São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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OLHARES CHEIOS E VAZIOS

A montadora de "L"Anglaise et le Duc" conta como é trabalhar com o diretor francês

Catherine Arnaud
especial para Folha

Na entrevista a seguir, Mary Stephen, responsável pela montagem de "L'Anglaise et le Duc", relembra a época em que foi aluna de Rohmer na Sorbonne, nos anos 70, explica como o diretor francês escolheu as músicas de filmes como "Conte d'Hiver" e a busca incessante de Rohmer pelo olhar "inocente".

O que há de especial no roteiro de "L'Anglaise et le Duc"?
O roteiro é muito mais curto que o filme: 73 páginas para mais de 2 horas de filme, porque é muito fiel às memórias de Grace Elliott, que tinham muitos diálogos. Uma das originalidades do filme, acredito, é a opção estética de Eric Rohmer, que achou impossível filmar na Paris atual ou reconstruir em estúdio uma Paris destruída. Assim, essa desvantagem inicial, somada a seu desejo de experimentar novas técnicas, o levou a usar o princípio das inserções.
Portanto o filme é feito de dois elementos distintos: de um lado, todas as sequências filmadas em estúdio sobre fundo verde, de outro os quadros (pintados por Jean-Baptiste Marot, segundo gravuras da época), nos quais, graças à técnica de inserção digital, as sequências foram superpostas. Na filmagem havia uma equipe de espacialização. O pintor trabalhava com essa equipe para que os quadros (o Palais Royal, Notre Dame, os Invalides, a Place de la Concorde etc.), também filmados no estúdio sobre fundo verde, ficassem na escala desejada. Esse dispositivo técnico justifica o custo relativamente alto do filme, embora ainda estejamos longe dos orçamentos das grandes produções com efeitos especiais.
Como você começou a colaborar com Rohmer?
Nasci em Hong Kong, onde vivi até os 15 anos. Então minha família emigrou para Montreal, no Canadá, onde estudei cinema numa universidade anglófona, o Loyola College, onde pude realizar alguns curtas-metragens. Graças a uma bolsa, parti para Paris em 1976, com 22 anos. Lá mergulhei na teoria. A semiologia invadia todos os cursos do programa. Felizmente tínhamos liberdade para escolher cursos extras e escolhi o de Eric Rohmer, o famoso curso das manhãs de segunda-feira, que ele ainda ministra na Universidade de Paris 3, mesmo quando está filmando, e cuja matéria é justamente o que está filmando.
Ele ajudava ao máximo os alunos que queriam filmar, dando-nos as coordenadas de sua produtora, Les Films du Losange, que ele fundou com o cineasta Barbet Schroeder. Como eu me entediava muito nos outros cursos do mestrado, decidi interrompê-lo e usar o dinheiro da bolsa para fazer um filme.
Acabara de assistir, maravilhada, "India Song" (1974), de Marguerite Duras. Decidi fazer um contraponto radicalmente asiático a esse filme. Era ao mesmo tempo uma homenagem a Duras. O filme é "Ombres de Soie" (Sombras de Seda). Duas jovens chinesas, originárias de famílias importantes de Xangai, se encontram no exílio na Indochina e tentam reconstituir seu passado. Fiz "Ombres de Soie" sem dinheiro nenhum, em 16 mm. Era 1978. Graças a esse filme consegui outra bolsa para um curta-metragem no Canadá e fiz meu segundo longa, "Justocoeur" (trocadilho com "juste-au-corps", que é a malha usada por bailarinas).
O personagem principal é uma bailarina africana em Paris. Rohmer esteve na filmagem de "Justocoeur" com Arielle Dombasle para uma cena de figuração. Ele gostou do ambiente de nouvelle vague, quando os cineastas faziam seus filmes com a boa vontade e o entusiasmo de todos. Ainda mais que ele saía da pesada produção de "Perceval le Gallois" (1978), que também foi um fracasso comercial.
Depois fui morar em Cannes, em 1982, até 1989, quando, então, voltei a Paris. Rohmer -com quem sempre mantive contato telefônico- me chamou um dia, em plena filmagem de "Le Rayon Vert" (O Raio Verde), para me pedir, como fez a todos os amigos, se eu podia tentar captar o raio verde com a câmera (risos). Então Rohmer veio me ver e me propôs ser a montadora de "Conte d'Hiver".
