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Sobrevivente do Holocausto, o húngaro Imre Kertész, Nobel de Literatura de 2002, fala de sua relação com a
Alemanha, com a literatura do Leste Europeu e do paradoxo que é escrever sobre campos de concentração
No princípio era o mal
Jan Bauer - 16.mai.2005/Associated Press
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Um visitante salta entre pilastras no Memorial do Holocausto, em Berlim |
Florence Noiville
Imre Kertész (pronuncia-se
"quêr-tésh", sobrenome que quer
dizer "jardineiro", em húngaro)
nasceu em 1929, em Budapeste,
em uma família judia. Em 1944, aos
15 anos, foi deportado a Auschwitz e
posteriormente a Buchenwald. Em
1945, tornou-se jornalista na Hungria comunista e depois, a partir dos
anos 50, se dedicou à literatura e à
tradução. Escritor das sombras, precisava se refugiar para escrever nos
"expressos", os pequenos cafés esfumaçados de Budapeste. Em 2002,
tornou-se o primeiro escritor húngaro a receber o Nobel de Literatura.
Qualquer pessoa que tenha vivido sob o nazismo e o stalinismo acumulou experiência suficiente de ditadura para traduzi-la em forma literária
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Na entrevista a seguir, Kertész fala
do paradoxo que é fazer literatura
sobre o Holocausto -"é impossível
escrever sem ferir", ao mesmo tempo em que o romance tem "de fazer
com que o leitor deseje virar a página"- e, ao tratar de suas influências, diz ter aprendido distanciamento e indiferença com Albert Camus, e realismo com Kafka.
Pergunta - É a primeira vez que o senhor aceita receber um jornalista em
sua casa, em Berlim. Há alguns anos, o
senhor deixou Budapeste para se instalar nessa cidade, que foi a capital do
Terceiro Reich. E hoje o senhor se exprime em alemão. Não é um paradoxo, para alguém que foi deportado a
Auschwitz com 15 anos e cuja obra é
completamente marcada pela experiência no campo de extermínio?
Imre Kertész - Berlim, é verdade, se
tornou minha cidade de adoção. Isso pode parecer estanho, mas jamais
considerei o Shoah [Holocausto em
hebraico] como conseqüência de
um ódio irremediável dos alemães
pelos judeus. Senão, como explicar o
interesse dos leitores alemães pelos
meus livros? Foi na Alemanha que
realmente me tornei escritor. Não
no sentido de renome, mas foi na
Alemanha que meus livros produziram sua verdadeira impressão.
Quanto ao idioma alemão, ele era
obrigatório no colégio, na Hungria.
Os autores estrangeiros não eram
traduzidos para o húngaro, e eu os
descobri em alemão. Tornei-me tradutor de Nietzsche, Hoffmanstahl,
Schnitzler -e não me parece concebível dizer que a língua de Arthur
Schnitzler e de Joseph Roth é a língua dos nazistas. O alemão, para
mim, continua a ser a língua dos
pensadores, não a dos carrascos.
Pergunta - Como foi a acolhida dos
seus trabalhos pelo público alemão?
Kertész - Na Hungria, eu tinha apenas um pequeno círculo de leitores
fiéis. Na Alemanha, pela primeira
vez tive a impressão de que um escritor podia ter influência. Eu -que
pertenço à última geração de sobreviventes, aqueles que nem tinham 15
anos em Auschwitz- recebi grande
número de cartas de jovens leitores
alemães que me agradeciam por lhes
ter "explicado" os campos de maneira tão clara e direta.
A Alemanha, aliás, realizou um
grande trabalho quanto ao seu passado, enquanto na Hungria o assunto continua a ser tabu. Quando comecei minhas pesquisas sobre o
Shoah, em 1961, não encontrei quase
nada. Foi no mesmo ano em que se
iniciava o processo [em Israel] contra [Adolf] Eichmann [responsável
pela logística da deportação de judeus aos campos de concentração],
mas o caso merecia apenas pequenas notas na imprensa húngara. Foi
com base em uma dessas notas que
fui informado sobre a existência de
um livro sobre o processo. A autora
era uma mulher cujo nome eu desconhecia, [a filósofa alemã, naturalizada norte-americana] Hannah
Arendt [1906-1975]. Procurei o livro
por toda parte, mas era impossível
encontrá-lo em Budapeste. Precisei
esperar que o Muro de Berlim caísse
antes de ler "Eichmann em Jerusalém" (Cia. das Letras).
Pergunta - O senhor participou recentemente da adaptação para o cinema de seu livro "Sem Destino", dirigida pelo húngaro Lajos Koltai. O filme deve sair na França no final do
ano. Como se pode adaptar um romance tão analítico e distanciado?
