São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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+(s)ociedade

A Detroit do jogo

Las Vegas sucumbe à crise econômica, vê seus hotéis e cassinos faraônicos perderem clientela e se torna a "cidade mais vazia dos EUA"

NICOLAS BOURCIER

Ponta sul da Strip, a mais célebre artéria de Las Vegas, em uma noite de primavera. São centenas de pessoas passeando, de bocas abertas e olhos escancarados, nas alamedas extravagantes do M, hotel-cassino-spa de luxo de US$ 1 bilhão que acaba de ser inaugurado.
Árvores exóticas, piscina glamourosa e mármore italiano: o M é o que existe de melhor. Sem moderação. Como a adega com fontes de vinho, suas 10 mil garrafas e seu Château Pétrus a US$ 8.000 (R$ 18 mil).
As pessoas bebem e riem diante do feltro verde e dos caça-níqueis milagrosos. Como se não houvesse crise.
Assim como outros, esse projeto foi lançado há pouco mais de dois anos, em uma época bem longínqua em que os créditos eram assinados rapidamente e os "subprimes" não apareciam na primeira página dos jornais.
Hoje o M parece delirante. Pois o setor econômico mais poderoso do Estado de Nevada está moribundo, e os turistas que vinham se esbaldar nesta cidade do jogo e da luxúria apertam os cintos para valer.

Fechando as portas
Apesar da inauguração de diversos cassinos, a receita total em Las Vegas está em queda.
Em janeiro, cerca de 30 mil reservas de hotéis foram canceladas, principalmente por empresas que desistiram de seus seminários na cidade. Em 2008, o número de conferências profissionais já caíra 12%.
Outro sinal dos tempos, as "Folies Bergère" do hotel Tropicana, o "icônico teatro de revista "topless'", tiveram de fechar as portas em 28 de março por motivos financeiros, depois de terem animado esse palco durante 49 anos.
No entanto, de um lado e de outro da Strip, a cidade não para de ver novos canteiros de obras. Lançados em uma fuga desenfreada adiante, dois novos "resorts" (entre os quais o faraônico Fontainebleau, com seus vidros fumês, de US$ 3 bilhões) ainda mais caros, maiores, com salas de jogo desmesuradas, deverão ficar prontos neste ano, no pior momento.
"Pensávamos que o setor nunca fosse parar", admite John Restrepo, renomado consultor de Las Vegas.

Cidade esvaziada
À crise do turismo veio se acrescentar a da habitação. Há dez anos Las Vegas era a cidade que mais crescia nos EUA.
Milhares de pessoas vinham se instalar todos os meses na metrópole de Nevada, a ponto de duplicar sua população entre 1990 e 2007. Empregos, residências familiares e acolhimento simpático: a animada Las Vegas assumia ares de terra prometida.
Brutalmente, a roda girou.
Em uma classificação da revista "Forbes", Las Vegas está pela primeira vez no topo, à frente de Detroit e Atlanta, como "a cidade mais vazia" do país. O valor dos bens imobiliários caiu 41% em média. O show imobiliário terminou.
"Esta é a pior catástrofe já registrada aqui", salienta Franck Streshley, presidente do Conselho de Controle do Jogo no Estado. Para diversos especialistas, Las Vegas paga hoje o preço por ter dado as costas às classes médias.
Até a primeira metade dos anos 1990, a cidade foi dos "colarinhos-azuis", trabalhadores americanos que vinham por um fim de semana ou nas férias para se dedicar, em família, ao "inferno do jogo", enquanto aproveitavam as distrações mais comportadas.
Com a onda do crédito fácil, os preços começaram a aumentar. Os estabelecimentos se voltaram para o luxo, os hotéis-cassinos se transformaram em cassinos-resorts.
Bellagio, Venetian, Mandalay Bay, todos decidiram oferecer os mais reluzentes shopping centers do mundo, abertos dia e noite. E, mais que nunca, a obsessão de ocupar os 140 mil quartos de hotel que a cidade oferece.

Descontos
Curiosamente, como nota uma pesquisa da "Economist", alguns proprietários de cassinos se mostram hoje mais pragmáticos. Os preços dos quartos de hotel baixaram 30% em média, um recorde nacional. Até o luxuosíssimo Encore, inaugurado em dezembro de 2008, oferece suítes a preço reduzido.
No Condado de Beatty, a uma hora e meia de carro de Las Vegas, empresários pretendem construir cassinos destinados à clientela hispânica. Outros diversificam suas ofertas e tentam suavizar sua imagem para atrair novamente as empresas.
"Mesmo que a crise se estabilize, levaremos tempo para nos recuperarmos", calcula o especialista John Restrepo. "Mas não seremos a Detroit, a decadente cidade industrial de Michigan, do sul", rebate.
Por enquanto, na Rescue Mission da rua Bonanza há muita gente. Eric Mahev, um dos responsáveis pelo centro de ajuda aos desfavorecidos, fornece 850 refeições por dia, ou seja, um aumento de 20% em um ano. "Isso não para", diz.
"São ainda mais numerosos no fim do mês, quando os órgãos federais distribuem ajuda. Eles jogam antes de vir para cá." Em Las Vegas, o vírus do jogo não perde a força tão rapidamente quanto as finanças.


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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