São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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+ debate

Circuito exibidor para filmes nacionais tem problemas estruturais, mas a produção deveria crescer

Cinema frágil, argumentos idem

ANDRÉ KLOTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

De quando em quando aparece alguma pessoa que se arvora a dar palpites e proferir qualificações pouco lisonjeiras ao cinema brasileiro, mesmo sem ter a menor informação sobre o assunto. O último caso desses, recheado de falsas afirmações técnicas, foi publicado com o sugestivo título de "Filmes na Lata do Lixo" (Mais! de 19/5). E dá-lhe cineastas preocupados em responder para não ficar com uma pecha que, historicamente, reincide na reputação do frágil cinema brasileiro.
O artigo começa afirmando solenemente a inverdade de que há 365 filmes em produção no Brasil, e que são lançados em circuito comercial apenas 15 por ano. Com isso conclui que não adianta produzir tanto, pois os filmes são divorciados do país. Não procede. A informação correta é: produz-se no Brasil de 30 a 40 filmes ao ano, entre documentários e ficção, e existem 365 filmes em processo de captação de recursos -a maioria não vai conseguir captar nenhum centavo. Só no ano passado foram 51 títulos lançados e, para este ano, estão previstos 32, no mínimo. A dedução correta é: 40 filmes é um número insuficiente se comparado com o tamanho do país, é insuficiente também se comparado ao resto do mundo (França, 200; EUA, 600; Índia, 800 filmes ao ano), ou mesmo se comparado com a produção brasileira dos anos 70 (80 filmes por ano em média).


O capital estrangeiro não se interessou em produzir filmes no Brasil até que o Estado desse incentivo fiscal


A segunda afirmação sem pé nem cabeça, é que o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social está financiando salas de cinema porque os nossos filmes têm baixa participação na bilheteria. De onde foi tirada semelhante asserção, seria curioso saber. As salas de cinema que estão sendo financiadas exibirão filmes de todas as nacionalidades. O Brasil possui uma relação aproximada de uma sala de cinema para cada 100 mil habitantes, contra uma sala para cada 10 mil habitantes nos EUA, para cada 37 mil na Argentina e 35 mil no México. As empresas multinacionais da exibição têm o diagnóstico de que há ainda muito espaço para aumentar o circuito exibidor nacional, mas esse processo de expansão é lento, e um dos fatores disso é o custo do dinheiro. Daí esse financiamento do BNDES, que alguns exibidores dizem ainda ser tímido.
Depois de alguns impropérios disfarçados de modernidade, que lembram os tortuosos raciocínios de Ipojuca Pontes, Collor de Mello etc., o articulista conclui que o Estado brasileiro conseguiu impedir que o capital estrangeiro controlasse a produção de cinema no país. Absurdo maior não poderia existir: o capital estrangeiro não se interessou em produzir filmes no Brasil até que o Estado desse incentivos para que o fizesse, ou seja, o Estado tem estimulado o investimento das distribuidoras estrangeiras e as parcerias em produção, e não o contrário.
Das lorotas (nem sei se são, pode ser só ignorância mesmo), o articulista parte para as ofensas e frases de efeito ("coronéis do acetato", "funcionário público sem concurso") e conclui, com uma certa altivez, que tudo poderá se resolver no futuro, porque a convergência das mídias poderá ser modelada com vistas à democracia moderna. Bonito raciocínio. Seria melhor ainda se fosse possível entender o que o autor quer dizer com isso. E a estas alturas me vem uma pergunta: porque qualquer oportunista se acha no direito de interpretar, concluir, achincalhar o cinema brasileiro e as pessoas (pois são pessoas que exercem a profissão) sem o menor fundamento?
A resposta é algo que intriga, e para não dar margem a raciocínios paranóicos, minhas dúvidas giram em torno de interpretações, digamos, psicanalíticas. Será que um artigo desses é puro narcisismo -a tal vontade de aparecer-, ou o nobre missivista algum dia desejou ser cineasta e não teve coragem de encarar a dura profissão? É difícil fazer cinema no Brasil, e mais difícil ainda ter que ficar lendo esse lixo difamatório travestido em conhecimento técnico. Alguém pode até acreditar que seja verdade!

André Klotzel é cineasta paulista, diretor de filmes como "A Marvada Carne" (1986), "Capitalismo Selvagem" (1994) e "Memórias Póstumas" (1999).


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