria uma dinâmica social
própria, independente das determinações externas, e responsável
em parte pelos mecanismos de reprodução da formação social aqui
existente. "Uma vez que este capital é autônomo -detém as suas
linhas de crédito, os seus navios,
os seus seguros; controla o tráfico
atlântico de escravos, o custeio da
"plantation' e participa do comércio de importação-exportação-, sua existência redefine o
estatuto da dependência da economia estudada."
A importância desta constatação, para além da correta compreensão de conceitos muito precisos na tradição marxista, como
"modo de produção" e "formação social", pode se resumir a
uma questão: o esgotamento do
antigo sistema colonial, que enseja
o movimento da Independência,
não traria em si o fortalecimento
de acumulações endógenas e de
uma elite mercantil residente?
É sempre instigante enriquecer o
quadro analítico com fatos que
emergem das fímbrias do sistema.
A produção pecuária, a economia
do agreste pernambucano e, agora, a atividade mercantil da praça
do Rio de Janeiro são realidades a
serem consideradas e incorporadas na explicação da dinâmica
inerente ao sistema montado sobre o monopólio ou "exclusivo"
colonial. Que uma certa quantidade de excedente escape à lógica de
transferência de riquezas para a
metrópole não constitui novidade:
temos o contrabando, a pirataria e
o furto (que as "derramas" nas
minas tentam compensar, do
ponto de vista da Coroa) como
mecanismos da acumulação primitiva que se faz contra o exclusivo colonial. A questão historiográfica é saber se tudo isso, ao ser
considerado, altera o modelo explicativo da dinâmica do sistema
colonial.
Fragoso mostra que as grandes
fortunas com sede na praça mercantil do Rio de Janeiro, entre 1790
e 1840, quando do esgotamento do
sistema colonial, estão apoiadas
em atividades que não a agricultura de exportação. Além disso, por
meio da análise de inventários
post mortem, evidencia uma surpreendente concentração de escravos dentre os bens dessa elite.
Em outras palavras, só a apropriação sistemática de parte do excedente gerado pela economia como
um todo permite a inversão em escravos, e devotá-los à produção de
alimentos prova o dinamismo
deste fornecedor para os demais
segmentos da economia colonial.
Este novo personagem, o "comerciante de grosso trato", pode
mesmo vir a ocupar um papel importante na compreensão da vida
colonial. Fragoso sugere, por
exemplo, sua forte presença no
surgimento do baronato do café
no agro fluminense; também a ele
se pode atribuir o financiamento
de importantes atividades das
"santas casas de misericórdia".
Ressente-se porém o estudo de um
horizonte mais amplo: não é possível tirar conclusões gerais quando o foco de análise é só a praça do
Rio de Janeiro, o maior porto de
comércio da colônia. Para que este
personagem novo tenha vida própria, é necessário surpreendê-lo,
entranhado em todo o tecido social, revelar suas articulações com
a distante produção de charque,
de farinha de mandioca, de aguardente, de porcos e milho, e captá-lo como ator político. Isso, contudo, queda por demonstrar. São
as limitações do pioneirismo.
A OBRA
Homens de Grossa Ventura - João Luis Fragoso. Ed. Civilização Brasileira (av. Rio Branco 99,
CEP 20040-040, RJ, tel.
021/263-2082. 400 págs. R$
40,00.
Carlos Alberto Dória é sociólogo, doutorando
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Ensaios Enveredados" (Siciliano).
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