São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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A INVENÇÃO DO CARNAVAL

FESTA PASSOU A SER ELABORADA INTELECTUALMENTE COMO FATO SOCIAL TOTAL "INTEIRAMENTE BRASILEIRO" EM PARALELO COM O ADVENTO DA TV EM CORES, DIZ PIERUCCI

Eduardo Knapp - 7.fev.2005/Folha Imagem
Integrantes da comissão de frente da escola de samba Porto da Pedra desfilam no Rio, em 2005


ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
ESPECIAL PARA A FOLHA


O discurso sobre o Carnaval ficou preso na armadilha romântica que montou: um mix de Nietzsche com Rousseau

Ao contrário do que se pensa, a Igreja Católica nunca se fechou totalmente às demandas sazonais do êxtase bacanal

Tem dias em que somos levados a pensar num assunto e acabamos redescobrindo coisas. Ao escrever sobre o Carnaval, esse vivido cultural internacionalmente reconhecido tanto quanto o futebol como expressão imbatível da brasilidade, acabei redescobrindo com força um dado de realidade que ajuda a rasgar a fantasia de sermos, os brasileiros, portadores de uma identidade "primordial": muitos dos componentes da brasileirice que nós nos imputamos são bem mais recentes do que se crê. Sua antigüidade é um mito a mais.
O catolicismo romano, por exemplo, só se estrutura entre nós depois da Proclamação da República [1889]. O samba é outro exemplo forte. Como gênero musical original, emerge nas décadas de 1910 e 20, mas como estilo musical "nacional", tipo "samba da minha terra", é ainda mais recente. Só passa a existir nos anos 30. Tão tardio quanto -ou mais ainda- é o desfile carnavalesco das escolas de samba do Rio. Tem o que, 70 anos, setenta e poucos?
O próprio candomblé não é, como se imagina, tão antigo quanto a escravidão. Data de meados para o final do século 19. E a umbanda, metonímia de religião brasileira por juntar em seu panteão o índio, o negro e o branco, só foi inventada na década de 1920, também no Rio.
São muitos os elementos que integram a "seleção cultural" que faz desse país de 505 anos o Brasil que ele pensa que é desde sempre. Fenômenos sociais muitas vezes revestidos da aura de memória nacional não têm mais que cento e poucos anos, sua duração não remonta a muito antes do Brasil republicano.
Isso quer dizer que muitas das manifestações culturais que incorporamos em nossa consciência identitária como traços de um Brasil brasileiro não nasceram com o Brasil, não são nossas "raízes", fincadas em tradições que viessem lá de trás: nasceram do Brasil quando este país já contava com pelo menos três séculos e meio de existência, daí pra mais, e com isso bastante capaz de se dar raízes novas, contemporâneas de sua própria novidade.
São desenvolvimentos culturais do final do século 19, quando não do século 20 já bem entrado. "Raízes" modernas, portanto, ou mesmo modernistas, que só imaginariamente podem se pôr a exigência de primordialidade. Dá para imaginar, por exemplo, que o primeiro terreiro de candomblé em São Paulo só haja surgido em 1965? Dá para pensar que a temática do negro tenha tido que esperar até 1960 para ser enredo de escola de samba, inovação que o Salgueiro introduziu?
Não é mesmo, leitor, que fica tudo tão recente quando se pára pra pensar nesse automatismo inconsciente pelo qual nossa vontade de identidade nacional transforma o recente no antigo, a novidade em tradição?

"Brilhar muito"
Bem mais recente ainda é essa feição de espetáculo do Carnaval brasileiro, em que "o visual virou quesito" e a palavra de ordem geral tem sido "brilhar muito, brilhar tudo, brilhar mais!". Nossa "ópera-balé ambulante", na definição cripto-wagneriana que lhe deu o crítico José Ramos Tinhorão em 1975, é tão recente quanto sua inesperada universalização território nacional adentro -expansão que se processou com a mesma rapidez e naturalidade com que a crescente racionalização da organização do evento e sua imersão na indústria cultural e do turismo lhe acentuaram o caráter de classe e sublinharam sua estratificação por raça e cor, realidades perversas que resistiram, reprocessadas, ao ritmo frenético da transformação industrial da "festança-potlatch" no "maior espetáculo da terra".
Simultaneamente e, por que não dizer?, ironicamente, o discurso intelectual sobre o Carnaval que conseguimos produzir e difundir nas últimas três décadas parece que ficou preso na armadilha romântica que ele próprio montou: um mix aparentemente tranqüilo de Nietzsche com Rousseau, que o idealiza como festival genesíaco, causador e integrador da grande "communitas" nacional pela fusão das alegrias individuais na alegria geral, pela inversão simbólica das hierarquias, pela superação das distâncias e opacidades na transparência e imediação do regozijo mútuo, pela transgressão geral das convenções (esta, o desregramento como regra, me parece a grande convenção carnavalesca a não perder vigência com a redução da comunhão geral em show de narcisismo).
O discurso acadêmico dominante tende a ser de exaltação dessa "festa total" como expressão máxima e revigorante das profundezas mais autênticas de nossa potente originalidade cultural, que não dispensa a exteriorização desavergonhada de si num permanente estado de ereção jovial enquanto dura a duração de um Carnaval.

