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Fazendo a corte
A Folha visitou os palácios de Mafra e Queluz, onde vivia a família real antes da partida para o Brasil, para apurar o que restou da imagem de dom João 6º e da antiga opulência
Ao chegar a Mafra e encontrar o local deserto, sem mobília, o general francês teria perguntado: "Mas que rei tão pelintra é esse que vive neste palácio?"
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RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL A PORTUGAL
A funcionária responsável por acompanhar os visitantes
gira uma chave do
tamanho de um revólver e abre a pesada porta de
madeira que, com cerca de quatro metros de altura, dá acesso
à área interna do Palácio de
Mafra, já anunciado numa placa à entrada como "o mais importante monumento do barroco português", construído
por ordem do rei dom João 5º,
no início do século 18.
"Tal magnificência só foi
possível devido ao ouro do Brasil, que permitiu ao monarca
pôr em prática uma política
mecênica e de reforço da autoridade régia", diz o mesmo aviso, que, além da bandeira do
país, traz impresso o símbolo
da União Européia.
Palácio de caça e de férias localizado a 40 km de Lisboa, a
construção opulenta só serviu
efetivamente de moradia para
a monarquia portuguesa com o
príncipe regente dom João 6º,
e isso por apenas um ano. Dali
saiu no final de novembro de
1807, fugindo para o Brasil, enquanto Portugal era invadido
por tropas napoleônicas.
A imagem que deixou para
trás -e que perdura até hoje-
tem grande dose de ambivalência. Celebrado atualmente pela
historiografia portuguesa como o autor de uma estratégia
sofisticada, responsável pela
manutenção da integridade da
família real e, em última instância, da futura autonomia
portuguesa, seu gesto ainda divide
opiniões entre os habitantes do
país -enquanto permanece,
para muitos, a caracterização
de um soberano tolo, feio e covarde.
É de forma no mínimo ambivalente que ele é apresentado,
por exemplo, aos visitantes de
um dos principais monumentos nacionais portugueses.
Domingas Filipe, 46, a guia
que acompanha a reportagem,
repete, ao início do caminho
pelos corredores internos do
palácio, a declaração de que tudo que seria visto dali por diante -40 mil metros quadrados
de construção, 4.300 portas e
janelas, 880 salas - só foi possível "com o ouro do Brasil".
Ainda no primeiro salão, em
homenagem a Diana, a deusa
da caça, explica que dom João
6º viveu no palácio até "transferir toda a corte para o Brasil
quando fomos invadidos, em
1807".
Domingas garante que tais
informações, sobre o ouro e a
fuga, são repetidas a todos os
visitantes.
Por isso mesmo, afirma, é
freqüente ouvir reações dos
portugueses sobre o gesto do
monarca. "Há alguns que dizem que dom João 6º era muito rude, que teria deixado o
país ao abandono", explica. Outros -como ela própria, acrescenta- "acham até que foi uma
estratégia bem pensada".
"No fundo, acho que ele fez o
que os britânicos mandaram.
Os britânicos são o que chamamos em Portugal de "amigos da
onça". Mas a verdade é que,
desde que os franceses não pudessem prender o rei, não podiam dar o país como conquistado."
O taxista Alexandre Pedro,
75, que trabalha na praça local,
discorda de Domingas. "Acho
que não fez bem. Se era o rei, tinha que ter ficado e ajudado a
defender o país", ele diz.
A idéia de covardia e de
abandono dos portugueses foi
explorada no calor dos acontecimentos pelos próprios franceses. Na edição de 4 de dezembro de 1807 da "Gazeta de Lisboa", espécie de diário oficial
da época, que era impresso,
ainda naqueles dias que se seguiram à invasão, sob a inscrição "com privilégio de Sua Alteza Real" (o que indicaria conhecimento e eventual censura
do príncipe regente), o general
Jean-Andoche Junot anuncia
aos habitantes locais:
"O meu Exército vai invadir a
vossa cidade. Eu vinha salvar o
vosso porto e o vosso príncipe
da influência maligna do Reino
Unido. Mas esse príncipe, aliás
respeitável pelas suas virtudes,
deixou-se arrastar pelos conselheiros pérfidos de que era cercado, para ser por eles entregue
aos seus inimigos. Atreveram-se a assustá-lo quanto à sua segurança pessoal. Os seus vassalos não foram tidos em conta
alguma, e os vossos interesses
foram sacrificados à covardia
de uns poucos cortesãos."
Corredor de 232 metros
Na primeira edição do "Correio Braziliense", editado em
Londres após a fuga da família
real para o Brasil, de junho de
1808, é reproduzido o decreto
em que dom João comunicava
aos seus vassalos a decisão de
partir para o Brasil.
"Vejo que pelo interior de
meu reino marcham tropas do
imperador dos franceses e rei
de Itália, a quem eu me havia
unido no continente na persuasão de não ser mais inquietado,
e que as mesmas se dirigem a
essa capital", escreve ele no
texto datado de 26 de novembro de 1807.
A seguir diz ser ele próprio, e
não seus vassalos, quem é perseguido pelas tropas invasoras,
usando um argumento oposto
ao de Junot -ou seja, dizendo
que fugia para manter a segurança dos portugueses- como
justificativa para sua decisão.
"Conhecendo igualmente
que elas se dirigem muito particularmente contra a minha real
pessoa, e que os meus reais vassalos serão menos inquietados
ausentando-me eu deste reino,
tenho resolvido, em benefício
dos mesmos vassalos, passar
com a rainha minha senhora e
mãe e com toda a real família
para os Estados da América e
estabelecer-me na cidade do
Rio de Janeiro até a paz geral."
