São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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DEMOCRACIA NA AMÉRICA

ANALISTAS APONTAM LIMITES E IMPASSES DA CONJUNTURA POLÍTICA E DOS PROCESSOS DEMOCRÁTICOS NO BRASIL, NA AMÉRICA LATINA E NOS ESTADOS UNIDOS

O fracasso da diferença

Para o cientista político Scott Mainwaring, a diminuição das divergências ideológicas entre os partidos na América Latina contri bui para a instabilidade política no continente

DA REDAÇÃO

Há mais de um traço em comum nas crises políticas que recorrentemente atingem diferentes países latino-americanos, afirma o cientista político norte-americano Scott Mainwaring, 50, organizador do livro "The Third Wave of Democratization in Latin America" (A Terceira Onda de Democratização na América Latina, Cambridge University Press, 432 pags., US$ 28,99 - R$ 69), publicado neste mês nos EUA e a sair no mês que vem na Inglaterra.


Quando o sistema deixa de produzir resultados e começa a produzir mais pobreza numa sociedade já muito pobre, a falta de alternativas ideológicas é um problema


Para o diretor do Instituto Kellogg para Estudos Internacionais, da Universidade de Notre Dame, a intensificação dessas crises nos últimos anos deve-se à falência dos Estados e à diminuição das diferenças ideológicas entre os principais partidos dos países da região.
Segundo Mainwaring, tal estreitamento de opções políticas na última década, associado à incapacidade de "produzir resultados para as pessoas", levou a crises como as vividas por Venezuela, Argentina e, mais recentemente, Bolívia.
Embora o fenômeno se repita no Brasil, com a aproximação entre PT e PSDB, o cientista político vê no país uma exceção. Por aqui, ele diz, os partidos se tornaram mais institucionalizados na última década, em grande medida por causa da estabilização econômica bem-sucedida.
A seguir, trechos da entrevista.
 

Folha - A América Latina vem, nos anos recentes, em diferentes países, enfrentando crises políticas. O sr. vê algo em comum nelas todas?
Scott Mainwaring -
O cerne são os problemas sociais e econômicos. Isso não quer dizer que não haja problemas políticos. Talvez o problema político mais importante a destacar é esse: a fragilidade do Estado.

Folha - A que isso se deve? À liberalização econômica dos anos 90? Os países latino-americanos têm condições de bancar um Estado que cumpra suas funções?
Mainwaring -
Sem um Estado que funcione razoavelmente bem, a economia e a democracia não funcionam bem. Quando destaco sua importância, não quero idealizá-lo como solução para todos os problemas. Acho que o mercado é muito importante, e a sociedade civil também. Hoje o Estado deveria regularizar a economia, educar, proteger as pessoas depois que se aposentam. Na maioria de suas funções, o Estado está fracassando na região. Se isso se deve à diminuição da presença do Estado nos anos 90? A meu ver, não.

Folha - Por quê?
Mainwaring -
Um Estado grande, mas ineficiente, não resolve o problema. Por outro lado, em muitos casos, a redução do Estado foi um pouco cega. A preocupação não foi formar um Estado eficiente, mas um Estado menor.

Folha - O sr. já disse que a falta de enraizamento dos partidos na sociedade, nesses países, poderia trazer instabilidade política. Isso contribui para situações como o "que se vayan todos" da Argentina, Chávez na Venezuela, ou mesmo, em menor escala, as crises no Brasil?
Mainwaring -
Em primeiro lugar, devo dizer que eu e a grande maioria dos estudiosos sobre o Brasil achamos que o sistema partidário do país está bem mais institucionalizado hoje do que foi na primeira metade dos anos 90. Nesse sentido, o Brasil viveu um processo bastante saudável na última década.
A Venezuela viveu o processo inverso. De um sistema de partidos bastante institucionalizado nos anos 70 e 80 para um colapso do sistema tradicional de partidos. A renda per capita da Venezuela é menor hoje do que era nos anos 70, o que só aconteceu com países que tiveram uma guerra interna nesse período. Algo dramático aconteceu. Os dois partidos tradicionais da Venezuela foram queimados, em boa medida. Não se pode entender o colapso do sistema na Venezuela sem analisar esse desempenho econômico horrível.

Folha - A Bolívia também tinha um sistema partidário bem estabelecido, como o da Venezuela?
Mainwaring -
Não tanto. Havia um eixo de três partidos que era estável até os anos 90. Um de centro-direita, a Ação Democrática Nacionalista, e, depois de 85 e do plano de estabilização, dois de centro-esquerda. Um problema que surgiu nesse sistema foi o fato de os três partidos terem diferenças ideológicas bastante fracas. A globalização e o êxito do primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada [93-97] reduziram o espaço de disputa política. [Evo] Morales [líder cocaleiro e candidato à Presidência em 2002] surge como uma contra-resposta a tudo isso.

