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Uma teoria poética da sociedade
por Lisette Lagnado
Cildo Meireles acaba de ser contemplado pela editora inglesa Phaidon com uma ampla publicação de
seu trabalho na série "Contemporary Artists". Caberia,
em primeiro lugar, ressaltar as qualidades dessa coleção, por suas características intrínsecas. São livros que
aliam farta iconografia e reflexão teórica. Além de um
texto retrospectivo, que transcende a mera historicização do percurso criativo, o leitor é brindado com uma
entrevista acompanhada de escritos do artista e de uma
razoável cronologia.
A seção chamada "Artist's Choice" ainda acresce motivos de interesse. Voltada para uma livre escolha do artista, propicia uma entrada na sua biblioteca pessoal,
colocando a série num patamar diferenciado. A opção
de Cildo Meireles recaiu sobre "El Jardín de Senderos Que Se Bifurcan" (1941), de Jorge Luis Borges, cujo título no original, data correta e divisão de parágrafos infelizmente escaparam aos cuidados editoriais. A predileção por esse conto tem uma justificativa de longa data
no percurso do artista. De fato, qualquer estudioso de
sua obra precisa necessariamente voltar aos "Espaços
Virtuais: Cantos" (1967-68), que alteraram nossa percepção do espaço físico. Por meio de paradoxos visuais,
o processo de Meireles desvia a sentença minimalista
"O que você vê é o que você está vendo" para "O que você vê não é o que você está vendo".
Mas é nas duas versões de "Malhas da Liberdade"
(1976) que podemos entender mais claramente a ruptura da grade modernista de Mondrian para a criação de
planos de intersecção capazes de se multiplicar no espaço. A estrutura matemática de "cascatas de bifurcações"
ganha maior complexidade na instalação "Através"
(1983-89): oito toneladas de vidro partido recobrem
uma superfície de 225 metros quadrados formando um
labirinto. Uma série de sobreposições de transparências
(redes de pescar, mosquiteiro, vual, celofane) e de barreiras (cercas, divisórias e obstáculos de toda espécie)
inviabilizam a passagem, interditando fluxos de circulação.
A ruptura
Este é o segundo esforço de condensar a
obra do artista numa publicação, precedido pelo catálogo de sua retrospectiva no Instituto Valenciano de Arte
Moderno (Ivam), em 1995. São iniciativas valiosas para
a memória da cultura, se levarmos em conta que a arte
que foi produzida no Brasil dos anos 60 e 70 ficou praticamente sem registro documental, situação agravada
pela ausência de uma prática de aquisição de obras.
"Desvio para o Vermelho" é um exemplo que ilustra
bem a indeterminação e o vazio institucional de um
meio artístico ainda descrente do valor de seus expoentes. Por falta de colecionador, a remontagem da instalação na 24ª Bienal de São Paulo exigiu um novo trabalho
de acumulação, pois o destino da coleção de objetos
vermelhos havia sido o da dispersão ao longo de 15
anos.
A presença de Cildo Meireles no Núcleo Histórico da
última Bienal de São Paulo devia-se à curadoria de Paulo Herkenhoff. Como autor do principal texto do livro
em tela, Herkenhoff desenvolve sua releitura do "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade. Mediante o
conceito de canibalismo cultural, rastreia trabalhos de
Meireles que se opõem à noção eurocentrista de história. "Cruzeiro do Sul" (1969-70) e "Olvido" (1987-89)
são analisados como estratégias críticas de absorção
dos valores do Outro.
O eixo argumentativo de Herkenhoff baseia-se, com
justeza, em Marcel Duchamp e Hélio Oiticica. As afinidades com o primeiro obedecem diversas ordens: o
"readymade", os jogos semânticos, a escatologia, as ilusões de ótica, a crítica da arte como capital (2).
É certamente na relação de Meireles com Oiticica que
compreendemos melhor seu alcance para a contemporaneidade. Muitas analogias conceituais os unem: ambos compõem obras incorporando outros autores (3);
criam espaços de caráter não-utilitário (nunca é um jardim propriamente dito; nem uma sala de estar no sentido habitual); levam a cor a se desenvolver na vivência
do percurso; constroem penetráveis como labirintos
virtuais; alimentam uma ambiguidade entre os elementos da natureza e o "elaborado" (aquilo que é fabricado
pelo homem).
A 24ª Bienal evidenciava com clareza a incidência do
espaço ambiental no "Desvio para o Vermelho". Como
na "pintura depois do quadro", trata-se, sem abdicar da
cor, de estimular outros sentidos que o visual. A proposição do supra-sensorial retorna então na sua plenitude
com o trabalho de Meireles: o indivíduo conquista uma
"percepção total", articulando objeto do cotidiano e
ambiente.
