São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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+(L)ivros

Homens de boa fortuna

"Filoctetes", de Sófocles, e "A Fragilidade da Bondade", de Martha Nussbaum, abordam a importância da moral nas ações humanas

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Publicado originalmente em 1986, "A Fragilidade da Bondade", de Martha Nussbaum, recebe agora uma versão em português. Trata-se de um livro singular, que reuniu uma legião de admiradores logo que veio à luz.
Escrita com mão confiante, a obra é de uma ambição igualável ao seu tamanho -são mais de 500 páginas em letra miúda, cujo propósito é estabelecer um elo entre textos poéticos e filosóficos da Grécia antiga, não sem criar uma ponte entre esses e questões atuais da teoria moral, além de sugerir respostas para problemas éticos ao leitor do século 20.
Ao conjugar literatura e filosofia, a autora busca tratá-las como congruentes em termos de estilo, método e tema.
Para tanto, arma um grande palco e nele encena suas ideias, sem dúvida interessantes, mas cujo enredo reflete mais suas próprias especulações do que a evidência dos fatos.

O bem e o mal
Eis a história que ela nos conta: a fortuna moral ("moral luck") é tudo que é externo e contingente na experiência ética. A questão é saber se a fortuna é responsável por sermos pessoas moralmente boas ou más. As opiniões a respeito, expressas na poesia grega do século 5º a.C. e na filosofia do século 4º a.C., compõem o horizonte do livro.
Segundo Nussbaum, os poetas espelham uma visão profundamente enraizada na cultura grega clássica sobre a relevância da fortuna moral. Platão, por sua vez, teria elaborado (na "República" e no "Banquete") uma teoria que nega todo papel de destaque aos efeitos morais da fortuna.
Já o Platão do "Fedro", ainda segundo a autora, começou a reformular suas ideias, e com Aristóteles a fortuna moral teria sido definitivamente reabilitada, à força de uma doutrina cujos elementos refletem fielmente as opiniões da cultura grega, como antes haviam feito os poetas.
"A Fragilidade da Bondade" é o lema que resume um dos lados da disputa identificada por Nussbaum no pensamento ético grego -a vulnerabilidade dos valores aos assaltos da fortuna. Do outro lado estaria a autossuficiência da razão, a aspiração de resguardar da fortuna a vida ética.

Platão versus Aristóteles
Quanto à autora, sua posição é clara: os poetas e Aristóteles estavam corretos, e Platão, equivocado ao se furtar a esta única verdade -que, sem a fortuna, a própria bondade humana é impossível.
Contada dessa forma, a história adquire ares de rixa, com recortes nítidos a separar uns dos outros: personagens como Hemon e Tirésias, além do próprio Aristóteles, são vistos com bons olhos, como defensores da sensitividade ao risco e aos potenciais conflitos da decisão moral.
Agamêmnon e Etéocles, Creonte e Platão são tidos como avessos à complexidade, devotados a eliminar a fortuna do universo moral: são, em suma, kantianos "avant la lettre".
Não se pode negar que várias das interpretações de Nussbaum são poderosas e instigantes, mas as luzes que lançam, de tão claras em sua certeza, distorcem o objeto em prol do argumento.
Agamêmnon e Etéocles exprimem, diz, o conflito indissolúvel entre deveres militares e familiares.
Mas, para a autora, não é tanto o assassinato de Ifigênia que se deve reprovar em Agamêmnon, mas seu estado de espírito ao consenti-lo; não é tanto a decisão de cometer fratricídio que torna Etéocles condenável, mas não ter apreciado sua gravidade.
É claro que tanto Sócrates como Platão desconfiam dos desejos não racionais, mas isso basta para Nussbaum afirmar que a hostilidade à ideia de fortuna moral e o anseio de resguardar a vida humana de todo tipo de acaso são os responsáveis pela recomendação platônica de nos entregar à razão.
Mas será que isso é dito expressamente nos textos platônicos? Será que a fortuna moral tem papel assim tão grande nos diálogos, será que é fator decisivo na motivação de sua teoria sobre o bem?
No anseio de mostrar como a tragédia grega é importante fonte de reflexão sobre a fragilidade dos valores éticos, Nussbaum afirma que a "Hécuba" de Eurípides representa a essência da virtude humana, cujo caráter é minado pelos eventos terríveis com que se depara.
Seria perfeitamente lícito, porém, dizer que representa uma mulher cuja fraqueza de caráter não teria vindo à tona caso esses eventos terríveis não tivessem ocorrido.
Essa, pelo menos, é uma interpretação possível do personagem Neoptólemo, na tragédia "Filoctetes", de Sófocles, que sai agora com tradução de Trajano Vieira.
A caminho de Troia, Filoctetes é abandonado na ilha deserta de Lemnos por Odisseu e os dois atridas, Agamêmnon e Menelau, que não suportam mais seus gritos de dor e o cheiro que exala da chaga em seu pé, picado por uma serpente.
O único meio de sobrevivência do herói são o arco e as flechas, um presente de Héracles que o torna invencível.
Agora, dez anos mais tarde, um vaticínio diz que Troia só cairá se Filoctetes tomar parte na batalha.
Neoptólemo, filho de Aquiles, é então persuadido por Odisseu a resgatar Filoctetes e conduzi-lo a Troia por meios ardilosos. Neoptólemo se vê dilacerado entre o que é justo (obedecer aos superiores) e o que lhe é congenial (compadecer-se de Filoctetes).

Sonoridade
Preocupação constante na nova tradução brasileira é reproduzir a sonoridade do grego. Isso é traço marcante do tradutor, que tem notável produção na área.
Cito apenas um exemplo, no qual a presença marcante da sibilante /s/ ecoa o acúmulo de vogais /e/, /a/, /o/, /i/ do original: "Sono, avesso ao desassossego, Sono, adverso ao sestro sinistro, assoma, solícito sopro, supra, solícito! Sustém nas retinas a luz, serena luz difusa agora sus!, susta o dissabor!"
Para sublinhar alguns termos-chave, costuma-se transliterá-los e traduzi-los: assim, "ananke-necessidade", "hamartia-erro", "ara-enojo", "kairós-o oportuno". É comum também o empenho em guindar a linguagem, no intuito de conferir tom elevado ao português, mesmo quando o original é mais prosaico.
Diz-se "Laertíade" quando o grego traz "Odisseu", usa-se "priâmea pólis" para traduzir "Troia", "pés-velozes" em vez de "Aquiles".
A muitos isso parecerá plenamente justificado, a fim de recriar a obra, enquanto outros verão aqui certa ingerência do tradutor. Estes e aqueles, porém, lerão o livro com proveito, tal como farão com a obra de Nussbaum.

JOSÉ MARCOS MACEDO é professor de letras na Universidade de São Paulo.


A FRAGILIDADE DA BONDADE
Autor:
Martha Nussbaum
Tradução: Ana Aguiar Cotrim
Editora: WMF Martins Fontes (tel. 0/ xx/11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 89 (528 págs.)

FILOCTETES
Autor:
Sófocles
Tradução: Trajano Vieira
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 34 (216 págs.)



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