São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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Nós, os privilegiados

Crescente disparidade na participação de ricos e pobres na política aponta para "retrocesso" democrático nos EUA

FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO

Enquanto o presidente George W. Bush fala em espalhar a democracia ao redor do globo, uma força-tarefa criada pelo Associação Americana de Ciência Política chegou a conclusões sombrias sobre o impacto da crescente disparidade entre ricos e pobres no sistema democrático da maior potência mundial. O resultado, diz o relatório assinado por 15 intelectuais de importantes universidades norte-americanas, é que o grau de participação e visibilidade na vida política do país depende cada vez mais do poder econômico.
"O progresso em direção à realização dos ideais da democracia norte-americana pode ter parado, e, em alguns temas, retrocedido", diz o estudo "Democracia Americana numa Era de Crescente Desigualdade".
O relatório sugere várias evidências do efeito da desigualdade social nas práticas democráticas. Por exemplo, mostra que 90% das famílias com renda acima de US$ 75 mil votam em eleições presidenciais, mas o percentual cai para 50% entre as famílias cuja renda anual está abaixo de US$ 15 mil.


O progresso em direção à realização dos ideais da democracia norte-americana pode ter parado, e, em alguns temas, retrocedido


Outro indício são as filiações a organizações políticas não-governamentais. Enquanto o número de trabalhadores sindicalizados caiu pela metade desde o início dos anos 1970 para apenas 13,5% da força de trabalho, os "grupos de interesse", a maioria sediados em Washington, se multiplicaram. Atualmente, quase 75% dos mais ricos têm alguma filiação a ONGs; entre os mais pobres, o índice é de 29%.
A seguir, trechos da entrevista à Folha da cientista política da Universidade Harvard Theda Skocpol, idealizadora da força-tarefa, cujos trabalhos foram iniciados em 2003 e concluídos no início deste ano.
 

Folha - Em que pontos da democracia norte-americana a crescente desigualdade social tem tido maior impacto?
Theda Skocpol -
Nós analisamos diversos aspectos. Examinamos a participação política e a ação do governo. Na área de participação política, durante as últimas várias décadas, nas quais o dinheiro se tornou muito mais importante na política e para organizar a vida civil, a desigualdade de renda também cresceu. Os muito ricos, capazes de doar grandes quantias de dinheiro, têm aumentado sua influência no processo político e nos moldes do debate público. Portanto, parte da maneira como a crescente desigualdade econômica afeta a democracia é que a participação também ficou mais desigual. Obviamente, sempre tem sido assim, mas isso está aumentando.
A segunda área importante é sobre o que o governo faz e deixa de fazer. Há muitos indícios de que grupos de interesse que são capazes de gastar dinheiro em lobby podem modificar a legislação ou vetar decisões, impedindo o governo de adotar medidas que, digamos, pessoas ricas e empresários não querem. Um dos aspectos interessantes nos EUA é que, num período de desigualdade e crescente insegurança econômica, o governo norte-americano tem feito menos para muitas pessoas na base e no meio da sociedade em comparação com outros países industrializados. Uma das razões pode ser a influência dos grupos de interesse.

Folha - A sra. acredita que esse problema esteja diretamente ligado ao financiamento de campanhas?
Skocpol -
Em parte, mas o dinheiro também pode ser usado para estabelecer a agenda do debate, e isso influencia os políticos indiretamente. Também pode ser usado apenas para conseguir ser ouvido pelos políticos. Não há indícios de que o dinheiro diretamente suborna políticos nos EUA para compra de votos.

Folha - O governo Bush tem sido bastante criticado por supostamente privilegiar os mais ricos. No primeiro mandato, com um corte de impostos, e agora, ao propor a privatização parcial da Previdência e inibição de processos coletivos de indenização. São exemplos do que a sra. critica?
Skocpol -
A força-tarefa não analisou esses temas, mas, falando pessoalmente, acredito que a causa da privatização parcial da Seguridade Social tenha sido empurrada nos últimos 15 anos por um grupo de interesse muito rico. Temos muitos indícios de que essa proposta não é muito popular entre a população. Mesmo assim, ainda é considerada uma prioridade pelos republicanos. Mas tenho de dizer que as muitas formas como a desigualdade influencia a política não ocorrem apenas quando os republicanos estão no poder. Os democratas também dependem muito de doadores ricos.

Folha - Uma das grandes desigualdades que persistem nos EUA é a entre brancos e negros. Isso é um sinal do fracasso das ações afirmativas ou a desigualdade racial seria ainda maior sem elas?
Skocpol -
Tem havido mudanças importantes nas relações raciais e avanços no acesso a empregos, educação e participação na vida social e política por parte dos negros americanos. Isso tem sido um ganho na diminuição de desigualdades desde os anos 1960. Mas, obviamente, as pessoas negras são muitas vezes pobres e vivem em famílias em que não há trabalhadores com curso superior ou têm uma renda modesta. Como as classes média e baixa estão se segurando sozinhas nas últimas décadas, enquanto os ricos e mais bem educados estão cada vez melhores, obviamente muitos negros são afetadas pela crescente desigualdade.

Folha - A sra. crê que seja o momento de reforçar as ações afirmativas ou é necessário começar novas formas de inclusão social?
Skocpol -
Precisamos ir além. As ações afirmativas ajudam sobretudo pessoas que estão preparadas para avançar no trabalho ou entrar no ensino superior. Houve muitos avanços, mas não é o suficiente. Há famílias de classes trabalhadoras de todas as cores nos EUA que estão lutando nestes dias.

Folha - Há cerca de 11 milhões de imigrantes ilegais nos EUA, e tem sido cada vez mais difícil o processo para que se tornem cidadãos. A sra. acredita que eles se tornarão a nova classe miserável nos EUA?
Skocpol -
Os imigrantes ilegais têm barreiras muito importantes no local de trabalho. Não sei se eles se tornarão os novos miseráveis dos EUA, e a imigração é, em parte, responsável pela crescente disparidade na participação política.

Folha - O estudo mostra que os EUA diferem dos demais países industrializados com relação à participação política e desigualdade social. Quando e como isso ocorreu?
Skocpol -
Os EUA e a maioria dos países ricos experimentaram uma economia crescente e a diminuição das desigualdades no período após a Segunda Guerra Mundial até o início dos anos 1970. Desse período em diante, a desigualdade econômica cresceu nos países industrializados, mas o ritmo foi bem maior nos EUA. Em parte, porque o governo não tem feito o suficiente para assegurar programas sociais abrangentes.


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