Folha - No Brasil também acontece uma diminuição das diferenças ideológicas. Isso pode trazer algum problema para as disputas políticas?
Mainwaring -
Não há dúvidas de que há essa diminuição. Acho que pode trazer problemas na medida em que o sistema político não produza resultados para as pessoas. Esse foi o caso da Bolívia. Enquanto o sistema político funcionava relativamente bem, nos anos 90, não foi um problema. Quando o sistema deixa de produzir resultados e começa a produzir mais pobreza numa sociedade já muito pobre, a falta de alternativas ideológicas é um problema.
O mesmo se poderia dizer da Venezuela. Houve alternativas esquerdistas por lá, mas os dois partidos bem menores de esquerda apoiaram Rafael Caldera Rodriguez [presidente do país entre 1969-74 e novamente entre 94-99] em 94, o que queimou os dois partidos como alternativas ao poder, e os dois partidos tradicionais tinham uma distância ideológica nula já nos anos 90.

Folha - Pode-se dizer o mesmo da Argentina?
Mainwaring -
Nos anos 80 e 90, a disputa foi entre peronistas e radicais. Acho que também tem algo a ver. Na Argentina se agrava pelo fato de as pessoas se sentirem fraudadas. Dez anos de governo [Carlos] Menem [1989-99] eliminaram a inflação, mas houve muita corrupção. Talvez a economia argentina tivesse funcionado se tivesse havido uma desvalorização na mesma época em que o Brasil desvalorizou o Real. O Brasil fez o que foi preciso, e Menem não quis pagar o preço político de uma desvalorização.
No começo desta década, em particular, parecia não haver uma alternativa e parecia que a globalização havia vencido a disputa ideológica na Argentina. A diferença dela em relação à Bolívia e à Venezuela é que foi evitado o colapso do sistema partidário. No final de 2001, em muitas manifestações, o discurso era "fora todos". É interessante constatar que um ano depois surge um peronista [o atual presidente, Néstor Kirchner]. Ou seja, se reconstrói o partido tradicional no país, o que não parece possível na Venezuela.

Folha - O PT está continuando o governo FHC, com clara aproximação ideológica. Isso pode trazer algum problema?
Mainwaring -
Eu tendo a ver o PT como um partido tão forte que o risco de uma figura como Chávez no Brasil é muitíssimo menor do que foi na Venezuela no fim dos anos 90 ou do que foi no Peru, no fim dos 80, com Fujimori. É verdade que o PT no governo não é diferente como queria a ala esquerda do próprio partido. Mas o Brasil está funcionando como país. Isso não quer dizer que tenham sido resolvidos os muitos problemas, mas é um país onde se pode dizer que existe uma esperança para o futuro, o que não é verdade em muitos países da América Latina.

Folha - Agora o governo Lula se vê envolvido em acusações de corrupção. Esse tema surge freqüentemente na América Latina. De fato há mais corrupção aqui que nas democracias do norte? Ou algo facilita o seu aparecimento?
Mainwaring -
Acho que de fato a corrupção é maior. Podemos retomar a fragilidade do Estado. A parte jurídica, que tem a capacidade de punir os corruptos, também não é eficiente. De todo modo, eu confio que o setor jurídico tem maior capacidade de punir no Brasil do que na Guatemala, por exemplo.

Folha - Se a democracia brasileira não conseguir criar crescimento econômico, associado ao estreitamento das opções ideológicas, isso pode vir a criar instabilidade?
Mainwaring -
No curto prazo, digamos, cinco anos, acho que não, mas a política é imprevisível. Se o Brasil não funcionar bem por duas décadas, como aconteceu na Venezuela, o risco é grande.

Folha - As alternativas a esse estreitamento ideológico surgem sempre fora do sistema partidário?
Mainwaring -
Em muitos países, sim, mas também surge dentro do sistema. [Evo] Morales é ao mesmo tempo um movimento de cocaleiros e de indígenas e um partido. Na Argentina surge primeiro fora do sistema partidário. No Uruguai, acontece dentro do sistema.

Folha - A que o sr atribui a maior institucionalização do sistema partidário brasileiro na última década?
Mainwaring -
A volatilidade eleitoral [votos que migram de um partido para outro entre eleições] no Brasil diminuiu muitíssimo. Além disso, entre os anos 80 e o início dos 90, o quadro partidário era bastante instável -surge um novo partido como o de Collor, outros desaparecem, outros se fundem. De uns dez anos para cá, os partidos importantes são os mesmos, o que reflete um quadro diferente do anterior. Por quê? Creio que em boa medida isso se deve à estabilidade econômica e -não sei se a população brasileira concorda-, de 95 para cá, o Brasil tem governos sérios. Pode-se discordar de muita coisa, estar frustrado com realizações não tão grandes quanto o desejável, mas, a meu ver, o Brasil funciona mais ou menos bem.


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