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+(L)ivros
O turista esteta
Filósofo alemão Max Bense traça perfil intelectual do país nos anos 1960, mas ignora momento político e social
SERGIO MICELI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando iniciei a
pós-graduação, no
final da década de
1960, diversas correntes intelectuais
em voga -a revolução da indústria cultural (McLuhan), a
teoria da informação (Moles), a
cibernética (Pierce), a linguística (Jakobson), a semiologia
(Barthes), o estruturalismo
(Lévi-Strauss)- disputavam
qual era a melhor leitura dos
materiais da produção cultural.
A ojeriza ao mundo social e à
política era a contrapartida da
estetização escancarada das artes. Ao frequentar o curso de
Antonio Candido sobre estéticas contemporâneas, tive oportunidade de ler a versão em espanhol da "Pequena Estética",
de Max Bense (1910-90), então
o mentor do grupo concretista
da revista "Noigandres".
A obra não me empolgou,
mas aprendi as balizas da poesia concreta, àquela altura
prestigiada na mídia e admirada por universitários com veleidades. Hoje, em momento
de baixa do concretismo literário, é de se indagar a razão
de publicar o livreto recém-lançado.
O encômio empreendido por
Bense desconhece por completo a história econômica, política e social do país, podendo-se
entender o título como mantra
etnocêntrico sobre obras e artistas de seu agrado.
A falta de frescor dos registros do viajante é secundada
pela candura de juízos sentenciosos. Um montão de clichês e
lugares-comuns, vazados em
linguagem elevada, álgida, pretensamente filosofante, convenhamos, um tanto datada e
pomposa.
Tome-se, por exemplo, a
concepção do país e o que entende por inteligência brasileira. Movido pelo mote euclidiano, a "opressão extra-humana
da natureza", seduzido pelo
ranço meloso da melancolia,
ele contrasta a paisagem europeia de inverno (branca, imagino) ao "grafismo tropical das
superfícies de verde e vermelho", tingido pela poeira.
As restrições às obras do
Aleijadinho -miméticas, colonizadas e católicas- são abrandadas pelo elogio à geometria
das fachadas em Ouro Preto
[MG], prenúncio do "universo
ideacional matemático-construtivo do estilo concretista de
uma arquitetura quase platônica". Haja fôlego. O passado,
emblema longínquo de uma estética conquistadora.
"Dolce far niente"
Na pele de fabricante do novo, de inventor nato, Bense
prescinde da história, do atraso
e projeta um futuro repleto de
objetos craneados, de tecnologias de ponta, de devaneios estruturais. Num laivo de sensibilidade em captar a bagunça nativa, alude ao emaranhado entre as injunções do cargo público e as serventias do fazer literário e artístico.
O encanto pelo "dolce far
niente" [doce fazer nada] da elite brasileira se condensa no cafezinho, no hábito da sesta na
casa-grande da fazenda. Delicia-se com a comilança dos ricos e com intermináveis pelejas
verbais.
Um estilo de vida afeito a
borrar contrastes entre destituídos e abastados, uns e outros
embalados pelo sono virtuoso
cujo prodígio consiste em operar "a desintegração das antíteses". Julgue o leitor a profundeza. A única mostra de compaixão pelo drama de "faces carcomidas" nas esquinas do Rio de
Janeiro se contrapõe à afluência local, que lhe pareceu menos ostensiva do que a impertinência norte-americana.
Não custa lembrar o leitor
acerca dos fundamentos em
que se assenta a estética bensiana, nutriente doutrinário da
missão civilizadora esposada
pelos concretistas. O embaço
começa pelo léxico em que conceitos se transmutam em categorias antropológicas, universais, a ginástica de erigir uma
teoria substanciosa.
Código e repertório, vocábulos da época, referem-se ao capital cultural de uma dada classe, mas se ignoram os condicionantes históricos da "informação", da "vanguarda", da "estética pura". A filosofia da arte
bensiana radicaliza o milagre
ao apartar o mundo social da
esfera rarefeita dos signos estéticos, situando, a meio caminho, atividades profissionais de
perfil compósito, produtoras
de valores de uso e de símbolos:
o design industrial, a publicidade, as artes gráficas, as novas
mídias eletrônicas.
A estética clássica se diferencia da contemporânea pelo
confronto entre concepções de
beleza. Coisas que são belas por
si mesmas, atreladas a um sistema de convenções -a lua, o
sol, o vento, a rosa-; outras cuja formosura se constitui por
signos.
Dito de outro modo, alude ao
embate entre a estética realista,
figurativa, e outra abstrata, ôntica (termo dele), informal, fenomenológica. Cores, sons, ritmos, medidas, com status de
elementos construtivos, despidos de intento mimético.
Os signos se impõem pelo valor de face, remetem à sua ordenação, disparam significados
formais. A utopia fracassada de
uma expressão estética ideal,
síntese do referente com a forma. Verdadeira assombração.
Não obstante, as passagens
esclarecedoras do livreto tomam por objeto obras de artistas e arquitetos brasileiros, que
o autor conheceu em sucessivas estadas no país entre 1961 e
1964. Brasília, "magnum opus"
da criatividade nativa, as esculturas de Bruno Giorgi, os "bichos" de Lygia Clark, as pinturas de Alfredo Volpi e de Almir
Mavignier.
Círculos de Bense
Indícios textuais permitem
reconstituir a sociabilidade de
Bense nos círculos do que entende por "inteligência brasileira". As viagens ao Brasil tiveram apoio do Ministério das
Relações Exteriores, talvez como consultor na criação da Escola Superior de Desenho Industrial (1963).
Seu entusiasmo pela atmosfera informal num restaurante
carioca foi suscitado pelo convívio com intelectuais diplomatas (Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto) ou com esposa de diplomata (Clarice Lispector). Após o almoço, o figurino formalista dos personagens volta à tona, merecendo
registro na frase subsequente.
Bense transitou ainda entre
grupos de vanguarda e dirigentes de instituições culturais
(Bienal de São Paulo, Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro), confinado ao gueto de certa
nata intelectual oficiosa. Não
existe no livro nenhuma referência ao fogaréu político em
que o país estava imerso, tampouco aos movimentos sociais
naquela conjuntura, às vésperas do golpe militar de 1964.
Encerro a resenha sem espaço para contrapor a história social de artistas como Volpi e
Mavignier às análises fantasiosas do turista esteta.
Quanto a Mavignier, valeria a
pena explorar ao menos o
aprendizado instigante junto
aos loucos e esquizofrênicos no
ateliê de pintura do Engenho
de Dentro, criado por Nise da
Silveira.
Volpi recobraria tônus artístico pela inteligibilidade do
convívio com outros pintores
de origem italiana no grupo
Santa Helena [formado em São
Paulo, nos anos 30], pela recuperação da temática imigrante,
pelos experimentos de pintura
ao ar livre. Mas Bense não se interessa por trivialidades.
SERGIO MICELI é professor de sociologia na
USP e autor, entre outros, de "Nacional Estrangeiro - História Social e Cultural do Modernismo
Artístico em São Paulo" (Cia. das Letras).
INTELIGÊNCIA BRASILEIRA -
UMA REFLEXÃO CARTESIANA
Autor: Max Bense
Tradução: Tercio Redondo
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/
3091-4008)
Quanto: R$ 39 (120 págs.)
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