Kertész - Levei 15 anos para escrever "Sem Destino" (Planeta). O romance e o roteiro não são comparáveis. Mas há uma determinada camada da história que pode ser transposta para o cinema, aquela que
conta como um adolescente é metodicamente espoliado de sua personalidade nascente.
O título do livro é ele mesmo uma
conseqüência ética do Shoah. É o estado no qual uma pessoa se encontra
quando lhe é confiscada até mesmo
sua própria história. Um estado no
qual é proibido confrontar a si mesmo. Todo o desafio do romance
consiste em inventar uma linguagem que una essas idéias e indique
uma existência aprisionada.
Pergunta - Como o sr. inventou essa
linguagem? O sr. chegou a dizer que
escrevia para "ferir" o leitor?
Kertész - No que tange o Shoah, é
impossível escrever sem ferir, porque o peso é depositado sobre os
ombros do leitor. É preciso que as
palavras tenham um efeito, no sentido de "wirkung", que elas penetrem
a carne. Ao mesmo tempo, há um
paradoxo. O romance precisa "agradar", no sentido de fazer com que o
leitor deseje virar a página. É uma
armadilha à qual ele é atirado para
que seja receptivo. Se sou cruel ou
odioso demais, não conseguirei obter aquilo que desejo.
Mas essa é uma reflexão feita a
posteriori. É evidente que não era isso que eu tinha em mente quando
escrevi "Sem Destino". De forma alguma. O que me obcecava era tentar
evitar a pose literária. Eu pensava na
lona que recobria as mesas das livrarias húngaras -um pano grosseiro
sobre o qual se depositavam os livros que era possível adquirir por
cinco ou dez florins apenas. Queria
evocar o grão bruto desse tecido, alguma coisa de grosseiro como nos
romances populares ou policiais.
Para isso, era preciso colocar os detalhes em primeiro plano: diante de
um oficial uniformizado, meu narrador só pensa no piolho que lhe
causa coceira. É, assim, uma maneira de mostrar a impossibilidade de
escrever com meios racionais sobre
aquele mundo.
Pergunta - A sua compreensão da
música não exerce, também, influência sobre a maneira pela qual o sr. reconstrói a linguagem?
Kertész - Exato. Ouço música todos
os dias antes de escrever. No momento, prefiro Bach e Mozart. Na
época de "Sem Destino", era a música atonal que me assombrava
-Berg, Schoenberg... Da mesma
forma, tentei criar uma linguagem
atonal. A atonalidade é a anulação
do consenso. Nada mais de ré maior
ou mi bemol menor. A tonalidade é
abolida, como os valores da sociedade. O baixo contínuo é destruído, o
que significa que o sol (não a nota
musical, mas aquele sol sob o qual
marchamos a cada dia) deixa de ser
fixo e desaparece a grade de referências que dão fundamento à razão.
Idéias como honra e felicidade se
tornam risíveis. Tudo está em movimento, nada é certo. Do ponto de
vista da linguagem, é isso que penso
ter criado em "Sem Destino". Depois, continuei a brincar com essas
descobertas. Em "Kadish - Por uma
Criança Não Nascida" (Imago), a
perspectiva não era tão alienada -é
um homem que fala, uma pessoa
que percebe claramente as leis da vida e que cometeu apenas um erro: se
apaixonar.
Pergunta - Como o sr. se situa com
relação aos demais autores que descreveram o universo dos campos de
extermínio?
Kertész - Odeio a pintura dos horrores. O que me interessa é a distância. A língua é limitada e seus limites
são intransponíveis. É preciso portanto rompê-los do interior. Admiro
os autores que conseguem trabalhar
com os meios fornecidos pela literatura e ainda assim ultrapassar as
fronteiras do dizível. Recentemente,
reli "A Dor" (Nova Fronteira), de
Marguerite Duras: nada de extraordinário, e no entanto tudo é expresso sobre aquilo que Duras designa
como "a desordem fenomenal do
pensamento e do sentimento". Vemos aquela mulher cujo marido escapou de um campo. Ela o contempla "com suas calças cujas pernas
flutuam como velas". "Quando faz
sol, pode-se ver o brilho através das
mãos dele".
Ele começa a comer. Sua fome toma proporção assustadora. Vemos a
mulher que o contempla da porta da
sala e sentimos que se tornou uma
estranha para o homem. É espantoso tudo que se reflete nas ações mínimas daquele dia. Poderia citar também Tadeusz Borowski, polonês deportado para Auschwitz e subseqüentemente para Dachau. Pouco
depois de sua libertação, escreveu
contos reunidos sob o título "O
Mundo de Pedra". A objetividade
sarcástica de seu estilo me faz pensar
em Mérimée. Mas o grande, o maior,
escritor sobre os campos, para mim,
sempre será Jean Améry.
