São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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Uma teoria poética da sociedade

por Lisette Lagnado

Cildo Meireles acaba de ser contemplado pela editora inglesa Phaidon com uma ampla publicação de seu trabalho na série "Contemporary Artists". Caberia, em primeiro lugar, ressaltar as qualidades dessa coleção, por suas características intrínsecas. São livros que aliam farta iconografia e reflexão teórica. Além de um texto retrospectivo, que transcende a mera historicização do percurso criativo, o leitor é brindado com uma entrevista acompanhada de escritos do artista e de uma razoável cronologia.
A seção chamada "Artist's Choice" ainda acresce motivos de interesse. Voltada para uma livre escolha do artista, propicia uma entrada na sua biblioteca pessoal, colocando a série num patamar diferenciado. A opção de Cildo Meireles recaiu sobre "El Jardín de Senderos Que Se Bifurcan" (1941), de Jorge Luis Borges, cujo título no original, data correta e divisão de parágrafos infelizmente escaparam aos cuidados editoriais. A predileção por esse conto tem uma justificativa de longa data no percurso do artista. De fato, qualquer estudioso de sua obra precisa necessariamente voltar aos "Espaços Virtuais: Cantos" (1967-68), que alteraram nossa percepção do espaço físico. Por meio de paradoxos visuais, o processo de Meireles desvia a sentença minimalista "O que você vê é o que você está vendo" para "O que você vê não é o que você está vendo". Mas é nas duas versões de "Malhas da Liberdade" (1976) que podemos entender mais claramente a ruptura da grade modernista de Mondrian para a criação de planos de intersecção capazes de se multiplicar no espaço. A estrutura matemática de "cascatas de bifurcações" ganha maior complexidade na instalação "Através" (1983-89): oito toneladas de vidro partido recobrem uma superfície de 225 metros quadrados formando um labirinto. Uma série de sobreposições de transparências (redes de pescar, mosquiteiro, vual, celofane) e de barreiras (cercas, divisórias e obstáculos de toda espécie) inviabilizam a passagem, interditando fluxos de circulação.

A ruptura
Este é o segundo esforço de condensar a obra do artista numa publicação, precedido pelo catálogo de sua retrospectiva no Instituto Valenciano de Arte Moderno (Ivam), em 1995. São iniciativas valiosas para a memória da cultura, se levarmos em conta que a arte que foi produzida no Brasil dos anos 60 e 70 ficou praticamente sem registro documental, situação agravada pela ausência de uma prática de aquisição de obras. "Desvio para o Vermelho" é um exemplo que ilustra bem a indeterminação e o vazio institucional de um meio artístico ainda descrente do valor de seus expoentes. Por falta de colecionador, a remontagem da instalação na 24ª Bienal de São Paulo exigiu um novo trabalho de acumulação, pois o destino da coleção de objetos vermelhos havia sido o da dispersão ao longo de 15 anos. A presença de Cildo Meireles no Núcleo Histórico da última Bienal de São Paulo devia-se à curadoria de Paulo Herkenhoff. Como autor do principal texto do livro em tela, Herkenhoff desenvolve sua releitura do "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade. Mediante o conceito de canibalismo cultural, rastreia trabalhos de Meireles que se opõem à noção eurocentrista de história. "Cruzeiro do Sul" (1969-70) e "Olvido" (1987-89) são analisados como estratégias críticas de absorção dos valores do Outro. O eixo argumentativo de Herkenhoff baseia-se, com justeza, em Marcel Duchamp e Hélio Oiticica. As afinidades com o primeiro obedecem diversas ordens: o "readymade", os jogos semânticos, a escatologia, as ilusões de ótica, a crítica da arte como capital (2). É certamente na relação de Meireles com Oiticica que compreendemos melhor seu alcance para a contemporaneidade. Muitas analogias conceituais os unem: ambos compõem obras incorporando outros autores (3); criam espaços de caráter não-utilitário (nunca é um jardim propriamente dito; nem uma sala de estar no sentido habitual); levam a cor a se desenvolver na vivência do percurso; constroem penetráveis como labirintos virtuais; alimentam uma ambiguidade entre os elementos da natureza e o "elaborado" (aquilo que é fabricado pelo homem). A 24ª Bienal evidenciava com clareza a incidência do espaço ambiental no "Desvio para o Vermelho". Como na "pintura depois do quadro", trata-se, sem abdicar da cor, de estimular outros sentidos que o visual. A proposição do supra-sensorial retorna então na sua plenitude com o trabalho de Meireles: o indivíduo conquista uma "percepção total", articulando objeto do cotidiano e ambiente.

