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Nós, os privilegiados
Crescente disparidade na participação de ricos e pobres na política aponta para "retrocesso" democrático nos EUA
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
Enquanto o presidente George
W. Bush fala em espalhar a
democracia ao redor do globo, uma força-tarefa criada
pelo Associação Americana de Ciência Política chegou a conclusões
sombrias sobre o impacto da crescente disparidade entre ricos e pobres no sistema democrático da
maior potência mundial. O resultado, diz o relatório assinado por 15 intelectuais de importantes universidades norte-americanas, é que o
grau de participação e visibilidade
na vida política do país depende cada vez mais do poder econômico.
"O progresso em direção à realização dos ideais da democracia norte-americana pode ter parado, e, em alguns temas, retrocedido", diz o estudo "Democracia Americana numa
Era de Crescente Desigualdade".
O relatório sugere várias evidências do efeito da desigualdade social
nas práticas democráticas. Por
exemplo, mostra que 90% das famílias com renda acima de US$ 75 mil
votam em eleições presidenciais,
mas o percentual cai para 50% entre
as famílias cuja renda anual está
abaixo de US$ 15 mil.
O progresso em
direção à realização
dos ideais da democracia
norte-americana
pode ter parado,
e, em alguns temas,
retrocedido
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Outro indício são as filiações a organizações políticas não-governamentais. Enquanto o número de trabalhadores sindicalizados caiu pela
metade desde o início dos anos 1970
para apenas 13,5% da força de trabalho, os "grupos de interesse", a
maioria sediados em Washington,
se multiplicaram. Atualmente, quase 75% dos mais ricos têm alguma filiação a ONGs; entre os mais pobres,
o índice é de 29%.
A seguir, trechos da entrevista à
Folha da cientista política da Universidade Harvard Theda Skocpol,
idealizadora da força-tarefa, cujos
trabalhos foram iniciados em 2003 e
concluídos no início deste ano.
Folha - Em que pontos da democracia norte-americana a crescente desigualdade social tem tido maior impacto?
Theda Skocpol - Nós analisamos diversos aspectos. Examinamos a participação política e a ação do governo. Na área de participação política,
durante as últimas várias décadas,
nas quais o dinheiro se tornou muito
mais importante na política e para
organizar a vida civil, a desigualdade
de renda também cresceu. Os muito
ricos, capazes de doar grandes quantias de dinheiro, têm aumentado sua
influência no processo político e nos
moldes do debate público. Portanto,
parte da maneira como a crescente
desigualdade econômica afeta a democracia é que a participação também ficou mais desigual. Obviamente, sempre tem sido assim, mas isso
está aumentando.
A segunda área importante é sobre
o que o governo faz e deixa de fazer.
Há muitos indícios de que grupos de
interesse que são capazes de gastar
dinheiro em lobby podem modificar
a legislação ou vetar decisões, impedindo o governo de adotar medidas
que, digamos, pessoas ricas e empresários não querem. Um dos aspectos
interessantes nos EUA é que, num
período de desigualdade e crescente
insegurança econômica, o governo
norte-americano tem feito menos
para muitas pessoas na base e no
meio da sociedade em comparação
com outros países industrializados.
Uma das razões pode ser a influência dos grupos de interesse.
Folha - A sra. acredita que esse problema esteja diretamente ligado ao
financiamento de campanhas?
Skocpol - Em parte, mas o dinheiro
também pode ser usado para estabelecer a agenda do debate, e isso influencia os políticos indiretamente.
Também pode ser usado apenas para conseguir ser ouvido pelos políticos. Não há indícios de que o dinheiro diretamente suborna políticos
nos EUA para compra de votos.
Folha - O governo Bush tem sido
bastante criticado por supostamente
privilegiar os mais ricos. No primeiro
mandato, com um corte de impostos,
e agora, ao propor a privatização parcial da Previdência e inibição de processos coletivos de indenização. São
exemplos do que a sra. critica?
Skocpol - A força-tarefa não analisou esses temas, mas, falando pessoalmente, acredito que a causa da
privatização parcial da Seguridade
Social tenha sido empurrada nos últimos 15 anos por um grupo de interesse muito rico. Temos muitos indícios de que essa proposta não é
muito popular entre a população.
Mesmo assim, ainda é considerada
uma prioridade pelos republicanos.
Mas tenho de dizer que as muitas
formas como a desigualdade influencia a política não ocorrem apenas quando os republicanos estão
no poder. Os democratas também
dependem muito de doadores ricos.
Folha - Uma das grandes desigualdades que persistem nos EUA é a entre brancos e negros. Isso é um sinal
do fracasso das ações afirmativas ou a
desigualdade racial seria ainda maior
sem elas?
Skocpol - Tem havido mudanças
importantes nas relações raciais e
avanços no acesso a empregos, educação e participação na vida social e
política por parte dos negros americanos. Isso tem sido um ganho na
diminuição de desigualdades desde
os anos 1960. Mas, obviamente, as
pessoas negras são muitas vezes pobres e vivem em famílias em que não
há trabalhadores com curso superior ou têm uma renda modesta. Como as classes média e baixa estão se
segurando sozinhas nas últimas décadas, enquanto os ricos e mais bem
educados estão cada vez melhores,
obviamente muitos negros são afetadas pela crescente desigualdade.
Folha - A sra. crê que seja o momento de reforçar as ações afirmativas ou
é necessário começar novas formas de
inclusão social?
Skocpol -Precisamos ir além. As
ações afirmativas ajudam sobretudo
pessoas que estão preparadas para
avançar no trabalho ou entrar no ensino superior. Houve muitos avanços, mas não é o suficiente. Há famílias de classes trabalhadoras de todas
as cores nos EUA que estão lutando
nestes dias.
Folha - Há cerca de 11 milhões de
imigrantes ilegais nos EUA, e tem sido
cada vez mais difícil o processo para
que se tornem cidadãos. A sra. acredita que eles se tornarão a nova classe
miserável nos EUA?
Skocpol - Os imigrantes ilegais têm
barreiras muito importantes no local de trabalho. Não sei se eles se tornarão os novos miseráveis dos EUA,
e a imigração é, em parte, responsável pela crescente disparidade na
participação política.
Folha - O estudo mostra que os EUA
diferem dos demais países industrializados com relação à participação política e desigualdade social. Quando e
como isso ocorreu?
Skocpol - Os EUA e a maioria dos
países ricos experimentaram uma
economia crescente e a diminuição
das desigualdades no período após a
Segunda Guerra Mundial até o início
dos anos 1970. Desse período em
diante, a desigualdade econômica
cresceu nos países industrializados,
mas o ritmo foi bem maior nos EUA.
Em parte, porque o governo não tem
feito o suficiente para assegurar programas sociais abrangentes.
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