Espetáculo fechado
Mas, enquanto a candura desse discurso impuramente nietzschiano, saudosista das orgias sagradas sempre aludidas e supostas, mas nunca registradas, segue em frente apoiada em teorias antropológicas aplicáveis a realidades pretéritas imemoriais, a lógica do espetáculo fechado, sitiado ao mesmo tempo em diferentes dimensões na telinha e no sambódromo, se encarrega (ironicamente, devo repetir) de apresentar nossa "biodiversidade" racial com algum realismo jornalístico, anulando em imagens de espelho a encenação ritual da inversão, invertendo a representação da inversão.
Re(a)presentação des-invertida que agora nos devolve em rede nacional uma imagem supercolorida e hiper-real de uma sociedade nacional profundamente desigual e hierárquica, tão segregacionista e sonegadora da totalidade de um desfile quanto esse gigantesco teatro separado que é o sambódromo.
Aqui o enredo expansivo do samba acabou literalmente encerrado, claramente apartado, irremediavelmente mediado posto que espetáculo, tão massificado e insular quanto a intimidade virtual propiciada pela reprodutibilidade televisiva dos milhões de corpos brincantes (mas não bacantes, nisso eu não acredito) -quase nus, "quase todos quase brancos, quase todos quase negros", quase todos quase nus, a se exibirem mais do que de fato se entregarem aos quatro cantos de um país que olha e escuta, mas não sabe a letra do samba pra cantar, largado que está na frente da TV, deixando-se hipnotizar pelo trepidante sublime de um torneio brasileiríssimo de óperas-balé às dúzias.
E isso, noite adentro nos dias de folia. Três dias? Quatro? Mais de quatro já, pois o feriadão-leseira que paralisa o mundo do trabalho não pára de esticar, tendo engolido em seus ócios, em algumas cidades, a penitente catolicidade da Quarta-Feira de Cinzas que sucede à Terça-Feira Gorda, destampatório túrgido de excessos múltiplos previsto no ano litúrgico da Igreja Católica -que, dona do calendário, mas humanamente conivente, introduz pelo avesso crasso o tempo da Quaresma e desvenda à nossa curiosidade filológica a etimologia romano-católica do nome "Carnaval" como "carnem levare" -"abster-se de carne, privar-se de carne".

Uma experiência popular
A maior das festas dionisíacas pagãs a sobreviver cheia de viço em terras cristãs é o Carnaval. E não será mero acaso se, parando para pensar, redescobrirmos que em solo europeu o Carnaval foi mais valorizado por cidades de aura especialmente católica: Roma, Veneza, Nice, Colônia, Munique.
Ao contrário do que se pensa, a Igreja Católica nunca se fechou totalmente às demandas sazonais do êxtase bacanal nem jamais se empenhou em erradicá-lo dos costumes comuns tão taxativamente quanto o protestantismo de matriz puritana, com sua fria seriedade e intransigente heterossexualidade.
Se os brasileiros se orgulham da exuberância dos seus Carnavais, também da energia dos deles, passados e presentes, se gabam os italianos -e não é de hoje. Não foi na Itália que nasceu o Carnaval com esse nome?
Goethe, como se sabe, viveu um tempo na Itália, de 1786 a 1788. Morava em Roma, numa esquina da via del Corso, e foi desse ângulo que pôde presenciar, coração expectante, o Carnaval romano, cujo humor e vivacidade faziam dele atração famosa em toda a Europa.
Reverente como era das sintonias reais entre arte e vida e entusiasmado que ficara com a força aglutinadora daquele festival de rua bem debaixo da janela da pensão em que ficava, no livro "Viagem à Itália" (Cia. das Letras), Goethe não deixou de comentar a experiência e o fez em termos de fazer inveja aos futuros antropólogos: "O Carnaval de Roma não é propriamente uma festa que se dá ao povo, é antes uma festa que o povo dá a si mesmo".
Não se tratava de um espetáculo, portanto, que por definição separa os espectadores dos atores, mas de uma excitante experiência popular de autonomia, a suspender temporariamente as distâncias sociais e a rigidez das categorias profissionais próprias de uma sociedade heterônoma. É curioso como Goethe, ao tentar definir por dentro o Carnaval de Roma, não fale tanto em inversão quanto em comunhão, como se comentasse a concepção de Rousseau do povo em festival como teatro sem representação: "Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada de flores, juntai ali o povo e tereis uma festa. Fazei melhor ainda: apresentai os espectadores como espetáculo; que sejam atores eles próprios; fazei que cada um veja e ame a si mesmo nos outros, a fim de que com isso todos estejam mais unidos".

Presença sem representação
O discurso intelectual sobre o Carnaval como fato social total "totalmente brasileiro" foi elaborado (e logo se entronizou) no final do século do samba, sendo portanto contemporâneo da televisão em cores, que por sinal o desafia sem cessar.
É tentador pensar que, se for verdade o enunciado antropológico segundo o qual os povos definem com ritos coletivos absorventes a imagem que desejam cultivar de si, no Brasil tal verdade requererá um complemento, do tipo: "E o povo brasileiro precisa saber disso", já que de inculcar tal consciência nas diferentes camadas populares seguem se encarregando muitos dos nossos intelectuais, sejam eles acadêmicos, estudiosos ou jornalistas.
Basta ver o que tem sido dito e repetido nas últimas três décadas em livros, artigos de jornal ou entrevistas quando chega o Carnaval: festa popular que a todos iguala temporariamente -inversão, mistura, confusão criativa, igualação geral-, que a todos distende e aproxima, traveste e confunde, o homem e a mulher, a patroa e a empregada, o rico e o pobre, o velho e o jovem, o branco e o negro, o alpinista social e o decadente, o médico e o paciente, o sério e o engraçado, verdadeira quebra do normal na qual palingenesicamente se fulminam, quem dera, todos os preconceitos e travações.
Isto aí: presença sem representação. O povo presente a si mesmo tem sido um sonho teimoso a rondar, em eterno retorno, a bela alma de muitos intelectuais. Principalmente no país dos Carnavais.


Antônio Flávio Pierucci é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de "A Magia" (Publifolha) e "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34), entre outros livros.


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