São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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Sobrevivente do Holocausto, o húngaro Imre Kertész, Nobel de Literatura de 2002, fala de sua relação com a Alemanha, com a literatura do Leste Europeu e do paradoxo que é escrever sobre campos de concentração

No princípio era o mal

Jan Bauer - 16.mai.2005/Associated Press
Um visitante salta entre pilastras no Memorial do Holocausto, em Berlim


Florence Noiville

Imre Kertész (pronuncia-se "quêr-tésh", sobrenome que quer dizer "jardineiro", em húngaro) nasceu em 1929, em Budapeste, em uma família judia. Em 1944, aos 15 anos, foi deportado a Auschwitz e posteriormente a Buchenwald. Em 1945, tornou-se jornalista na Hungria comunista e depois, a partir dos anos 50, se dedicou à literatura e à tradução. Escritor das sombras, precisava se refugiar para escrever nos "expressos", os pequenos cafés esfumaçados de Budapeste. Em 2002, tornou-se o primeiro escritor húngaro a receber o Nobel de Literatura.


Qualquer pessoa que tenha vivido sob o nazismo e o stalinismo acumulou experiência suficiente de ditadura para traduzi-la em forma literária


Na entrevista a seguir, Kertész fala do paradoxo que é fazer literatura sobre o Holocausto -"é impossível escrever sem ferir", ao mesmo tempo em que o romance tem "de fazer com que o leitor deseje virar a página"- e, ao tratar de suas influências, diz ter aprendido distanciamento e indiferença com Albert Camus, e realismo com Kafka.
 

Pergunta - É a primeira vez que o senhor aceita receber um jornalista em sua casa, em Berlim. Há alguns anos, o senhor deixou Budapeste para se instalar nessa cidade, que foi a capital do Terceiro Reich. E hoje o senhor se exprime em alemão. Não é um paradoxo, para alguém que foi deportado a Auschwitz com 15 anos e cuja obra é completamente marcada pela experiência no campo de extermínio?
Imre Kertész -
Berlim, é verdade, se tornou minha cidade de adoção. Isso pode parecer estanho, mas jamais considerei o Shoah [Holocausto em hebraico] como conseqüência de um ódio irremediável dos alemães pelos judeus. Senão, como explicar o interesse dos leitores alemães pelos meus livros? Foi na Alemanha que realmente me tornei escritor. Não no sentido de renome, mas foi na Alemanha que meus livros produziram sua verdadeira impressão.
Quanto ao idioma alemão, ele era obrigatório no colégio, na Hungria. Os autores estrangeiros não eram traduzidos para o húngaro, e eu os descobri em alemão. Tornei-me tradutor de Nietzsche, Hoffmanstahl, Schnitzler -e não me parece concebível dizer que a língua de Arthur Schnitzler e de Joseph Roth é a língua dos nazistas. O alemão, para mim, continua a ser a língua dos pensadores, não a dos carrascos.

Pergunta - Como foi a acolhida dos seus trabalhos pelo público alemão?
Kertész -
Na Hungria, eu tinha apenas um pequeno círculo de leitores fiéis. Na Alemanha, pela primeira vez tive a impressão de que um escritor podia ter influência. Eu -que pertenço à última geração de sobreviventes, aqueles que nem tinham 15 anos em Auschwitz- recebi grande número de cartas de jovens leitores alemães que me agradeciam por lhes ter "explicado" os campos de maneira tão clara e direta.
A Alemanha, aliás, realizou um grande trabalho quanto ao seu passado, enquanto na Hungria o assunto continua a ser tabu. Quando comecei minhas pesquisas sobre o Shoah, em 1961, não encontrei quase nada. Foi no mesmo ano em que se iniciava o processo [em Israel] contra [Adolf] Eichmann [responsável pela logística da deportação de judeus aos campos de concentração], mas o caso merecia apenas pequenas notas na imprensa húngara. Foi com base em uma dessas notas que fui informado sobre a existência de um livro sobre o processo. A autora era uma mulher cujo nome eu desconhecia, [a filósofa alemã, naturalizada norte-americana] Hannah Arendt [1906-1975]. Procurei o livro por toda parte, mas era impossível encontrá-lo em Budapeste. Precisei esperar que o Muro de Berlim caísse antes de ler "Eichmann em Jerusalém" (Cia. das Letras).