Assim, "Conte d'Hiver", em 1990, foi realmente o primeiro filme de Rohmer que montei e no qual apareço nos créditos. Depois veio "L'Arbre, le Maire et la Médiathèque", em 1992; eu trabalhava na revista Vogue como adjunta da redatora-chefe, Colombe Pringle. Não podia deixar esse emprego, que aliás era muito interessante, e nele fiquei até 1994. Então Rohmer me deu a chave da sala de montagem e montei "L'Arbre, le Maire et la Médiathèque" durante meu tempo livre: na hora do almoço, à noite e nos fins de semana, com ou sem ele (risos). Depois encadeamos, da mesma forma, com "Les Rendez-Vous de Paris", "Conte d'Eté" e "Anniversaires".
E sua colaboração musical nos filmes de Rohmer?
Como todas as filhas de boa família de Hong Kong, estudei música e tive aulas de piano desde os 3 anos até os 12. Desencantei-me do piano e hoje toco apenas por prazer e para os filmes de Rohmer! Ele cantarola uma pequena ária -ele tem sempre uma ária na cabeça- à qual dou forma. Ele faz a letra. Para os créditos do filme "La Femme de l'Aviateur", Rohmer queria fazer uma canção. Ele tinha escrito os versos e a melodia e eu me ofereci para fazer a música. Foi nossa primeira colaboração musical. Desde então fiz vários arranjos musicais para seus filmes.
Para "Conte d'Hiver" Rohmer cantarolou a ária que tinha na cabeça: ele queria uma fuga. Eu nunca havia composto uma fuga. Então fui ao conservatório, próximo à sala de montagem, na mesma tarde, e estudei em casa, à noite, uma partitura de fuga. Fiz um esboço que Rohmer adorou. A partir daí adotamos um pseudônimo conjunto, nos créditos: Sébastien Erms (ERMS: Eric Rohmer, Mary Stephen); durante muito tempo não contamos a ninguém (risos). Para "L'Anglaise et le Duc" não havia música original; utilizamos canções da Revolução e uma marcha "lúgubre" de Gossec, composta na época.
O que acontece concretamente entre vocês durante a montagem? Rohmer está sempre presente? Há momentos em que vocês se chocam sobre a montagem?
Rohmer é muito experiente em termos de decupagem. Embora em seus roteiros recentes depois de "Conte d'Automne" muitos diálogos não apareçam, eles são elaborados com precisão nos ensaios com os atores. E, quando chega a fase de montagem, Rohmer tem uma idéia muito clara da estrutura do filme, o que nos permite avançar depressa. Procedemos então a uma seleção das cenas em VHS, no escritório dele. Ele observa minha reações. Nessa fase, e durante várias semanas, sou sua primeira espectadora. Tenho um olhar novo, "inocente", sobretudo porque não estive nas filmagens. Ele quer que eu descubra o filme e os personagens somente na montagem. Como ele filma praticamente em ordem cronológica, o enredo do filme aparece de ponta a ponta, em suas diferentes tomadas, é claro.
Cada um de nós faz suas opções de tomadas e discutimos. Com frequência fazemos as mesmas escolhas. Rohmer está presente na sala de montagem durante toda a construção do filme. Fico sozinha para o trabalho puramente técnico. Jamais entramos em confronto; podemos discordar, geralmente são as soluções dele que se mantêm -e, caso aconteça o contrário, ele também fica satisfeito. Gosto muito de trabalhar as reações e os planos de escuta nos campos-contracampos. Talvez isso venha de minha origem asiática e da filosofia do "vazio" e do "cheio", e nos filmes de Rohmer isso é ainda mais verdadeiro. Em "L'Anglaise et le Duc", construí bastante sobre os olhares e as escutas, e, no caso de personagens ambíguos como Philippe d'Orléans e Grace Elliott, isso funciona muito bem.


Catherine Arnaud é jornalista e co-produtora, na Europa, do filme "Aurélia", que será dirigido por Carlos Reichenbach.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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