Esboço de contexto
A interpretação de Herkenhoff, ao afirmar que Meireles elabora uma "teoria poética da sociedade", procura estabelecer uma medida entre a pesquisa formal e as conotações políticas. Tanto a
economia do minimalismo como textos que investem
sua argumentação no contexto político são inadequados por acabarem desprezando a densidade expressiva
dos materiais usados.
O fôlego do raciocínio de Herkenhoff vai, no entanto,
ficando cada vez mais entrecortado por intervalos menores. Construído a partir de vários intertítulos significativos (capital, ideologia circulante, cultura do excesso,
redes e circuitos, entre outros), desemboca nos três pequenos parágrafos finais deixando a sensação de que
houve uma edição abrupta.
A entrevista do livro ficou a cargo de Gerardo Mosquera, co-curador com Dan Cameron (que também escreve um artigo) da grande mostra sobre o artista. É interessante observar como Mosquera assume a leitura da
antropofagia cunhada por Herkenhoff na 24ª Bienal de
São Paulo para propor uma inversão: Cildo Meireles estaria fazendo arte internacional com jeito brasileiro (e
não arte brasileira com jeito internacional, como costuma-se dizer de forma pejorativa). Segundo o crítico cubano, a arte brasileira nunca perdeu a dimensão da corporeidade, mesmo quando assumiu as perspectivas do
minimal e do conceitual.
Antes diálogo que mera sequência de perguntas e respostas, a entrevista tem a função de esboçar as grandes
linhas do contexto histórico. Sabe-se que, além de ser
um período de resistência ao regime militar, foi também uma época em que os artistas criticavam o sistema
da arte, lançando mão de materiais e procedimentos
efêmeros. Nesse sentido, a precariedade do ambiente
artístico não chegava a inibir o impulso criativo, uma
vez que os artistas estavam justamente investigando
uma arte de limites, de natureza experimental, alheia ao
mercado. Rejeitava-se o sistema da arte, mas, paradoxalmente, como formularia Celso Favaretto, havia nas
proposições estéticas o pressuposto de um público participante (4).
Mosquera insiste nos desenhos (não obstante pouco
conhecidos) realizados por Cildo Meireles até seus 20
anos, a fim de traçar um plano de fundo para as "Inserções em Circuitos Ideológicos" (1970). Gravar em "silk-screen" mensagens subversivas em garrafas de Coca-Cola e carimbar "Quem matou Herzog?" em cédulas de
dinheiro, devolvendo esses produtos à sociedade, é um
gesto compreendido simultaneamente como ato de
guerrilha artística e como "tipo de graffiti móvel".
O procedimento engloba as semânticas pop e conceitual: apropriar-se de imagens de consumo de massa para questionar seu circuito de circulação. Um ano depois, nas "Inserções em Circuitos Antropológicos",
Meireles acrescentaria o dado do "handymade" no
"readymade", fabricando fichas telefônicas ou de transporte em diversos materiais. Mosquera tem em mente
um foco preciso quando formula suas perguntas acerca
da cena social e política do Rio de Janeiro nos anos 70:
mostrar que a "arte engajada" de Meireles não abdicou
dos aspectos formais do trabalho, ao mesmo tempo em
que consegue transpor os limites da metáfora.
A despeito de alguns trabalhos reproduzidos várias
vezes, o livro tem a qualidade de apresentar instalações
montadas em exposições internacionais que não puderam, até agora, ser vistas aqui. É o caso da já citada
"Através" e de "Marulho" (1991-97), exibidas na Kanaal
Art Foundation (Bélgica) e na Bienal de Johannesburgo,
respectivamente. Parte dessa falta de visibilidade será
sanada em julho, quando o Museu de Arte Moderna de
São Paulo sediar a retrospectiva atualmente no New
Museum of Contemporary Art de Nova York. Uma versão em português dessa importante monografia está
sendo providenciada pela editora Cosac & Naify.
Notas
1. O título vem de uma expressão criada por Paulo Herkenhoff
-"uma teoria poética da sociedade"- para designar o trabalho de
Cildo Meireles.
2. Cf. Paulo Herkenhoff, "Por que Cildo? -Duchamp e Cildo e Duchamp", in "Por que Duchamp?" (Instituto Itaú Cultural)
3. Projeto Cães de Caça era composto do "Poema Enterrado", de
Ferreira Gullar, e do "Teatro Integral", de Reinaldo Jardim; "Desvio
para o Vermelho" exibia pinturas de Antonio Dias, Tunga, Vergara,
Leonilson, entre outros.
4. Cf. Celso Favaretto, "A Invenção de Hélio Oiticica" (Edusp).
A obra
"Cildo Meireles", Phaidon (Londres), 160 pág., US$ 29,95
Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente, autora de
"Leonilson - São Tantas as Verdades" (Dórea Books and Art).
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