Pergunta - O senhor participou recentemente da adaptação para o cinema de seu livro "Sem Destino", dirigida pelo húngaro Lajos Koltai. O filme deve sair na França no final do ano. Como se pode adaptar um romance tão analítico e distanciado?
Kertész -
Levei 15 anos para escrever "Sem Destino" (Planeta). O romance e o roteiro não são comparáveis. Mas há uma determinada camada da história que pode ser transposta para o cinema, aquela que conta como um adolescente é metodicamente espoliado de sua personalidade nascente.
O título do livro é ele mesmo uma conseqüência ética do Shoah. É o estado no qual uma pessoa se encontra quando lhe é confiscada até mesmo sua própria história. Um estado no qual é proibido confrontar a si mesmo. Todo o desafio do romance consiste em inventar uma linguagem que una essas idéias e indique uma existência aprisionada.

Pergunta - Como o sr. inventou essa linguagem? O sr. chegou a dizer que escrevia para "ferir" o leitor?
Kertész -
No que tange o Shoah, é impossível escrever sem ferir, porque o peso é depositado sobre os ombros do leitor. É preciso que as palavras tenham um efeito, no sentido de "wirkung", que elas penetrem a carne. Ao mesmo tempo, há um paradoxo. O romance precisa "agradar", no sentido de fazer com que o leitor deseje virar a página. É uma armadilha à qual ele é atirado para que seja receptivo. Se sou cruel ou odioso demais, não conseguirei obter aquilo que desejo.
Mas essa é uma reflexão feita a posteriori. É evidente que não era isso que eu tinha em mente quando escrevi "Sem Destino". De forma alguma. O que me obcecava era tentar evitar a pose literária. Eu pensava na lona que recobria as mesas das livrarias húngaras -um pano grosseiro sobre o qual se depositavam os livros que era possível adquirir por cinco ou dez florins apenas. Queria evocar o grão bruto desse tecido, alguma coisa de grosseiro como nos romances populares ou policiais. Para isso, era preciso colocar os detalhes em primeiro plano: diante de um oficial uniformizado, meu narrador só pensa no piolho que lhe causa coceira. É, assim, uma maneira de mostrar a impossibilidade de escrever com meios racionais sobre aquele mundo.

Pergunta - A sua compreensão da música não exerce, também, influência sobre a maneira pela qual o sr. reconstrói a linguagem?
Kertész -
Exato. Ouço música todos os dias antes de escrever. No momento, prefiro Bach e Mozart. Na época de "Sem Destino", era a música atonal que me assombrava -Berg, Schoenberg... Da mesma forma, tentei criar uma linguagem atonal. A atonalidade é a anulação do consenso. Nada mais de ré maior ou mi bemol menor. A tonalidade é abolida, como os valores da sociedade. O baixo contínuo é destruído, o que significa que o sol (não a nota musical, mas aquele sol sob o qual marchamos a cada dia) deixa de ser fixo e desaparece a grade de referências que dão fundamento à razão. Idéias como honra e felicidade se tornam risíveis. Tudo está em movimento, nada é certo. Do ponto de vista da linguagem, é isso que penso ter criado em "Sem Destino". Depois, continuei a brincar com essas descobertas. Em "Kadish - Por uma Criança Não Nascida" (Imago), a perspectiva não era tão alienada -é um homem que fala, uma pessoa que percebe claramente as leis da vida e que cometeu apenas um erro: se apaixonar.

Pergunta - Como o sr. se situa com relação aos demais autores que descreveram o universo dos campos de extermínio?
Kertész -
Odeio a pintura dos horrores. O que me interessa é a distância. A língua é limitada e seus limites são intransponíveis. É preciso portanto rompê-los do interior. Admiro os autores que conseguem trabalhar com os meios fornecidos pela literatura e ainda assim ultrapassar as fronteiras do dizível. Recentemente, reli "A Dor" (Nova Fronteira), de Marguerite Duras: nada de extraordinário, e no entanto tudo é expresso sobre aquilo que Duras designa como "a desordem fenomenal do pensamento e do sentimento". Vemos aquela mulher cujo marido escapou de um campo. Ela o contempla "com suas calças cujas pernas flutuam como velas". "Quando faz sol, pode-se ver o brilho através das mãos dele".
Ele começa a comer. Sua fome toma proporção assustadora. Vemos a mulher que o contempla da porta da sala e sentimos que se tornou uma estranha para o homem. É espantoso tudo que se reflete nas ações mínimas daquele dia. Poderia citar também Tadeusz Borowski, polonês deportado para Auschwitz e subseqüentemente para Dachau. Pouco depois de sua libertação, escreveu contos reunidos sob o título "O Mundo de Pedra". A objetividade sarcástica de seu estilo me faz pensar em Mérimée. Mas o grande, o maior, escritor sobre os campos, para mim, sempre será Jean Améry.

