São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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Ponto de Fuga

Inteligência e afeto


Tzvetan Todorov é um pensador e teórico de primeira importância; interroga-se, em seu livro alarmado, sobre o que teria posto a literatura em perigo pela teoria

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Tomemos como exemplo os alunos dos cursos de letras das universidades brasileiras: boa parte, com idades que variam em torno dos 20 anos, pouco ou quase nada leu de nossos romancistas ou poetas. Quase nenhum deles ouviu falar de Baudelaire, Edgar Allan Poe, Goethe, Fernando Pessoa, e raríssimos os leram. (...) O fato é que, até este momento, com raras exceções, a literatura -pelo menos de maneira direta, isto é, mediante a leitura de romances, contos, poemas etc.- não participou de sua formação intelectual e afetiva"...
Quem escreve isso é Caio Meira, na introdução para "A Literatura em Perigo", livro de Tzvetan Todorov, que ele traduziu com elegância para a Difel (2009).
Caio Meira atua não num departamento "de letras", como diz seu texto, mas num dos departamentos "de teoria literária" que se multiplicaram pelo Brasil afora. Há algumas décadas, envergonhados de não parecerem suficientemente rigorosos ou científicos, eles abandonaram as belas denominações humanistas (de letras, de estudos literários ou de literatura) para proclamar a indiscutível tirania teórica.
Nas universidades, com, felizmente, boas exceções, muitos alunos não são levados a ampliar e assentar uma cultura nascida pelo afeto. Leem, de maneira instrumental, sob encomenda, o romance ou o poema ao qual se refere o grande nome das teorias que estudam no momento. Chegam a Proust, a Dickens ou a Leopardi não pelo interesse ou pela paixão que esses autores deveriam despertar, impondo a urgência da leitura, mas por desencarnada necessidade técnica ou profissional.

Mapa
Todorov é um pensador e teórico de primeira importância. Interroga-se, em seu livro alarmado, quase manifesto, sobre o que teria posto a literatura em perigo pela teoria e levado "o ponteiro da balança a não se deter num ponto de equilíbrio".
Esmiúça várias causas. Afirma, porém, graças ao tom pessoal e biográfico com que o livro começa, a necessidade de um percurso íntimo com a ficção e a poesia.
Qualquer teoria pode servir como atalho, economizando a frequentação de romances e poemas. Mas apenas essa frequentação conduz ao saber mais profundo, em grande parte intuitivo e silencioso.
É fácil identificar a esterilidade: está ali onde o prazer da leitura foi substituído pela engenhosidade analítica. Quando o pensamento astucioso eliminou os procedimentos sedimentares que só a assimilação das obras lidas pode provocar.

Trono
"Estaria eu sugerindo que o ensino da disciplina [teórica] deve se apagar inteiramente em prol do ensino das obras?", escreve Todorov.
As diversas teorias literárias são fecundas. Para tanto, porém, devem limitar-se ao papel de um instrumento, possível e parcial, como servas humildes, e não tiranas triunfantes.
Antes delas vem a leitura vivida e humanista.
"Em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim", diz Todorov. Caso contrário, desaparece a cultura individual, e tais meios tornam-se a melhor alavanca para a ignorância.

Identidades
Entre os livros de Todorov está, fascinante, "A Conquista da América - A Questão do Outro" (Martins Fontes, 1983). Ao ler as narrativas deixadas no século 16 sobre a América espanhola, mostra, junto ao tremendo genocídio cometido pelos europeus, modos, tantas vezes assustadores e sempre complexos, de delinear o perfil de si mesmo e do outro.


jorgecoli@uol.com.br


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