São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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+(L)ivros

O turista esteta

Filósofo alemão Max Bense traça perfil intelectual do país nos anos 1960, mas ignora momento político e social

SERGIO MICELI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando iniciei a pós-graduação, no final da década de 1960, diversas correntes intelectuais em voga -a revolução da indústria cultural (McLuhan), a teoria da informação (Moles), a cibernética (Pierce), a linguística (Jakobson), a semiologia (Barthes), o estruturalismo (Lévi-Strauss)- disputavam qual era a melhor leitura dos materiais da produção cultural.
A ojeriza ao mundo social e à política era a contrapartida da estetização escancarada das artes. Ao frequentar o curso de Antonio Candido sobre estéticas contemporâneas, tive oportunidade de ler a versão em espanhol da "Pequena Estética", de Max Bense (1910-90), então o mentor do grupo concretista da revista "Noigandres".
A obra não me empolgou, mas aprendi as balizas da poesia concreta, àquela altura prestigiada na mídia e admirada por universitários com veleidades. Hoje, em momento de baixa do concretismo literário, é de se indagar a razão de publicar o livreto recém-lançado.
O encômio empreendido por Bense desconhece por completo a história econômica, política e social do país, podendo-se entender o título como mantra etnocêntrico sobre obras e artistas de seu agrado.
A falta de frescor dos registros do viajante é secundada pela candura de juízos sentenciosos. Um montão de clichês e lugares-comuns, vazados em linguagem elevada, álgida, pretensamente filosofante, convenhamos, um tanto datada e pomposa.
Tome-se, por exemplo, a concepção do país e o que entende por inteligência brasileira. Movido pelo mote euclidiano, a "opressão extra-humana da natureza", seduzido pelo ranço meloso da melancolia, ele contrasta a paisagem europeia de inverno (branca, imagino) ao "grafismo tropical das superfícies de verde e vermelho", tingido pela poeira.
As restrições às obras do Aleijadinho -miméticas, colonizadas e católicas- são abrandadas pelo elogio à geometria das fachadas em Ouro Preto [MG], prenúncio do "universo ideacional matemático-construtivo do estilo concretista de uma arquitetura quase platônica". Haja fôlego. O passado, emblema longínquo de uma estética conquistadora.

"Dolce far niente"
Na pele de fabricante do novo, de inventor nato, Bense prescinde da história, do atraso e projeta um futuro repleto de objetos craneados, de tecnologias de ponta, de devaneios estruturais. Num laivo de sensibilidade em captar a bagunça nativa, alude ao emaranhado entre as injunções do cargo público e as serventias do fazer literário e artístico.
O encanto pelo "dolce far niente" [doce fazer nada] da elite brasileira se condensa no cafezinho, no hábito da sesta na casa-grande da fazenda. Delicia-se com a comilança dos ricos e com intermináveis pelejas verbais.
Um estilo de vida afeito a borrar contrastes entre destituídos e abastados, uns e outros embalados pelo sono virtuoso cujo prodígio consiste em operar "a desintegração das antíteses". Julgue o leitor a profundeza. A única mostra de compaixão pelo drama de "faces carcomidas" nas esquinas do Rio de Janeiro se contrapõe à afluência local, que lhe pareceu menos ostensiva do que a impertinência norte-americana.
Não custa lembrar o leitor acerca dos fundamentos em que se assenta a estética bensiana, nutriente doutrinário da missão civilizadora esposada pelos concretistas. O embaço começa pelo léxico em que conceitos se transmutam em categorias antropológicas, universais, a ginástica de erigir uma teoria substanciosa.
Código e repertório, vocábulos da época, referem-se ao capital cultural de uma dada classe, mas se ignoram os condicionantes históricos da "informação", da "vanguarda", da "estética pura". A filosofia da arte bensiana radicaliza o milagre ao apartar o mundo social da esfera rarefeita dos signos estéticos, situando, a meio caminho, atividades profissionais de perfil compósito, produtoras de valores de uso e de símbolos: o design industrial, a publicidade, as artes gráficas, as novas mídias eletrônicas.
A estética clássica se diferencia da contemporânea pelo confronto entre concepções de beleza. Coisas que são belas por si mesmas, atreladas a um sistema de convenções -a lua, o sol, o vento, a rosa-; outras cuja formosura se constitui por signos.
Dito de outro modo, alude ao embate entre a estética realista, figurativa, e outra abstrata, ôntica (termo dele), informal, fenomenológica. Cores, sons, ritmos, medidas, com status de elementos construtivos, despidos de intento mimético.
Os signos se impõem pelo valor de face, remetem à sua ordenação, disparam significados formais. A utopia fracassada de uma expressão estética ideal, síntese do referente com a forma. Verdadeira assombração.
Não obstante, as passagens esclarecedoras do livreto tomam por objeto obras de artistas e arquitetos brasileiros, que o autor conheceu em sucessivas estadas no país entre 1961 e 1964. Brasília, "magnum opus" da criatividade nativa, as esculturas de Bruno Giorgi, os "bichos" de Lygia Clark, as pinturas de Alfredo Volpi e de Almir Mavignier.

Círculos de Bense
Indícios textuais permitem reconstituir a sociabilidade de Bense nos círculos do que entende por "inteligência brasileira". As viagens ao Brasil tiveram apoio do Ministério das Relações Exteriores, talvez como consultor na criação da Escola Superior de Desenho Industrial (1963).
Seu entusiasmo pela atmosfera informal num restaurante carioca foi suscitado pelo convívio com intelectuais diplomatas (Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto) ou com esposa de diplomata (Clarice Lispector). Após o almoço, o figurino formalista dos personagens volta à tona, merecendo registro na frase subsequente.
Bense transitou ainda entre grupos de vanguarda e dirigentes de instituições culturais (Bienal de São Paulo, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), confinado ao gueto de certa nata intelectual oficiosa. Não existe no livro nenhuma referência ao fogaréu político em que o país estava imerso, tampouco aos movimentos sociais naquela conjuntura, às vésperas do golpe militar de 1964.
Encerro a resenha sem espaço para contrapor a história social de artistas como Volpi e Mavignier às análises fantasiosas do turista esteta. Quanto a Mavignier, valeria a pena explorar ao menos o aprendizado instigante junto aos loucos e esquizofrênicos no ateliê de pintura do Engenho de Dentro, criado por Nise da Silveira.
Volpi recobraria tônus artístico pela inteligibilidade do convívio com outros pintores de origem italiana no grupo Santa Helena [formado em São Paulo, nos anos 30], pela recuperação da temática imigrante, pelos experimentos de pintura ao ar livre. Mas Bense não se interessa por trivialidades.


SERGIO MICELI é professor de sociologia na USP e autor, entre outros, de "Nacional Estrangeiro - História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo" (Cia. das Letras).

INTELIGÊNCIA BRASILEIRA - UMA REFLEXÃO CARTESIANA
Autor:
Max Bense
Tradução: Tercio Redondo
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3091-4008)
Quanto: R$ 39 (120 págs.)


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