Esboço de contexto
A interpretação de Herkenhoff, ao afirmar que Meireles elabora uma "teoria poética da sociedade", procura estabelecer uma medida entre a pesquisa formal e as conotações políticas. Tanto a economia do minimalismo como textos que investem sua argumentação no contexto político são inadequados por acabarem desprezando a densidade expressiva dos materiais usados.
O fôlego do raciocínio de Herkenhoff vai, no entanto, ficando cada vez mais entrecortado por intervalos menores. Construído a partir de vários intertítulos significativos (capital, ideologia circulante, cultura do excesso, redes e circuitos, entre outros), desemboca nos três pequenos parágrafos finais deixando a sensação de que houve uma edição abrupta.
A entrevista do livro ficou a cargo de Gerardo Mosquera, co-curador com Dan Cameron (que também escreve um artigo) da grande mostra sobre o artista. É interessante observar como Mosquera assume a leitura da antropofagia cunhada por Herkenhoff na 24ª Bienal de São Paulo para propor uma inversão: Cildo Meireles estaria fazendo arte internacional com jeito brasileiro (e não arte brasileira com jeito internacional, como costuma-se dizer de forma pejorativa). Segundo o crítico cubano, a arte brasileira nunca perdeu a dimensão da corporeidade, mesmo quando assumiu as perspectivas do minimal e do conceitual.
Antes diálogo que mera sequência de perguntas e respostas, a entrevista tem a função de esboçar as grandes linhas do contexto histórico. Sabe-se que, além de ser um período de resistência ao regime militar, foi também uma época em que os artistas criticavam o sistema da arte, lançando mão de materiais e procedimentos efêmeros. Nesse sentido, a precariedade do ambiente artístico não chegava a inibir o impulso criativo, uma vez que os artistas estavam justamente investigando uma arte de limites, de natureza experimental, alheia ao mercado. Rejeitava-se o sistema da arte, mas, paradoxalmente, como formularia Celso Favaretto, havia nas proposições estéticas o pressuposto de um público participante (4).
Mosquera insiste nos desenhos (não obstante pouco conhecidos) realizados por Cildo Meireles até seus 20 anos, a fim de traçar um plano de fundo para as "Inserções em Circuitos Ideológicos" (1970). Gravar em "silk-screen" mensagens subversivas em garrafas de Coca-Cola e carimbar "Quem matou Herzog?" em cédulas de dinheiro, devolvendo esses produtos à sociedade, é um gesto compreendido simultaneamente como ato de guerrilha artística e como "tipo de graffiti móvel".
O procedimento engloba as semânticas pop e conceitual: apropriar-se de imagens de consumo de massa para questionar seu circuito de circulação. Um ano depois, nas "Inserções em Circuitos Antropológicos", Meireles acrescentaria o dado do "handymade" no "readymade", fabricando fichas telefônicas ou de transporte em diversos materiais. Mosquera tem em mente um foco preciso quando formula suas perguntas acerca da cena social e política do Rio de Janeiro nos anos 70: mostrar que a "arte engajada" de Meireles não abdicou dos aspectos formais do trabalho, ao mesmo tempo em que consegue transpor os limites da metáfora.
A despeito de alguns trabalhos reproduzidos várias vezes, o livro tem a qualidade de apresentar instalações montadas em exposições internacionais que não puderam, até agora, ser vistas aqui. É o caso da já citada "Através" e de "Marulho" (1991-97), exibidas na Kanaal Art Foundation (Bélgica) e na Bienal de Johannesburgo, respectivamente. Parte dessa falta de visibilidade será sanada em julho, quando o Museu de Arte Moderna de São Paulo sediar a retrospectiva atualmente no New Museum of Contemporary Art de Nova York. Uma versão em português dessa importante monografia está sendo providenciada pela editora Cosac & Naify.



Notas
1. O título vem de uma expressão criada por Paulo Herkenhoff -"uma teoria poética da sociedade"- para designar o trabalho de Cildo Meireles.
2. Cf. Paulo Herkenhoff, "Por que Cildo? -Duchamp e Cildo e Duchamp", in "Por que Duchamp?" (Instituto Itaú Cultural)
3. Projeto Cães de Caça era composto do "Poema Enterrado", de Ferreira Gullar, e do "Teatro Integral", de Reinaldo Jardim; "Desvio para o Vermelho" exibia pinturas de Antonio Dias, Tunga, Vergara, Leonilson, entre outros.
4. Cf. Celso Favaretto, "A Invenção de Hélio Oiticica" (Edusp).


A obra
"Cildo Meireles", Phaidon (Londres), 160 pág., US$ 29,95

Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente, autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Dórea Books and Art).


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