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+(L)ivros
Homens de boa fortuna
"Filoctetes", de Sófocles, e "A Fragilidade da Bondade", de Martha Nussbaum, abordam
a importância da moral nas ações humanas
JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Publicado originalmente em 1986, "A
Fragilidade da Bondade", de Martha
Nussbaum, recebe
agora uma versão em português. Trata-se de um livro singular, que reuniu uma legião de
admiradores logo que veio à
luz.
Escrita com mão confiante, a
obra é de uma ambição igualável ao seu tamanho -são mais
de 500 páginas em letra miúda,
cujo propósito é estabelecer
um elo entre textos poéticos e
filosóficos da Grécia antiga,
não sem criar uma ponte entre
esses e questões atuais da teoria moral, além de sugerir respostas para problemas éticos
ao leitor do século 20.
Ao conjugar literatura e filosofia, a autora busca tratá-las
como congruentes em termos
de estilo, método e tema.
Para tanto, arma um grande
palco e nele encena suas ideias,
sem dúvida interessantes, mas
cujo enredo reflete mais suas
próprias especulações do que a
evidência dos fatos.
O bem e o mal
Eis a história que ela nos conta: a fortuna moral ("moral
luck") é tudo que é externo e
contingente na experiência ética. A questão é saber se a fortuna é responsável por sermos
pessoas moralmente boas ou
más. As opiniões a respeito, expressas na poesia grega do século 5º a.C. e na filosofia do século 4º a.C., compõem o horizonte do livro.
Segundo Nussbaum, os poetas espelham uma visão profundamente enraizada na cultura grega clássica sobre a relevância da fortuna moral.
Platão, por sua vez, teria elaborado (na "República" e no
"Banquete") uma teoria que
nega todo papel de destaque
aos efeitos morais da fortuna.
Já o Platão do "Fedro", ainda
segundo a autora, começou a
reformular suas ideias, e com
Aristóteles a fortuna moral teria sido definitivamente reabilitada, à força de uma doutrina
cujos elementos refletem fielmente as opiniões da cultura
grega, como antes haviam feito
os poetas.
"A Fragilidade da Bondade" é
o lema que resume um dos lados da disputa identificada por
Nussbaum no pensamento ético grego -a vulnerabilidade
dos valores aos assaltos da fortuna. Do outro lado estaria a
autossuficiência da razão, a aspiração de resguardar da fortuna a vida ética.
Platão versus Aristóteles
Quanto à autora, sua posição
é clara: os poetas e Aristóteles
estavam corretos, e Platão,
equivocado ao se furtar a esta
única verdade -que, sem a fortuna, a própria bondade humana é impossível.
Contada dessa forma, a história adquire ares de rixa, com
recortes nítidos a separar uns
dos outros: personagens como
Hemon e Tirésias, além do próprio Aristóteles, são vistos com
bons olhos, como defensores da
sensitividade ao risco e aos potenciais conflitos da decisão
moral.
Agamêmnon e Etéocles,
Creonte e Platão são tidos como avessos à complexidade,
devotados a eliminar a fortuna
do universo moral: são, em suma, kantianos "avant la lettre".
Não se pode negar que várias
das interpretações de Nussbaum são poderosas e instigantes, mas as luzes que lançam, de
tão claras em sua certeza, distorcem o objeto em prol do argumento.
Agamêmnon e Etéocles exprimem, diz, o conflito indissolúvel entre deveres militares e
familiares.
Mas, para a autora, não é tanto o assassinato de Ifigênia que
se deve reprovar em Agamêmnon, mas seu estado de espírito
ao consenti-lo; não é tanto a decisão de cometer fratricídio que
torna Etéocles condenável,
mas não ter apreciado sua gravidade.
É claro que tanto Sócrates
como Platão desconfiam dos
desejos não racionais, mas isso
basta para Nussbaum afirmar
que a hostilidade à ideia de fortuna moral e o anseio de resguardar a vida humana de todo
tipo de acaso são os responsáveis pela recomendação platônica de nos entregar à razão.
Mas será que isso é dito expressamente nos textos platônicos? Será que a fortuna moral
tem papel assim tão grande nos
diálogos, será que é fator decisivo na motivação de sua teoria
sobre o bem?
No anseio de mostrar como a
tragédia grega é importante
fonte de reflexão sobre a fragilidade dos valores éticos, Nussbaum afirma que a "Hécuba" de
Eurípides representa a essência da virtude humana, cujo caráter é minado pelos eventos
terríveis com que se depara.
Seria perfeitamente lícito,
porém, dizer que representa
uma mulher cuja fraqueza de
caráter não teria vindo à tona
caso esses eventos terríveis não
tivessem ocorrido.
Essa, pelo menos, é uma interpretação possível do personagem Neoptólemo, na tragédia "Filoctetes", de Sófocles,
que sai agora com tradução de
Trajano Vieira.
A caminho de Troia, Filoctetes é abandonado na ilha deserta de Lemnos por Odisseu e os
dois atridas, Agamêmnon e
Menelau, que não suportam
mais seus gritos de dor e o cheiro que exala da chaga em seu
pé, picado por uma serpente.
O único meio de sobrevivência do herói são o arco e as flechas, um presente de Héracles
que o torna invencível.
Agora, dez anos mais tarde,
um vaticínio diz que Troia só
cairá se Filoctetes tomar parte
na batalha.
Neoptólemo, filho de Aquiles, é então persuadido por
Odisseu a resgatar Filoctetes e
conduzi-lo a Troia por meios
ardilosos. Neoptólemo se vê dilacerado entre o que é justo
(obedecer aos superiores) e o
que lhe é congenial (compadecer-se de Filoctetes).
Sonoridade
Preocupação constante na
nova tradução brasileira é reproduzir a sonoridade do grego.
Isso é traço marcante do tradutor, que tem notável produção
na área.
Cito apenas um exemplo, no
qual a presença marcante da sibilante /s/ ecoa o acúmulo de
vogais /e/, /a/, /o/, /i/ do original: "Sono, avesso ao desassossego, Sono, adverso ao sestro sinistro, assoma, solícito sopro,
supra, solícito! Sustém nas retinas a luz, serena luz difusa agora sus!, susta o dissabor!"
Para sublinhar alguns termos-chave, costuma-se transliterá-los e traduzi-los: assim,
"ananke-necessidade", "hamartia-erro", "ara-enojo", "kairós-o oportuno". É comum
também o empenho em guindar a linguagem, no intuito de
conferir tom elevado ao português, mesmo quando o original
é mais prosaico.
Diz-se "Laertíade" quando o
grego traz "Odisseu", usa-se
"priâmea pólis" para traduzir
"Troia", "pés-velozes" em vez
de "Aquiles".
A muitos isso parecerá plenamente justificado, a fim de
recriar a obra, enquanto outros
verão aqui certa ingerência do
tradutor. Estes e aqueles, porém, lerão o livro com proveito,
tal como farão com a obra de
Nussbaum.
JOSÉ MARCOS MACEDO é professor de letras
na Universidade de São Paulo.
A FRAGILIDADE DA BONDADE
Autor: Martha Nussbaum
Tradução: Ana Aguiar Cotrim
Editora: WMF Martins Fontes (tel. 0/
xx/11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 89 (528 págs.)
FILOCTETES
Autor: Sófocles
Tradução: Trajano Vieira
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 34 (216 págs.)
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