São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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MADE IN USA
Livro desmistifica o papel pedagógico atribuído aos computadores
Deseducação virtual

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Oitenta por cento dos americanos que hoje planejam comprar um computador alegam a educação de suas crianças como razão principal da aquisição. Noventa por cento dos eleitores americanos estão convencidos de que escolas munidas de computadores para os alunos proporcionam uma melhor educação. Por isso, 61% deles seriam favoráveis a um imposto federal para acelerar a introdução da informática nas escolas.
Em 1995, a Associação Americana dos Administradores de Escolas publicou uma pesquisa que perguntava a pais, professores e público quais talentos seriam decisivos para os estudantes do próximo século. A competência em informática e tecnologia das mídia apareceu em terceiro lugar, logo após as competências básicas (ler, escrever e fazer contas) e os "bons hábitos de trabalho".
Mais inquietante: entre os dez programas para crianças que foram best seller nos EUA em 1996, quatro eram destinados a crianças a partir dos três anos de idade. Existem hoje programas de computador para nenês de 18 meses. Estes fatos são lembrados por Jane Healy no começo de seu novo livro "Failure to Connect: How Computers Affect Our Children's Minds - For Better and Worse" ("Fracasso em Conectar: Como os Computadores Afetam a Mente de Nossas Crianças - Para o Melhor e o Pior", Ed. Simon & Schuster).
É suficiente para estabelecer de maneira convincente que reina hoje um lugar comum cultural, segundo o qual os computadores seriam indiscriminadamente bons para as crianças. Quanto mais e quanto mais cedo pudermos expor nossos rebentos à magia da tela, tanto melhor -assim parecem pensar pais e educadores de hoje. Há várias razões para isso.
Sem dúvida, faz tempo que os pais ouvem dizer que o acesso futuro ao mercado do trabalho será condicionado à competência informática. Quem não souber usar computador irá para o brejo, nos dizem -esquecendo de acrescentar que a competência necessária pode ser adquirida em uma semana por qualquer adulto que saiba pensar (Healey, aliás, mostra que o acesso a esta competência não é nem sequer mais rápido para crianças que usaram computadores na escola).
Outra razão, mais importante, é ideológica. No espaço de duas décadas, o computador conquistou a aprovação pedagógica do público (leigo ou não). A coisa começou em 1980, quando Seymour Papert publicou seu famoso livro "Mindstorms: Children, Computers, and Powerful Ideas" ("Tempestades da Mente: Crianças, Computadores e Idéias Poderosas"). Nele, Papert apresentava o sistema Logo, uma linguagem simples, com a qual as crianças do futuro se tornariam não simples usuários de computadores, mas verdadeiros programadores. O sistema permitia levar qualquer criança a programar os movimentos de uma tartaruga para compor infinitas geometrias.
Desde esta época, aliás, as fortunas educativas do computador casaram definitivamente com o construtivismo, ou seja, com a idéia que é melhor e mais eficiente aprender colaborando na construção do saber do que incorporando noções já constituídas.
Em outras palavras, o saber deve ser construído pela criança, não herdado ou transmitido. O construtivismo é responsável pela desaparição (ou quase) dos livros de texto e referência. Também é o culpado pelo drama de inúmeras famílias modernas que ocorre quando as crianças recebem como tema de casa misteriosos "projetos de pesquisa" sobre temas dos quais elas ignoram tudo.
O computador é o coadjuvante perfeito nesta empreitada. Facilita o acesso às informações e mantém o sentimento (ou a ilusão) de uma ativa participação na produção do saber, quer seja pela atividade mecânica de procura, quer seja pelo aspecto lúdico de seu uso. Construtivismo e computador vieram assim tocar juntos uma musiquinha perfeita para os ouvidos do individualismo moderno: não devemos aprender nada de ninguém, pois somos, em nossa lúdica livre atividade, a fonte de todo saber e sabedoria.
Na época, eu fui absolutamente seduzido. Em 81 ou 82 (não lembro direito), Papert viajou a Paris para apresentar seu livro e, sobretudo, seu projeto pedagógico. Naquela ocasião, ele encontrou um pequeno grupo de psicanalistas, do qual eu fazia parte, que se interessava pelos efeitos psicológicos das novas tecnologias. Depois de uma hora em uma suíte de hotel transformada em laboratório de computação, lembro que consegui fazer que minha tartaruga (o cursor ativo do sistema Logo) traçasse um triângulo perfeito. Que maravilha! Enfim, quer seja graças à demonstração animada pela fé de Papert, quer seja pela leitura de seu livro, saí daquele encontro entusiasmado.
Nossas repentinas simpatias construtivistas encontraram, na época, o mais tétrico pessimismo antitecnológico, classicamente europeu. A maioria de nossos colegas previa que as crianças, se fossem educadas por estes instrumentos infernais (os computadores), se tornariam rapidamente psicóticas.
De fato, esta exagerada preocupação mal escondia uma resistência ideológica em defesa da tradição e das hierarquias mais tradicionais na transmissão do saber. Defender construtivismo e computadores parecia então uma atitude moderna e progressista. No entanto, o balanço destas duas últimas décadas é que nem o construtivismo nem os computadores fizeram milagres. Mas que também não há razão para voltar às pedagogias mais sombriamente hierárquicas ou expulsar os computadores da casa e da escola.
O livro de Healey justamente é uma voz sábia que escapa à alternativa entre otimismo tecnocrático e nostalgias ruralistas. Ele não é nem um panfleto a favor ou contra a tecnologia nem uma obra propriamente teórica. É sobretudo um esforço de bom senso. Pedagogos e pais encontrarão uma série de recomendações explícitas bem fundadas e muito apropriadas. Por exemplo: as crianças até os sete anos não precisam e não deveriam ser entregues às virtudes educativas dos computadores -nada de PC antes do primário.
O tempo de uso do computador para uma criança deve ser controlado. Uma hora por dia parece razoável, por motivos tanto físicos (vista, posição) quanto educativos. É absurdo pensar que qualquer estupidez computadorizada seja necessariamente melhor do que um bom programa de TV; este é um delírio hiperconstrutivista, segundo o qual uma idiotice livremente inventada ou criada seria sempre melhor do que qualquer coisa ensinada ou mais passivamente contemplada.
Em suma, nos anos 50 os pais de classe média que não tinham babá e deviam ambos trabalhar acolheram a televisão como um milagre. Podiam confiar as crianças à tela que se encarregaria de educá-las, informá-las, abrir para elas o mundo inteiro. A virtude educativa da televisão chegou até a inspirar projetos de uso da TV na própria sala de aula. Este idílio acabou logo: já nos anos 60 a babá luminosa se revelou (dizem) uma bruxa: alienava as crianças, as adequava a modelos decididos por escusos poderes ideológicos, sem contar que não podia ser muito boa para os olhos.
Tornou-se difícil, desde então, confiar nossos filhos e filhas à televisão sem experimentar uma certa culpa. O computador pareceu resolver estas dificuldades. Era uma nova tela, com toda a bola da TV nos anos 50 e na qual podíamos confiar, pois não só educava, abria ao mundo etc., mas sobretudo era interativa. Fim da alienação das crianças. Fim da culpa parental. Era inevitável que os pais e os pedagogos acreditassem em tanta sorte. Ora, o livro de Healy nós dá outra má notícia: o computador também não é a babá perfeita. Vai ser necessário mesmo sacrificar um pouco de tempo e sentar com as crianças para conversar.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com



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