São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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Um novo personagem da colônia

CARLOS ALBERTO DÓRIA
especial para a Folha

São poucos os momentos importantes em nossa história interpretativa, e Capistrano de Abreu, Roberto Simonsen, Celso Furtado, Caio Prado Jr. são seus pontos altos. Quando o assunto é o período colonial, o diálogo com eles se faz obrigatório e o prazer intelectual das inovações é muito raro. Fernando Novais é um desses momentos raros com seu "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial"; Maria Sylvia de Carvalho Franco, com "Homens Livres na Ordem Escravocrata", outro. Maria Sylvia, por exemplo, desentranhou da massa dos fatos históricos um personagem novo e estruturado que se tornou vivo ao lado da díade senhor-escravo. O livro de João Luís Fragoso também nos promete um personagem novo: o comerciante "em grosso", promovendo uma acumulação de capitais que fica retida aqui, tecendo o "mercado interno".
A tese da existência de um "mercado interno" antes da vinda da Corte e da "interiorização da Metrópole" é sedutora e subversiva, a ponto de merecer a atenção de quantos se ocupem do estudo do sistema colonial brasileiro; e a hipótese da existência de atividades autônomas expressivas é tentadora num quadro analítico que sempre frisou a dependência. Grosso modo, nossa historiografia se baseou na análise do latifúndio agrário-exportador e das linhas de articulação deste com o mundo exterior, sem integrar à análise o mundo "amorfo" da agricultura de subsistência e de seus fluxos internos. Esta percepção da economia deu origem às interpretações dualistas, contrapondo um Brasil dinâmico a um Brasil estático e plasmado no interior, distante do litoral e das grandes linhas de acumulação de capital.
A revisão dessa tese vem se fazendo há pelo menos 30 anos e a ela se filia o trabalho de João Luís Fragoso, para quem os dados coletados permitem a afirmação de que há uma acumulação endógena e um "mercado interno", ainda que restrito e imperfeito, baseado na produção de alimentos, o que "já ajuda a repensar a dependência econômica da Colônia em relação à Metrópole".
Seu trabalho pretende se situar no confronto entre o que chama de "escola paulista" -autores para os quais não existe um "modo de produção colonial", já que os pressupostos de sua reprodução não estão dados endogenamente- e, digamos, a "escola carioca" (Antônio Barros de Castro, Maria Yedda Linhares), que frisa uma certa dinâmica interna da economia ligada à subsistência, com flutuações de preços que independem das grandes linhas de comércio internacional. A consequência seria uma dinâmica social própria, independente das determinações externas, e responsável em parte pelos mecanismos de reprodução da formação social aqui existente. "Uma vez que este capital é autônomo -detém as suas linhas de crédito, os seus navios, os seus seguros; controla o tráfico atlântico de escravos, o custeio da "plantation' e participa do comércio de importação-exportação-, sua existência redefine o estatuto da dependência da economia estudada."
A importância desta constatação, para além da correta compreensão de conceitos muito precisos na tradição marxista, como "modo de produção" e "formação social", pode se resumir a uma questão: o esgotamento do antigo sistema colonial, que enseja o movimento da Independência, não traria em si o fortalecimento de acumulações endógenas e de uma elite mercantil residente?
É sempre instigante enriquecer o quadro analítico com fatos que emergem das fímbrias do sistema. A produção pecuária, a economia do agreste pernambucano e, agora, a atividade mercantil da praça do Rio de Janeiro são realidades a serem consideradas e incorporadas na explicação da dinâmica inerente ao sistema montado sobre o monopólio ou "exclusivo" colonial. Que uma certa quantidade de excedente escape à lógica de transferência de riquezas para a metrópole não constitui novidade: temos o contrabando, a pirataria e o furto (que as "derramas" nas minas tentam compensar, do ponto de vista da Coroa) como mecanismos da acumulação primitiva que se faz contra o exclusivo colonial. A questão historiográfica é saber se tudo isso, ao ser considerado, altera o modelo explicativo da dinâmica do sistema colonial.
Fragoso mostra que as grandes fortunas com sede na praça mercantil do Rio de Janeiro, entre 1790 e 1840, quando do esgotamento do sistema colonial, estão apoiadas em atividades que não a agricultura de exportação. Além disso, por meio da análise de inventários post mortem, evidencia uma surpreendente concentração de escravos dentre os bens dessa elite. Em outras palavras, só a apropriação sistemática de parte do excedente gerado pela economia como um todo permite a inversão em escravos, e devotá-los à produção de alimentos prova o dinamismo deste fornecedor para os demais segmentos da economia colonial.
Este novo personagem, o "comerciante de grosso trato", pode mesmo vir a ocupar um papel importante na compreensão da vida colonial. Fragoso sugere, por exemplo, sua forte presença no surgimento do baronato do café no agro fluminense; também a ele se pode atribuir o financiamento de importantes atividades das "santas casas de misericórdia". Ressente-se porém o estudo de um horizonte mais amplo: não é possível tirar conclusões gerais quando o foco de análise é só a praça do Rio de Janeiro, o maior porto de comércio da colônia. Para que este personagem novo tenha vida própria, é necessário surpreendê-lo, entranhado em todo o tecido social, revelar suas articulações com a distante produção de charque, de farinha de mandioca, de aguardente, de porcos e milho, e captá-lo como ator político. Isso, contudo, queda por demonstrar. São as limitações do pioneirismo.

A OBRA

Homens de Grossa Ventura - João Luis Fragoso. Ed. Civilização Brasileira (av. Rio Branco 99, CEP 20040-040, RJ, tel. 021/263-2082. 400 págs. R$ 40,00.


Carlos Alberto Dória é sociólogo, doutorando pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Ensaios Enveredados" (Siciliano).



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