São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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Pequeno dicionário da crise

Algumas das principais idéias, atores e práticas dos dias que correm na política brasileira (e seu futuro)

Corrupção

OTÁVIO VELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O uso do termo para referir-se a suborno, depravação, utilização de meios ilegais no serviço público etc. deriva do seu sentido geral como ato, processo ou efeito de tornar-se apodrecido. É interessante, assim, como a corrupção no terreno jurídico-político deita raízes na observação de um fenômeno natural, certamente com a mediação de sua utilização no terreno da religião. Só que, na tradição cristã, a corrupção associa-se a uma grande anormalidade inicial: o afastamento dos seres humanos de Deus. É provável, portanto, que, no terreno jurídico-político, trate-se muito mais do controle da corrupção do que de acabar com ela.
O controle, portanto, deveria caber à lei. O que parece, no entanto, é que boa parte da vida social não é redutível a um quadro legal universal. Quase que se poderia dizer que os grupos sociais têm as suas fronteiras dadas exatamente pelos limites dentro dos quais se praticam usos e costumes aceitos, mesmo que ao arrepio da lei universal. Exemplos não faltam, o que não deixa de levantar delicadas questões no manejo das relações entre o interno e o externo a esses grupos.
Não é à-toa que na política o decoro ganha proeminência. Os momentos de crise são em geral aqueles em que ele é atingido, seja pelo rompimento de regras não escritas, seja porque a disputa política leva uma das partes, como último recurso, a fazer apelo à lei universal, seja por ingerência externa. Nisso a mídia tem hoje importância decisiva na caracterização de escândalos.
Trata-se de não esquecer que o objetivo possível é aprimorar os controles, sem paralisar a política. Nem o irrealismo ou a demagogia dos que dizem pretender (até como arma política) acabar com a corrupção nem a penalização unilateral dos emergentes, obrigados a expor-se para romper os domínios tácitos. Talvez, então, daqui a dez anos não tenhamos tido nenhuma mudança dramática, mas teremos consolidado a democracia se tivermos resistido aos golpes que pretendam interrompê-la ou restringi-la sob o pretexto de aperfeiçoá-la e se tivermos, até, alcançado alguma redução da corrupção. Poderíamos mesmo ter alguma mudança cultural, resultado que não pode ser planejado, nem colocado como condição inicial.


Otávio Velho é professor aposentado de antropologia do Museu Nacional.


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