Após nomear alguns nobres
que ficavam para governar Portugal durante sua ausência,
dom João 6º pede que os invasores sejam em tudo muito
bem tratados. "E que as tropas
do imperador dos franceses e
rei de Itália sejam bem aquarteladas e assistidas de tudo que
lhes for preciso enquanto se detiverem neste reino, evitando
todo e qualquer insulto que se
possa perpetrar."
A sala onde provavelmente
assinou esse decreto fica ao final de um corredor de 232 metros, responsável pela ligação
entre o seu quarto e o de sua
mulher, a princesa do Brasil,
dona Carlota Joaquina. Em toda a sua extensão, há vários
quadros em que dom João 6º
aparece retratado.
Ao passar pelo primeiro deles, Domingas não hesita em dizer: "Seu aspecto talvez tenha a
ver com o fato de os sangues estarem muito misturados. Não
sei se sabes, mas o pai de dom
João 6º casou-se com a sobrinha".
Como assim, seu aspecto?
"Sempre que olho para esses
quadros, dom João me parece
mongolóide. Ele era muito feio.
E o pintor tinha que o favorecer, porque era o rei. Imagina o
que seria na realidade."
Shopping Dona Maria 1ª
No salão seguinte, a guia
aponta para os móveis ali dispostos, explicando que obviamente eles não ficaram na residência após a fuga -quase tudo
que havia no palácio foi transportado com o príncipe para o
porto e, de lá, para o Brasil.
Domingas afirma que se conta a história de que Junot, ao
chegar a Mafra e encontrar o
local deserto, sem mobília, teria perguntado: "Mas que rei
tão pelintra [pobre] é esse que
vive neste palácio?".
O mesmo procedimento foi
tomado no Palácio de Queluz, a
uns 30 km de distância e próximo à cidade de Sintra, onde estava, no momento da partida, o
restante da família real, incluindo a mãe de dom João. Na
cidade há hoje um shopping
center Dona Maria 1ª, em sua
homenagem.
Rosa Correia, 57, que recolhe
os bilhetes à porta do monumento e tem curiosidade sobre
a quantas anda a violência no
Brasil, não chega a uma conclusão sobre a decisão de transferir a corte para os trópicos.
"Ele talvez se sentisse mais
seguro no Brasil àquela altura",
diz. "Também é verdade que
deveria ter ficado, mas talvez
não tivesse coragem."
Lá dentro predominam os
estilos rococó e neoclássico,
num ambiente bastante distinto da grandeza barroca de Mafra e bem mais aconchegante,
com muitos detalhes em ouro e
espelhos nas paredes.
Um grupo de atores com roupas de época vem apressado pelos corredores após um ensaio,
e uma das atrizes brinca com a
outra ao passarem pela reportagem: "Olha aqui a nossa casinha de antigamente".
Na "casinha" há coleções de
prataria e porcelanas dos séculos 18 e 19, finos móveis, salas
de café e de "fumo". O serviço
de chá traz imagens, em cada
xícara, da Viena do Setecentos,
e um dos serviços de jantar tem
gravado em cada peça o monograma "CJPB", que significa
Carlota Joaquina, Princesa do
Brasil.
A alcunha valia para os príncipes herdeiros, destinados a se
tornarem rei e rainha, mas terminou por se tornar mais literal do que eles próprios teriam
imaginado.
Também em Mafra, numa
das alas do palácio, é possível
ver hoje confortos semelhantes
aos de Queluz, mas eles foram
instalados após o retorno da família real ao país, no século 19.
Numa sala de jogos, com mesas
de bilhar de mais de cem anos,
Domingas aponta um retrato
do imperador dom Pedro 2º e
tece considerações sobre ele e
seu pai, dom Pedro 1º no Brasil,
que foi o rei dom Pedro 4º em
Portugal.
"Dom Pedro foi buscar essa
veia à mãe", ela diz, "de trocar
sempre de mulher". "De dona
Carlota, dizem que trocava de
amante a cada dois anos", continua a guia justamente ao entrar na sala da caça, onde cabeças e chifres de veados são expostos na parede.
Coxas e asas de frango
O salão seguinte é certamente o mais bonito do palácio de
Mafra.
Uma biblioteca de sala única,
a maior desse tipo na Europa,
com estantes de madeira clara
e 40 mil livros dos séculos 15 ao
19 encadernados em couro com
lombadas douradas. Era controlada pelos franciscanos
(Mafra era um palácio, mas
também um convento; a residência é na verdade organizada
ao redor de uma basílica, e é dela o frontispício característico
de todo o conjunto).
Na fuga apressada para o
Brasil, os livros ficaram, afirma
Domingas. Mesmo o Exército
francês não chegou a tirá-los de
lá. Uma das lendas que se contam, segundo a guia, é que os
frades esconderam a chave que
permite a entrada na biblioteca, protegendo-a de um possível assalto francês.
Outra versão afirma que Junot, ao chegar ao palácio e encontrar tudo vazio, nem se deu
ao trabalho de percorrê-lo e, assim, descobrir suas obras.
A imagem final que fica de
dom João 6º, segundo o relato
da encarregada de apresentá-lo
aos visitantes, é bem mais positiva do que a de um rei "pelintra" ou "mongolóide".
Domingas pergunta se a reportagem sabe da fama que o
príncipe regente tinha de esconder asas e coxas de frango
nos bolsos para comê-los mais
tarde. Pois o hábito, diz, guarda
relação com o fato de o monarca ter sido grande apreciador
de música sacra e de gostar de
cantá-la com os frades.
Os pedaços de frango eram
levados nos bolsos, diz Domingas, para comer enquanto ouvia
os frades cantarem ou nos intervalos das peças em que o
príncipe-regente acompanhava os religiosos no grande salão
da biblioteca, entre madeiras e
ouro para lombadas de livros
vindos do Brasil.
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