Pergunta - Não Primo Levi?
Kertész - Não o vejo como suficientemente radical. Ele mantém a tradição humanista, aquela mesma que
foi aniquilada pela experiência do
Shoah. Já disse muitas vezes que
Jean Améry ("Além do Crime e Castigo" e "Ensaio para Superar o Insuperável") é um "santo do Holocausto". É um personagem extremo. Ele
chegou ao limite, sem nada dissimular diante de si mesmo, sabendo que
tudo aquilo não poderia ser resolvido de outra forma que não pelo suicídio.
Pergunta - Em "A Bandeira Inglesa",
o senhor evoca a repressão, pelos tanques soviéticos, à insurreição de 1956
em Budapeste. O sr. trabalhava como
jornalista...
Kertész - Quando voltei dos campos, estava só. Em Budapeste, quis
pegar o ônibus e exigiram que eu pagasse a passagem. O apartamento de
minha família estava ocupado. Era
estranho; porque eu ainda era tão
novo, tinha de retornar à escola em
um momento em que eu já tinha,
pode-se dizer, uma certa experiência
de vida...
A seguir, veio a ditadura stalinista.
Durante dois anos fui jornalista. Mas
como eu era incapaz de escrever sob
ordens, terminei demitido. Foi então que decidi me tornar escritor.
Não um escritor oficial, mas um
clandestino da escrita. Qualquer
pessoa que tenha vivido sob o nazismo e o stalinismo acumulou experiência suficiente de ditadura para
traduzi-la em forma literária.
Pergunta - De onde surge esse seu
distanciamento sarcástico, esse aparente isolamento que é a marca de todos os seus livros?
Kertész - Fui influenciado por Camus. Para mim, o grande exemplo
dessa "distância" é "O Estrangeiro"
(Record). Tinha 25 anos quando
descobri aquele pequeno livro. Eu
me disse que era tão fino que não devia custar caro demais. Não sabia
nada sobre o autor e estava longe de
suspeitar que sua prova me marcaria tanto, com o passar dos anos. Em
húngaro, "O Estrangeiro" foi traduzido com o título "O Indiferente".
Indiferente no sentido de distanciado do mundo, distanciado de si mesmo mas também no sentido de liberto, ou seja, de homem livre.
Pergunta - Um homem preso na armadilha da burocracia e do absurdo, é
assim que o sr. descreve "O Processo
Verbal", que lembra muito o universo
de Kafka. O sr. sente afinidade com
aquilo que Kundera descreve como "a
grande plêiade de romances da Europa Central": Kafka, Musil, Broch,
Gombrowicz...?
Kertész - Evidentemente. Todas essas experiências literárias estão vinculadas ao espaço austro-húngaro.
No que me tange, por exemplo, faço
uma leitura de Kafka que difere radicalmente dos ocidentais. Para mim,
Kafka é um realista típico da "Mitteleuropa".
Por exemplo, "O Castelo", com a
aldeia e os albergues freqüentados
por servidores públicos, funcionários. Desde as primeiras páginas, o
castelo está claramente lá. Não há
dúvida alguma de que ele existe,
mesmo que o resto do mundo pareça ter desaparecido em um dos gigantescos buracos negros de Kafka.
Não se sente nada, nem polícia
nem repressão, que possam impedir
aquele que esteja disposto a chegar
lá. No entanto, as pessoas discutem
incansavelmente sobre se têm mesmo esse direito. É uma situação típica do Leste: de um lado, um poder
evasivo, irônico, átono, indecifrável;
de outro, a covardia, o conformismo, a tragédia grotesca e risível que
adoece as pessoas. Não é por nada
que o público de Kafka rolava de rir
quando lia suas obras. Seu gênio era
tamanho que, no Ocidente, deu origem a múltiplas leituras metafísicas,
mas o que ele traduz fundamentalmente é a quintessência de uma visão de mundo leste-européia.
Pergunta - E o sr.? Considera-se parte dessa tradição?
Kertész - Em "Liqüidação", meu
personagem principal expõe sua
"idéia básica", segundo a qual "o
mal é o princípio da vida". Certo, é
meu herói que assim se exprime,
mas essa é provavelmente a frase
mais ácida e mais lúcida que já escrevi. Não só o mal é o princípio da vida, mas aquilo que é verdadeiramente irracional é o bem. Sempre tive essa visão de mundo. Você pode
dizer que sou um pessimista incurável. Mas já lhe contaram aquela piada muito repetida na Europa Oriental sobre a diferença entre um otimista e um pessimista? A resposta é
que não existe nenhuma; o pessimista é simplesmente um sujeito mais
bem informado, eis tudo.
Tradução de Paulo Migliacci.
Esta entrevista foi publicada originalmente
no "Le Monde".
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