Pergunta - Não Primo Levi?
Kertész -
Não o vejo como suficientemente radical. Ele mantém a tradição humanista, aquela mesma que foi aniquilada pela experiência do Shoah. Já disse muitas vezes que Jean Améry ("Além do Crime e Castigo" e "Ensaio para Superar o Insuperável") é um "santo do Holocausto". É um personagem extremo. Ele chegou ao limite, sem nada dissimular diante de si mesmo, sabendo que tudo aquilo não poderia ser resolvido de outra forma que não pelo suicídio.

Pergunta - Em "A Bandeira Inglesa", o senhor evoca a repressão, pelos tanques soviéticos, à insurreição de 1956 em Budapeste. O sr. trabalhava como jornalista...
Kertész -
Quando voltei dos campos, estava só. Em Budapeste, quis pegar o ônibus e exigiram que eu pagasse a passagem. O apartamento de minha família estava ocupado. Era estranho; porque eu ainda era tão novo, tinha de retornar à escola em um momento em que eu já tinha, pode-se dizer, uma certa experiência de vida...
A seguir, veio a ditadura stalinista. Durante dois anos fui jornalista. Mas como eu era incapaz de escrever sob ordens, terminei demitido. Foi então que decidi me tornar escritor. Não um escritor oficial, mas um clandestino da escrita. Qualquer pessoa que tenha vivido sob o nazismo e o stalinismo acumulou experiência suficiente de ditadura para traduzi-la em forma literária.

Pergunta - De onde surge esse seu distanciamento sarcástico, esse aparente isolamento que é a marca de todos os seus livros?
Kertész -
Fui influenciado por Camus. Para mim, o grande exemplo dessa "distância" é "O Estrangeiro" (Record). Tinha 25 anos quando descobri aquele pequeno livro. Eu me disse que era tão fino que não devia custar caro demais. Não sabia nada sobre o autor e estava longe de suspeitar que sua prova me marcaria tanto, com o passar dos anos. Em húngaro, "O Estrangeiro" foi traduzido com o título "O Indiferente". Indiferente no sentido de distanciado do mundo, distanciado de si mesmo mas também no sentido de liberto, ou seja, de homem livre.

Pergunta - Um homem preso na armadilha da burocracia e do absurdo, é assim que o sr. descreve "O Processo Verbal", que lembra muito o universo de Kafka. O sr. sente afinidade com aquilo que Kundera descreve como "a grande plêiade de romances da Europa Central": Kafka, Musil, Broch, Gombrowicz...?
Kertész -
Evidentemente. Todas essas experiências literárias estão vinculadas ao espaço austro-húngaro. No que me tange, por exemplo, faço uma leitura de Kafka que difere radicalmente dos ocidentais. Para mim, Kafka é um realista típico da "Mitteleuropa".
Por exemplo, "O Castelo", com a aldeia e os albergues freqüentados por servidores públicos, funcionários. Desde as primeiras páginas, o castelo está claramente lá. Não há dúvida alguma de que ele existe, mesmo que o resto do mundo pareça ter desaparecido em um dos gigantescos buracos negros de Kafka.
Não se sente nada, nem polícia nem repressão, que possam impedir aquele que esteja disposto a chegar lá. No entanto, as pessoas discutem incansavelmente sobre se têm mesmo esse direito. É uma situação típica do Leste: de um lado, um poder evasivo, irônico, átono, indecifrável; de outro, a covardia, o conformismo, a tragédia grotesca e risível que adoece as pessoas. Não é por nada que o público de Kafka rolava de rir quando lia suas obras. Seu gênio era tamanho que, no Ocidente, deu origem a múltiplas leituras metafísicas, mas o que ele traduz fundamentalmente é a quintessência de uma visão de mundo leste-européia.

Pergunta - E o sr.? Considera-se parte dessa tradição?
Kertész -
Em "Liqüidação", meu personagem principal expõe sua "idéia básica", segundo a qual "o mal é o princípio da vida". Certo, é meu herói que assim se exprime, mas essa é provavelmente a frase mais ácida e mais lúcida que já escrevi. Não só o mal é o princípio da vida, mas aquilo que é verdadeiramente irracional é o bem. Sempre tive essa visão de mundo. Você pode dizer que sou um pessimista incurável. Mas já lhe contaram aquela piada muito repetida na Europa Oriental sobre a diferença entre um otimista e um pessimista? A resposta é que não existe nenhuma; o pessimista é simplesmente um sujeito mais bem informado, eis tudo.


Tradução de Paulo Migliacci.
Esta entrevista foi publicada originalmente no "Le Monde".


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